God created men, but Samuel Colt made them equal.
Ditado popular norte-americano
Esta é uma perspetiva um pouco difícil de abordar em Portugal, e, provavelmente, na maior parte da Europa, ao contrário dos Estados Unidos, pois somos em geral muito púdicos com o tópico. Diz respeito ao mundo dos confrontos físicos, confrontos esses que não têm que ser de facto activos mas podem também estar simplesmente latentes: a maior parte das situações de antagonismo desse tipo não chega a vias de facto e fica-se apenas pela medição de força. Neste mundo dos confrontos, a diferença de força entre os seus participantes, na ausência de armas de fogo (e também, verdade seja dita, de armas brancas ou de outro tipo), é uma diferença inteiramente dominada pela capacidade física de cada um dos intervenientes. A medida da capacidade física é, em grande parte, fruto de disposições genéticas e apriorísticas, e também, mais secundariamente, fruto do trabalho físico que uma pessoa possa realizar sobre o seu próprio corpo e a respectiva aptidão para o combate. Tudo isto muda com o acesso democrático às armas de fogo.
Ou seja, em termos sucintos, um matulão tem sempre uma vantagem significativa sobre um pequenote. A arma de fogo igualiza o lugar à partida onde cada um se situa, nivela as pré-condições para a iminência do conflito e democratiza, de forma muito radical, tudo o que envolva essa possibilidade. Nesse cenário, qualquer gigante tem exactamente as mesmas condições de força superior de qualquer anão, e é curioso pensar como uma pessoa tremendamente apta para a peleja física, ou mesmo até de forma sádica ou psicótica aficionado da mesma, está, perante a condição de ambos se encontrarem armados, na mesma posição do homem comum, o homem não propriamente trabalhado a nível de complexão física, de aptidão para o combate, ou sequer dotado de inclinação pessoal para esse tipo de disposição.
Nesse cenário do confronto, em potência ou em actividade, em que a arma de fogo está presente, as únicas diferenças relevantes são da ordem da qualidade da arma e a destreza da pontaria. Por essa mesma razão, os filmes de cowboys — romantizados, em grande parte, pois, historicamente, nunca existiram propriamente grandes “duelos“ no velho oeste americano, nem o quotidiano deste era caracterizado por um recurso generalizado da pistola e dos tiros — retratavam o pistoleiro que sacava a arma mais depressa e mais habilmente como o vencedor do duelo. Mas esta diferença de habilidade é uma diferença muito sutil, assim de como a da qualidade da arma — tal como a diferença entre força física, armas brancas e armas de fogo —, sendo estas diferenças muito mais significativas do que aquelas presente entre duas pessoas que estejam munidas de armas de fogo e situadas assim no mesmo patamar. Pode dizer-se que o primeiro caso, o da diferença entre força física muscular, o uso de armas brancas, ou o uso de armas de fogo, constitui uma diferença de espécie, e que o segundo caso, o da qualidade da arma e a destreza do seu manejamento, representa antes uma diferença de grau.
O provérbio que serviu de mote a este texto é de origem incerta mas popular no contexto norte-americano; entendido como uma variante do “credo do ferreiro”, the blacksmith’s prayer, que estipula como ‘God made some men big and some men small, but man made steel and steel made them equal’, faz parte de uma sociedade em que o direito constitucional ao porte de arma está garantido. É um preceito fundacional, e para a maior parte dos europeus as razões para isso ser assim são obscuras, esquisitas e até contrárias ao senso comum. A história das razões para a promulgação dessa famosa segunda emenda da constituição americana não é consensual, mas uma corrente forte e muito representativa alega que o direito à posse e ao porte de arma torna o cidadão comum igualizado perante o poder repressor mais significativo e, também, pela sua própria natureza e necessidade munido naturalmente de armas de fogo: o poder do governo federal. Essa explicação colhe verosimilhança quando se percebe que a constituição americana é precisamente um documento de equilíbrio de pesos e contra-pesos nas relações entre os poderes estatais — o legislativo, o executivo e o jurídico — e a população, ou, melhor, o indivíduo, o cidadão na sua singularidade. Nesse contexto, o direito ao porte e à posse de arma de fogo faz todo o sentido. Tais princípios, como todos sabemos, não estão tão fortemente na génese das constituições europeias nem nas filosofias políticas e nem nas vontades populares que lhes deram ou não origem e, por isso, a ideia causa em nós enorme estranheza.
As razões para a ligação da cultura norte-americana às armas estendem-se também às ideias de auto-subsistência, de vida rural e de independência das populações locais na provisão de segurança para as suas comunidades. James Madison, um dos pais fundadores da república, explicava um pouco destas raízes e destas razões no jornal The Federalist, de 1788:
Those who are best acquainted with the last successful resistance of this country against the British arms, will be most inclined to deny the possibility of it. Besides the advantage of being armed, which the Americans possess over the people of almost every other nation, the existence of subordinate governments, to which the people are attached, and by which the militia officers are appointed, forms a barrier against the enterprises of ambition, more insurmountable than any which a simple government of any form can admit of. Notwithstanding the military establishments in the several kingdoms of Europe, which are carried as far as the public resources will bear, the governments are afraid to trust the people with arms. And it is not certain, that with this aid alone they would not be able to shake off their yokes. But were the people to possess the additional advantages of local governments chosen by themselves, who could collect the national will and direct the national force, and of officers appointed out of the militia, by these governments, and attached both to them and to the militia, it may be affirmed with the greatest assurance, that the throne of every tyranny in Europe would be speedily overturned in spite of the legions which surround it.
Madison estabelece também, como podemos ler, o contraste deste espírito e destes princípios sociais e constitucionais com as outras nações do mundo, particularmente as europeias. Por isso, não parece existir reconciliação possível entre o ponto de vista europeu — particularmente quando surgem nas notícias episódios trágicos de eventos com armas de fogo que envolvem mortes em larga escala — e o ponto de vista americano, mas é importante destacar que se trata de facto de uma disposição fundacional, e que não só não se antevê que a segunda emenda da constituição possa ser revista em breve, como também é provável que essa não seja indissociável dos outros princípios que regem a altamente liberal lei fundamental dos Estados Unidos.
Para conclusão destes breves apontamentos sobre o objecto da arma de fogo, e pretendendo, em parte, fomentar a familiaridade do leitor com o mesmo, destacamos um outro aspecto: a beleza estética dos revólveres e das pistolas, pequenos dispositivos de fabrico artesanal ou industrial que podem ser livremente apreciados enquanto construções engenhosas, sem qualificações morais, sociais ou funcionais de maior. Para esse efeito deixamos aqui uma simpática galeria de algumas das armas de fogo mais bonitas ou mais historicamente significativas.