A Barbie relembra-me a minha adolescência.
Dito isto, imagino os leitores a entreolharem-se, meio sorridentes, como se a minha reminiscência se tratasse de uma revelação bombástica. Talvez um dos leitores quebrasse o silêncio, retorquindo: “Não quererias dizer infância?”
Consigo agora visualizar alguns leitores a conterem o riso e outros a repreenderem o desbocado com um rosto que indica que a piada está fora do prazo.
Bem, eu vou desvendar os mistérios. Não brinquei às bonecas quando era criança; o mais próximo que cheguei disso foi ser tratado como um boneco por ser o único rapaz (é preciso acrescentar que os outros eram raparigas, ou o facto de eu ser o único rapaz confirma-lo?)
Mais tarde, na escola, chamaram-me Barbie. Terá sido por volta do sétimo ou oitavo ano. Fui o primeiro puto a deixar crescer o cabelo. Também fui pioneiro na mudança da caligrafia que aprendi na escola primária para a chamada letra de máquina. Acho que é de família. A minha mãe foi a primeira rapariga a usar calças na aldeia. Na altura, não se tratava de uma questão de feminismo, mas sim de uma homenagem a Elvis. A minha mãe, na sua ingenuidade rural, talvez pensasse que iria furar a enorme fila para uma noite com o Rei do Rock. Nunca se concretizou. Acabou por ficar com o meu pai, que andava de bicicleta pela aldeia (numa altura em que o ciclismo não garantia credibilidade social em nome de cuidar do ambiente) enquanto penteava o cabelo com uma mão e movia o veículo com a outra para impressionar o gajedo (hoje em dia seria visto como masculinidade tóxica, apesar da reduzida pegada de carbono).
Voltemos a mim, ou melhor à Barbie. Não só me chamavam o nome da boneca. Alguns bullies (na altura não eram tidos como bullies, mas filhos da puta) ainda fingiam querer passar uma noite comigo com os mesmos objectivos lascivos que as raparigas da geração da minha mãe tinham para com o Elvis. No meu caso, claro, era para gozar com a minha cara (ou melhor, com o meu cabelo).
Nade de novo na minha vida. Algumas vezes antes, durante o período entre a infância e a adolescência (podemos chamar-lhe puberdade?), também me chamaram macaco. Isto dito hoje, levaria a maioria dos leitores acima a atribuir-me uma cor de pele que não é a correcta. A alcunha de macaco era alternada com orelhas de abano, o que penso explicar o fato de se poder ser comparado aos nosso antecessores e, ao mesmo tempo, caucasiano.
Não sei se deixaram de me chamar macaco para se ficarem apenas por Barbie. Talvez o cabelo comprido escondesse as orelhas? Não me lembro. Só me recorodo que, se não fosse o cabelo ou as orelhas, havia sempre a hipótese de levar porrada por torcer pelo Porto.
O atual barulho em torno do novo filme da Barbie deveria dar-me baixa médica. Com este contexto, como não ter uma crise de ansiedade e de saúde mental? Nada mais apropriado do que um trauma para ficar em casa a ver o(s) filme(s) da Barbie na internet.
Agora fora de brincadeiras. Fiquei genuinamente surpreendido pela tal película (de que só vi o trailer) não ser protagonizado por um Ken nascido em Kinshasa, operado na Califórnia, e a publicar lives de apoio a Kiev gravados num iPhone com uma capa com o arco-íris.
Uma feminista boazona? Onde é que já se viu isso? Na net e na Netflix, dois mundos tão imaginários quanto a Disney. (A net será eventualente mais verídica, pelo menos em comparação com Hollywood).
Entretanto, no admirável imundo novo, o rebanho veste-se a condizer, de cor-de-rosa. Espera aí: não era antiquado, preconceituoso, etc. atribuir uma cor ao género? Paradoxos do progressismo.