A indignação pífia de algumas jovens “tudólogas” com caricaturas feita com IA numa rede social leva-nos a revisitar um pouco a história do género, onde estabelecemos que aquelas em nada diferem da tradição de representação humorística de figuras públicas, e que a sátira é permitida tanto na lei portuguesa como nas plataformas sociais em geral.
É uma indignação, sem qualquer fundamento credível, que levou inclusive à censura de uma peça originalmente autorada por @vonderranter, na rede social X. Tratava-se de uma montagem vídeo feita por inteligência artificial onde estavam presentes três comentadoras do podcast Lei da Paridade envoltas em beijos e carinhos, representação que não viola nem as políticas da rede nem a legislação portuguesa.
Analisando um pouco melhor a substância de tais indignações infantis, convém sublinhar que uma vídeo montagem com três pessoas a darem as mãos e a beijarem-se não é um “ataque pessoal”: é uma caricatura, uma brincadeira inofensiva sem problema nenhum numa democracia liberal com tradições normais de humor. Não existe qualquer argumento credível que configure a referida representação como algo de ofensivo. Essa tese é completamente absurda e enquadra-se numa cultura de vitimismo insano que domina parte do discurso público contemporâneo. Não existe de igual modo qualquer “uso indevido” da imagem nestes casos: são caricaturas, diferentes em grau e não em espécie da tradição humorística do ocidente, hoje mal vistas por gerações criadas nessa cultura do vitimismo. A lei europeia protege estas expressões. É um não-assunto.
De resto, e numa reflexão mais abrangente, é importante lembrar também que a liberdade da sátira é fundamental numa democracia liberal e plural. Qualquer representação, por muito bem feita que seja, que não ultrapasse os limites da plausibilidade que poderiam configurá-la como tentativa de difamação enquadra-se nesse campo. Estranhamos profundamente que figuras do comentariado como Adriana Cardoso, Leonor Rosas, Maria Castello Branco, Luís Ribeiro, entre outros, acompanhem tal intuito censório e cheguem a falar de “crime” para o qual não existe qualquer base na lei portuguesa.
A figura apresentada, tal com muitas outras feitas com IA e envolvendo figuras conhecidas, é exatamente da mesma categoria da sátira política e da vida pública, independente de juízos de gosto, como os famosos desenhos de José Vilhena, dos quais destacamos um em baixo. Não consta que, depois de visualizar o desenho, Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Freitas do Amaral ou Álvaro Cunhal o tenham classificado como crime de qualquer espécie e ameaçado acção por meios legais.

As seguintes categorias de crime podem ser válidas perante certos deepfakes: usurpação de identidade, difamação ou injúria, falsificação, devassa da vida privada, coação e ameaça, discurso de ódio, gravação e fotografia ilícita, ou burla. Nenhuma se aplica ao caso. Pedimos assim aos que alegaram que a caricatura se trata de um crime e de violação das políticas da plataforma que justifiquem o que pensam, apontando os artigos em específico correspondentes à infração. Em baixo podem ver a ilustração que levou a um processo judicial do reverendo Jerry Falwell sobre o pornógrafo Larry Flynt, caso que chegou ao supremo tribunal dos Estados Unidos — famosamente retratado no filme de 1997 de Milos Forman, The People vs. Larry Flynt. Uma das chaves do argumento da defesa nesse caso foi a plausibilidade da representação — ninguém de bom senso acreditaria que o relato em baixo se trataria de um relato verdadeiro, como, de igual modo, ninguém de bom senso acreditaria que a representação das três moças em cima se trataria de uma representação verdadeira.

Em baixo podem ver outras representações que se enquadram exactamente no mesmo tipo. Convém assim concluir sublinhando duas coisas. Primeiro, a tecnologia da inteligência artificial para produzir fotografias e vídeos é ainda relativamente nova, mas parece claro que por muita verosimilhança que possam exibir as suas produções, o argumento decisivo para classificá-las como difamatórias ou atentatórias contra a honra não é o de essa mesma verosimilhança mas sim o da plausibilidade das representações. Alguém que represente o Papa Francisco aos beijos com o Ayatollah Khoemeni não estará a incorrer nesse caso, pois ninguém de bom senso acreditaria tratar-se de uma filmagem verdadeira; mas alguém que represente o político Fernando Medina aceitando uma mala de dinheiro com subornos com o intuito de prejudicar a reputação estará com grande probabilidade a incorrer num crime de abuso de imagem e difamação.
Por último, seguem-se alguns elementos da legislação europeia pertinentes para o caso, elementos esses que estabelecem a devida liberdade de uso de imagens públicas para fins artísticos, entre os quais se conta a sátira. Do GDPR, “Members shall by law reconcile the right to the protection of personal data with the right to freedom of expression and information, including processing for journalistic purposes and the purposes of academic, artistic or literary expression.” Da directiva 2019/790, “allowed content for the purposes of quotation, criticism, review, caricature, parody or pastiche (…) striking a balance between the rights laid down in the Charter, as the freedom of expression and arts, and the right to property.” E da jurisprudência do ECHR: “satire is a form of artistic expression and social commentary which (…) aims to provoke and agitate. Any interference with the right of an artist to use this means of expression should be examined with particular care”.
No seguimento deste episódio parvo, a Revista Minerva Universitária convidou e convida todos os produtores de conteúdos a inundarem essa rede e a esfera pública em geral com conteúdos semelhantes sobre figuras da nossa praça. Voltamos a sublinhar: a sátira é permitida tanto na lei portuguesa como nas plataformas sociais em geral. Sugerimos que se foquem no universo da “tudologia” e nas suas figuras mais inúteis e mais vaidosas, das tvs, dos jornais, dos podcasts e das redes. Caricaturas de pessoas da nossa equipa ou de projectos pequenos como Despolariza ou Página Um são também bem-vindas.