Numa entrevista, Reed Hastings, o patrão da Netflix, declarou que o maior concorrente da sua empresa era o sono dos indivíduos, e que como qualquer empresa, o objetivo era combater os concorrentes. Apesar do choque desta fórmula, a ideia atrás já tem algumas décadas. Com efeito, entre os anos 70 e 90, economistas e filósofos notaram uma modificação profunda da economia. Enquanto a economia clássica de produção de bens materiais fundava os seus cálculos na escassez das matérias, a economia contemporânea tem cada vez mais a ver com a escassez das capacidades de recepção dos consumidores. Há umas décadas, a produção cultural (apesar de ser enorme) ainda guardava uma forma de equilíbrio com as capacidades de atenção que um indivíduo podia dar. Mas com o desenvolvimento da internet e a revolução numérica, um abismo nasceu de repente entre por um lado o acesso quase infinito aos produtos, e por outro lado a atenção que podemos dar. Hoje basta comprar um computador ou simplesmente um telemóvel, e logo temos acesso a milhares de milhões de livros, filmes, imagens, músicas, vídeos, informações, isto tudo com a facilidade e a rapidez de um clique.
Diariamente, só no YouTube, o equivalente de várias décadas de visualização entra no site. Perante essa superabundância de conteúdos, as nossas capacidades de atenção são terrivelmente limitadas. E foi este desenvolvimento desproporcionado que induziu uma redefinição de uma parte da economia. A questão “como produzir um produto com o menor custo possível e poucos recursos?” passou a ser “Como é que o produto vai chegar a ser visto ou consumido pelo indivíduo?”. Ou seja, passámos de uma economia que pergunta na direção do produto a uma economia que pergunta na direção do consumidor. O recurso raro, já não é a matéria-prima, mas a atenção do consumidor.
A melhor resposta a este abismo teria sido uma forma de educação dos indivíduos para que escolham a maneira como dão a sua atenção neste mundo agora pletórico. O desenvolvimento da economia da atenção necessitava em contrapeso o desenvolvimento de uma ecologia da atenção, onde o indivíduo tinha aprendido o controlo da sua atenção no horizonte da formação da pessoa que é. Mas não foi a resposta que o nosso tempo deu. Em vez de adaptar a abundância aos indivíduos, fizemos para que os indivíduos se adaptem à abundância: redução do sono, multiplicação do tempo passado em dupla-tarefa onde forçamos a nossa mente a prestar atenção a várias coisas em simultâneo, isto tudo para correr atrás do comboio da oferta infinita que nos rodeia. Os psicólogos e os professores foram então em primeira linha para ver as consequências. A explosão dos casos de déficit de atenção (os famosos TDAH) nos últimos 20 anos está intimamente ligada à superatenção que a nossa sociedade criou. Ao puxar o ser humano além dos limites de uma atenção normal, estraçalhou a própria capacidade de dar atenção. E como na questão do ovo e da galinha, a causa e o efeito misturam-se, de tal forma que continuamos a cavar o problema quando desenvolvemos uma atenção cada vez mais rápida e efêmera. Vários estudos mostraram, por exemplo, que as sequências de imagens nos filmes eram mais curtas, isto para reduzir o tempo de atenção que o espetador dá antes de uma nova atenção a uma nova imagem. Bastava fazer uma experiência: pôr várias pessoas de idades diferentes a ver um filme dos anos 60, e ver se os mais jovens não acham o filme aborrecido, demasiado lento, pouco mexido, etc. Difícil, porém, culpar este julgamento da parte de uma geração que deixamos, logo com 8-10 anos, passar horas a ver milhares de vídeos de 30 segundos.
Neste aspeto, as aplicações modernas constituem um ponto fundamental na questão da identidade. Se podemos dizer que a atenção que escolhemos dar a certas coisas determina a formação da nossa identidade (intelectualmente, emocionalmente, socialmente, etc.), as novas aplicações inseriram-se na vida dos indivíduos como respostas estratégicas à superabundância da “oferta atencional”. No entanto, as promessas revelaram-se uma ilusão dramática, que podemos resumir em 4 paradoxos.
1) Quanto mais posso ser diferente, quanto mais sou previsível.
A maior parte daquilo que retém a minha atenção é-me proposto, algoritmicamente, a partir do que supostamente vai me agradar, isto relativamente à certas escolhas feitas no passado. Ou seja, o meu passado hipoteca o meu futuro, no sentido que estou levado a querer, gostar e escolher não tanto através do meu laboratório de curiosidade, mas através de tendências não escolhidas. O problema que sublinha as médias numéricas é que criam objetos que serão os meus objetos de atenção consoante ao registo da minha atenção passada, ou consoante ao registo das atenções dos outros. Não se trata aqui de negar a utilidade que pode ter uma ferramenta que ajuda a descobrir coisas provavelmente interessantes para mim (músicas, livros, pessoas, ideias, etc.), mas de considerar o perigo e o paradoxo de um mundo numérico onde supostamente podemos evoluir em todas as direções (porque não somos teoricamente limitados nas nossas escolhas), mas que realmente nos encerra num túnel de atenção (porque na prática vamos onde a aplicação nos conduz). Quanto mais a minha identidade pode ser fecundada pela variedade infinita à minha volta, quanto mais fico num cantinho previsível e predeterminado.
2) Quanto mais posso alcançar os outros, quanto mais estou sozinho.
A possibilidade de comunicação hoje não tem horários nem fronteiras. Não vale a pena lembrar as vantagens indubitáveis que isto trouxe. Mas temos de distinguir a possibilidade de falar virtualmente com os nossos parentes e amigos e a possibilidade de encontrar pessoas novas virtualmente. Esta distinção parece importante sobretudo relativamente aos jovens, porque construimos a nossa identidade através dos encontros da nossa vida. Nas aplicações onde encontrar pessoas novas (Instagram, Tinder, etc.) desenvolveu-se um mecanismo (ligado à própria estrutura das aplicações) sugerindo que o melhor vem sempre a seguir. Ou seja, aquilo que aparece como uma resposta a um desejo funciona na verdade como a fabricação de uma falta e de uma frustração. No caso de Tinder este mecanismo atinja o seu paroxismo, no sentido que transforma a própria definição de um encontro: o que será o outro, senão o precursor de um outro outro, e este o precursor de um outro outro outro, etc. O mecanismo, em si, não é novo: é o da máquina slot. A esperança de ganhar com a próxima moeda tem mais valor que a moeda em si. Assim é que uma pessoa pode ganhar muito, mas arruinar-se na mesma em benefício do casino. A invasão deste mecanismo no espaço íntimo dos encontros entre pessoas, isto é muito mais recente. No casino, este potencial de ganho é que me leva a perder e sair sem ter nada. Mas que tal quando se trata de encontros entre pessoas? A figura virtual do sempre “outro” é que me leva a deixar a todos sem nunca viver nada senão o meu próprio desejo.
Se pensarmos bem, até é lógico, no sentido que se o verdadeiro objetivo das aplicações de encontro fosse realmente o encontro, o número de utilizadores seria muito mais baixo, e o volume de negócio muito menos alto. Até poderíamos dizer que o conceito da aplicação trabalharia contra o próprio interesse, o que é pouco provável. Se estas aplicações fazem tanto dinheiro, é precisamente porque o encontro não é o objetivo, mas meramente o story-telling. O objetivo, ele, parece ser mais uma perversão e monetização de certas emoções: tentar reter-nos o mais tempo possível ao substituir o prazer do encontro pelo prazer da recompensa individual do “match”. Os dados não mentem: em 2023, por 80 milhares de milhões de utilizadores inscritos, Tinder registou 70 milhares de milhões de match (e 1460 milhares de milhões de swipes). Quanto aos encontros entre pessoas, ninguém fez estatísticas… Posso encontrar milhares de pessoas, multiplicar relações, porém a frustração e o vazia da espera são a minha companhia.
Em 1948, Orwell inventou o Big Brother para simbolizar a maneira como a redução das palavras e das ideias permitia a manipulação de uma população: tirem-lhes a subtileza infinita das palavras e das ideias, e já não conseguirão pensar! Antes de 2048, esperemos que alguém tão genial como Orwell escreve um 2084, onde Big Mother reduzisse as emoções e as suas expressões ao ponto dos indivíduos não conseguirem se inventar na complexidade de emoções partilhadas: tirem-lhes a riqueza subtil das emoções, e já não conseguirão ser pessoas; finalmente serão objetos!
3) Quanto mais posso explorar a minha personalidade, quanto mais me torno impessoal.
Entre o foco dado às profundezas do “eu” na literatura romântica do século XIX e depois com o aparecimento da psicanálise, parecia que os indivíduos eram cada vez mais capazes de explorar às singularidades do ser. É interessante notar que esta busca do “eu” autêntico começou ao mesmo tempo que a sociedade mercantil ajudou a formar identidades voláteis engatadas ao ato consumidor e aos produtos (Não será comum ouvir: “diz-me o que consomes, direi-te quem tu és?”). Mas esta contradição é só aparência: Edward Bernays, o sobrinho de Freud, pioneiro do marketing, aplicou as teorias psicanalíticas do tio à criação das técnicas de marketing. Ou seja, será tão surpreendente constatar que essa ideia de um “eu” único e autêntico se tornou argumento marketing? Os românticos identificaram a identidade às emoções, portanto o marketing fez delas a base instável de uma identidade indecifrável que vamos descobrindo nos atos de compras. As nossas emoções são assim provocadas, instrumentalizadas e modificadas até poderem se materializar num produto, no qual gozamos a partir da esperança de um lucro simbólico (não é por acaso que a ideia mercantil do proveito acabou por fazer parte da linguagem emocional: aproveitar das férias, aproveitar de uma pessoa, etc.)
No que diz respeito à nossa questão, o problema que isto criou foi que a intersubjetividade agarrou-se aos objetos de tal forma que as nossas emoções, supostamente o mais íntimo do nosso ser, não conseguem ser pensadas completamente fora de uma rede objetiva. Assim a intersubjetividade tomou a forma de uma interobjetividade. Para ilustrar isto, podemos pegar no exemplo muito interessante da jornalista inglesa Catherine Townsend, que escreveu artigos para o jornal The Independent sobre a sua vida íntima. Num artigo ela conta a maneira como se prepara para um encontro amoroso. A mulher vai comprar roupa e encontra um vestido bonito, mas caro. Tem uma amiga que lhe diz “este vestido terá o efeito pretendido, garanto-te, vais ficar tão sexy!”. Compra logo a roupa. A roupa foi aqui o objeto através do qual ela se achou sexy e talvez o objeto através do qual realmente o homem vai achá-la sexy. Este pequeno exemplo mostra como os objetos tornam-se vetores de emoções, expressão de si próprio ou criação de emoções nos outros. Assim as emoções agarram-se cada vez mais a uma estrutura material que supostamente vai apoiá-las ou dar-lhes realidade. O objeto vem carregado de uma certa dose de eficiência emocional.
Em si, podia ser genuíno, e afinal de contas, será que não usámos sempre objetos como metáforas de emoções? Metáforas, sim, ; suporte, talvez não. Numa metáfora conseguimos manter uma diferença entre a “coisa” e a imagem na qual ecoa. No caso que estamos a falar, o objeto é que faz a realidade da emoção, e esta não exista fora de uma rede objetiva. E quanto mais os objetos emocionais tomam o lugar das emoções, quanto mais entregamos as nossas emoções à sociedade, que primeiro vai mandar a maneira de expressar a sensibilidade do indivíduo, e depois vai mandar a própria sensibilidade. Sem nos aperceber, acabamos por viver experiências que achamos altamente íntimas, pessoais, mas que afinal se tornam impessoais. Daí nasce um conformismo emocional e uma despessoalização da sensibildade: já não conseguimos pensar o íntimo fora do “mercado emocional”. Neste sentido temos de perceber que muitos conceitos modernos, que são supostos descrever um estado emocional, na verdade não podem ser definidos sem um conteúdo objetivo (em vez de subjetivo). Podemos pensar aqui no conceito emocional recente de “cocooning”. Se perguntarmos à qualquer pessoa, a definição vai sempre falar de uma emoção muito vaga (um “bem-estar”) através de objetos quanto a eles muito específicos: sofá, manta, luz baixa, televisão ou ecrã, roupa quente e confortável, etc. E muitas vezes, o sentimento de “cocooning” é um momento de intimidade entre pessoas. De novo, a intersubjetividade, tão importante na construção da identidade, não consegue encontrar um caminho fora do suporte de objetos que dão realidade à emoção: a intersubjetividade tornou-se interobjetividade. De resto, não é por acaso que o termo de “cocooning” foi inventada por uma consultora de Marketing.
4) Quanto mais livre, quanto mais dependente.
O último paradoxo, talvez o mais perigoso, tem a ver com o fenômeno da dependência e a perda da criatividade. Se criássemos um prato que tivesse a capacidade de se encher sem dar a percepção do enchimento, qualquer pessoa comia mais que pretendido. As aplicações modernas funcionam exatamente desta forma. A diferença é que, enquanto o estômago conheça a sensação de saciedade, a mente, ela, não a conheça. Assim as aplicações funcionam como o lugar onde quanto mais consumo, quanto mais quero uma dose regular ou extra, sem fim. Uma coisa que notaram os analistas de dados é que, a medida que uma pessoa passa tempo numa aplicação, quanto mais muda de conteúdo rapidamente, ou consome vários conteúdos em simultâneo. E isto não por causa de não gostar do conteúdo, mas porque a mente reclama o prazer de mudar, o prazer de passar para algo outro (cf. o segundo paradoxo). O prazer não vem do conteúdo que receba, mas da pura mudança de conteúdo, e qualquer atividade que não consiste em passar de um prazer a um outro acaba por parecer absurdo à mente. Nestas condições, um minuto começa a parecer uma eternidade.
A partir daí, a mente perde algo essencial: o desejo de procurar uma fonte de prazer num horizonte de longo prazo. Se as dependências são tão terríveis e criam ansiedade e depressão, é porque elas não deixam lugar algum ao futuro. Prisioneiro de um presente bulímico e incerto, o individuo perde a capacidade de desenhar um futuro, perde a capacidade de se focar demoradamente em qualquer coisa, perde a capacidade de manter um pensamento estável nele próprio, e até perde a capacidade de tomar uma decisão ponderada.
Vários estudos mostraram que a dependência e a sobrecarga de dopamina (hormônio que recebemos quando sentimos prazer) acelerava a morte das células do cérebro. Empanturrar-se dos prazeres passivos e efémeros das aplicações induz assim uma perda da vontade e da criatividade, duas coisas fundamentais na formação de um indivíduo. Um prazer criativo por norma vem quando acabamos algo. Este sentimento vem em nós como a recompensa do nosso esforço e da nossa determinação, e assim assegura-nos que o nosso trabalho não é inútil, e mantém-se no horizonte de uma realização. Ou seja, o sentimento de prazer não é simplesmente prazer, mas também a fonte de qualquer motivação. Se sobrecarregarmos uma mente de prazeres, ela perde a razão que a faz procurar outras coisas. Muitas pessoas viciadas em aplicações sentem uma contradição, pois no fundo sabem que não estão a fazer aquilo que vai realizar quem são, mas ficam como desmentidos pela descarga de prazer que experienciam. Aí é que é o momento de se lembrar que a felicidade vai além de uma descarga de dopamina. Por isso a inteligência tem de ser “educada” a perceber isto. Portanto, em vez de nos preocupar tanto com o desenvolvimento da inteligência artificial, talvez chegou o tempo de nos preocupar da degeneração da nossa inteligência, e reencontrar o sentido da criatividade.
Como estes distúrbios são psíquicos e não físicos, ninguém parece altamente preocupado, e por enquanto achamos normalíssimo proibir drogas aos menores, quase todos acham absurdo proibir certas aplicações aos menores. No entanto, o mecanismo da dependência é o mesmo, e os danos no indivíduo tanto perigosos. Simplesmente menos visíveis e mais difíceis de medir. Além desta razão, a sociedade também tem dificuldade em perceber como é que a nova geração, repleta de conforto material, possa sofrer tanto, e por isso chama-a de fraca. Após tempos de falta, de dificuldade ou de tédio, é complicado enfrentarmos a ironia estridente do facto do nosso tempo sofrer precisamente da abundância, da facilidade e da distração. E a tarefa é grande, porque precisamos agora usar a disciplina para reaprender a necessidade da falta, o prazer da dificuldade, a fertilidade do tédio. Há pouco tempo essas coisas não tinham a ver com escolha e faziam parte da vida. Hoje, eis que somos obrigados a recriar artificialmente esses elementos através de uma autodisciplina, o que é muito difícil.
Conclusão :
Como se resolverão esses quatro paradoxos da crise de identidade contemporânea? Uma transformação do ambiente atencional parece necessário, tanto a nível social (através de leis capazes de limitar esses danos, e também através da educação) como familiar (através de atitudes comuns) como individual (através de autodisciplina). Cada indivíduo deveria retomar a questão de Nietzsche: será que já amei algo ou alguém ao ponto em que este amor fez brotar em mim a ideia que, para dar a este sentimento precário a realidade de uma arquitetura vibrante, seria disposto a assumir uma parte substancial do meu tempo e da minha energia, e aguentar dificuldades com paciência e fé? De uma certa maneira, temos de voltar a ser crianças. Aqui está uma ideia que parece ridícula, numa época onde precisamente culpamos às pessoas e sobretudo os jovens pela falta de maturidade e a incapacidade de ser adultos. Mas apesar da etimologia, a infantilidade tem mais a ver com a adolescência do que com a infância. A criança é sempre uma vontade de futuro e uma criação de si próprio. Basta ver uma criança que aprenda a andar: vontade de se ultrapassar, persistência na dificuldade, aceitação da dor para se realizar, orgulho e prazer no sucesso. Temos de voltar a ser crianças que aprendem a andar. “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre” (Kierkegaard).
Finalmente, ainda teremos de dar mostra de audácia, à imagem de Diógenes, que ao receber a visita do grande Alexandre na magnificência do seu estatuto, simplesmente pediu que saísse da frente do sol dele. Meditemos a frase de Diógenes, pois hoje em dia, os Alexandres a brilhar a nossa volta são muitos, e o nosso sol, o da nossa identidade, anda a ser tapado.