A Escuridão Branca de David Grann

David Grann conta-nos o nosso sonho, espelhando, melhor do que o que seríamos capazes de expressar, o desejo surdo de conquista sobre a Natureza e sobre a Morte. Além desta fabulação a todos comum, conta-nos “uma história sobre coragem, obsessão e amor.” Conduz-nos, como que num trenó, pela vida em expedição de Henry Worsley.

Trago-vos este livro, A Escuridão Branca, por acreditar que a “atração das pequenas vozes” de que nos fala Shackleton, citado por David Grann, determinam largamente a forma como conduzimos a nossa vida. Henry Worsley talvez fosse assombrado por vozes não tão pequenas assim, pois uma boa parte de nós nunca cometerá as loucuras a que este explorador se votou. Sim, esta é, também, uma história de loucura.

“Trata-se de algo que todos podem compreender. Uma vitória do espírito e da força humanos sobre o domínio e os poderes da Natureza; uma façanha que nos eleva acima da imensa monotonia da vida quotidiana; uma vista para planícies cintilantes, com montanhas altas recortadas pelo frio céu azul, as terras cobertas por camadas de gelo de extensão inconcebível…o triunfo dos vivos sobre a esfera hirta da morte.” (Fridtjof Nansen)

Face à “esfera hirta da morte”, será a história de Henry Worsley de triunfo?

A expedição Nimrod, comandada por Shackleton entre 1907 e 1909 ficou marcada por um sabor agridoce. O objetivo de alcançar o Polo Sul não foi alcançado, embora de todas as partes fosse reconhecida competência ao líder. Aliás, foi isso mesmo que garantiu o regresso da equipa: receando pelo bem-estar dos colegas, Shackleton tomou a difícil decisão de abdicar do objectivo, e regressar em segurança. Entre o seu falhanço de conquistar o Polo e uma possível segunda tentativa, outros foram à conquista do ponto mais inóspito do planeta, deixando-lhe como única possibilidade de fazer história a travessia da Antártida. Acometido pela derrota, ainda que sem ser capaz de acalmar as “pequenas vozes”, arquitetou conjuntamente com 28 outros homens uma nova expedição: uma travessia transantártica, que parecia ser a única muralha de gelo a ser derrubada. O início da expedição foi atribulado, com os Elementos a não colaborarem, obrigando-os a abandonar o navio que os levaria ao início da caminhada. Carregaram os pequenos botes salva-vidas com os seus pertences essenciais, planeando arrastá-los pelo gelo, o que não foi possível dado o peso excessivo. Mantiveram-se durante meses acampados numa ilha de gelo e, quando esta finalmente começou a derreter, reiniciaram a sua navegação. Por esta altura, os exploradores estavam já esgotados; novamente, Shackleton tomou a decisão de abdicar do objectivo. Deixou a maior parte do grupo acampado na Ilha Elefante, fazendo-se acompanhar por apenas dois homens, para pedir ajuda a uma estação baleeira, o que conseguiram após longas diligências burocráticas. Regressando com a equipa de socorro, temiam que parte do grupo ou até a totalidade tivesse perecido. Na aproximação à ilha parecia ser mesmo essa a realidade. Contudo, pequenos pontos em número crescente começaram a ser avistados: todos tinham sobrevivido.

Shackleton não foi um líder polar bem sucedido, se considerarmos milhas percorridas. Talvez possamos dizer que foi um vencedor no que diz respeito ao número de vidas salvas e, ainda mais, no que se refere ao número de vidas que inspirou.

Citando um explorador polar que com ele trabalhou: “(…) numa situação desesperada, quando não parece haver saída, o melhor é ajoelharmo-nos e rezar pelo Shackleton”.

Falemos agora de uma dessas vidas: a de Henry Worsley.

As “pequenas vozes” de Henry começaram a seduzi-lo graças ao conhecimento que tomou das aventuras de Shackleton. Devorou tudo quanto encontrou acerca dele, e, enquanto não concretizou as suas expedições, esse desejo esteve sempre nele latente.

Furtar-me-ei a relatar como surgiu a oportunidade de fazer a expedição ou pormenores de ordem mais prática, uma vez que o espaço é limitado, e, apesar de todo o fascínio que nisso encontro, parece-me ser o menos interessante para o Leitor.

Worsley, com mais dois companheiros, Gow e Adams, iniciou a 30 de Outubro de 2008 a sua primeira expedição polar, com o objectivo de chegar ao Polo Sul. Na chegada ao ponto de partida, os três sentiram-se avassalados pela imensidão branca:

“O que estávamos prestes a empreender foi-nos dado abruptamente a perceber naqueles instantes. Nenhum de nós disse uma palavra.”

Perceberam naquele momento que as dificuldades seriam indescritivelmente bizarras. De crevasses a hipotermias, as formas de perecer pareciam não terminar. Ali, jogava-se numa roleta em que todas as opções escondiam um veredicto: a Morte.

A liderança de Worsley procurava, à semelhança da de Shackleton, manter “uma consciência de humanidade”, fosse fomentando coisas tão básicas como lavar os dentes, fosse incentivando os jogos de cartas ou a escuta de música durante as intermináveis caminhadas, pois, como dizia com frequência, a força está na mente, e essa não se mantém sã olhando incessantemente para um “infinito interminável”. Assim, foi procurando manter os colegas motivados e otimistas, cumprindo o que haviam previamente acordado: não existiriam egos. Gow e Adams cumpriram- no aceitando, quando precisaram, a ajuda uns dos outros. O mesmo não se pode dizer de Worsley, que vendo o cansaço dos outros se recusou a aceitar a ajuda de Adams para carregar parte da carga do seu trenó, que rondava os 140 kilogramas. Como resolveu este problema? Abandonando as refeições-emergência, sem as quais poderia vir a passar fome. Worsley não foi capaz de engolir o orgulho, apesar de a sua vida poder vir a depender disso. Apesar de a sua família o esperar em Inglaterra.

Após 66 dias, chegaram a um reduto de humanidade no Polo Sul, encontrando primeiro uma máquina de lavar roupa avariada, e uns metros à frente uma base de investigação. Regressaram em segurança.

Se fossem o Henry, ou se fossem vocês mesmos, ficariam por aqui? O vosso desejo de triunfar sobre a “esfera hirta da morte” levar-vos-ia a fazer algo mais?

Pois bem, também ao Henry. A “monotonia da vida quotidiana” estava condenada a ser irrompida pelo inconformismo deste explorador. Em 2015, tendo já empreendido todo o tipo de expedições antárticas, escolheu um derradeiro desafio: atravessar a Antártida sozinho, em 80 dias. Escusado será dizer que, ao longo da viagem, os obstáculos se agigantaram, enquanto a força física de Worsley se esvanecia. Os apontamentos do seu diário são tortuosos para quem lê (imagine-se para quem escreveu…). As entradas foram-se tornando cada vez mais sofridas, progressivamente mais toldadas pela “escuridão branca”: de “dias duros” até “Não sou, pura e simplesmente, capaz de ir mais longe (…)”, ou “Desesperadíssimo…a esvair-me (…)”. São numerosas as confissões de sofrimento, todavia acompanhadas em paralelo por comunicações, via rádio, esperançosamente otimistas, pelo menos até certo ponto.

A leitura dos últimos capítulos de “A Escuridão Branca” mostram-nos essencialmente a imagem de alguém que viaja sozinho num deserto com 2300 metros de altitude. É das partes mais

impressionantes, uma vez que espelha os pensamentos de um homem que repete desafios a que respondera acompanhado, desta feita, sozinho. O contraste no sentimento de desgaste é chocante. Nas primeiras expedições, o desgaste parecia ser engolido por uma quarta força que acompanhava os três exploradores, libertando-lhes peso dos trenós. Aqui, o peso consome-o, fá-lo sucumbir, muito embora seja alguém dotado de uma força inimaginável.

O orgulho, ou “obsessão” como é apelidado na capa do livro, toldou-o. Depois de falar com a mulher pelo seu telemóvel satélite, quando já mal se conseguia mexer, premiu, finalmente, o botão que o levaria na “viagem de táxi mais cara do mundo” de volta à humanidade. Já a salvo, mostrou-se entusiasmado com tudo o que faria depois de recuperar, não antecipando, ou não querendo antecipar, o que foi um diagnóstico terminal. Henry Worsley viria a morrer um dia depois de ser resgatado, a 24 de Janeiro de 2016.

Li este livro num folgo. A vida de Worsley é mesmerizante. Mas não posso deixar de notar que uma boa parte das suas decisões me deixam perplexa: o sonho leva o Homem a conduzir a sua vida até às últimas consequências? Um homem descrito como tão devoto à família arrisca a sua vida de forma tão drástica?

São essencialmente estas duas questões que me assolam. Quando li o livro pensei em mim a tomar as mesmas decisões, imaginei que o meu desejo de superar a Morte ou o meu esgotamento fosse tal que não soubesse decidir melhor. Contudo, eu não tive o treino militar duríssimo a que Worsley foi sujeito, eu não me preparei para fazer uma viagem à Antártida, eu não tenho o estofo dele. Ademais, o seu herói abdicou de todos os seus objectivos pela Vida, sua e dos seus companheiros. Porque é que Worsley não seguiu a máxima de Shackleton que ditava que “Um burro vivo é melhor do que um leão morto (…)”? Morrer pela causa da sua vida, sabendo que não terá nem oportunidade de tentar novamente, nem oportunidade de aproveitar o tempo que lhe resta com os que ama, é A Escolha? Saber que os seus filhos e a sua mulher nunca poderão ouvir as suas histórias não o fez ser mais cauteloso? Será que, simplesmente, perdeu o controlo?

Assusta-me e fascina-me como é frágil este equilíbrio em que nos encontramos. Somos realmente como o funâmbulo de Nietszche, balanceando pela praça, com medo da rajada de vento. Se fossemos acometidos por uma paixão tão intensa como a de Worsley, deixaríamos que a rajada nos fizesse cair?

Deixo-vos com um excerto de Giorgio Agamben acerca do que é ser-se contemporâneo, que talvez, de alguma forma, explique as escolhas de Henry Worsley. Em que momento temporal é que ele se terá projetado face à sua arké?

“(…) aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa daquilo que, por alguma razão (o seu carácter traumático, a sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não- vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos.”