A Hipermodernidade Em Gilles Lipovetsky: Será A “Desdefinição” Dos Valores Estéticos?

Por: Ernesto António Mubango Hoguane[1]

Resumo

A estética sempre foi considerada como é tida hoje: apesar de usar termos diferentes, não alterava o seu significado da contemplação do Belo, uma transformação dos elementos alcançáveis através da intuição, da compreensão do Belo, da arte e depois da intuição do interior. O belo e a beleza têm sido objecto de estudo ao longo de toda história da filosofia. Neste artigo, procurar-se-á responder a pergunta: será a “desdefinição” dos valores estéticos nos dias de hoje? Dias, ou mesmo época considerada por Gilles Lipovetsky como a “Hipermodernidade”. No entanto, Gilles Lipovetsky entende a hipermodernidade como um modelo teórico pensado para compreender o mundo contemporâneo principalmente por uma relação entre três lógicas fundamentais: o mercado, a tecnociência e a cultura individualista democrática. Na hipermodernidade, não há escolha, não há alternativa, senão evoluir, acelerar para não ser ultrapassado pela “evolução. Olhando nesta perspectiva a hipermodernidade seria assim a imensa “inversão do tempo” e que constitui assim a supremacia do futuro sobre o passado. Esta realidade não é a versa a realidade moçambicana, por isso, o artigo procurará reflectir numa realidade moçambicana, onde a estética ganha um novo rumo, valorizando-se mais o lucro do que o valor da arte.

Palavras-chave: Hipermodernidade, desdefinição, estética.

Abstract

Aesthetics has always been considered as it is today, despite using different terms, it did not change its meaning from the contemplation of the Beautiful, a transformation of the elements attainable through intuition, understanding the Beautiful, art and after the intuition of the interior. The beautiful and the beauty have been the object of study throughout the history of philosophy. In this article, we will try to answer the question: is it the “since definition” of aesthetic values ​​today? Dias, or even time considered by Gilles Lipovetsky as “Hypermodernity”. However, Gilles Lipovetsky understands hypermodernity as a theoretical model designed to understand the contemporary world mainly through a relationship between three fundamental logics: the market, technoscience and democratic individualist culture. In hypermodernity, there is no choice; there is no alternative, but to evolve, to accelerate so as not to be overtaken by “evolution. Looking at this perspective, hypermodernity would thus be the immense “inversion of time” and thus constitutes the supremacy of the future over the past. This reality is not the opposite of the Mozambican reality, therefore, the article will seek to reflect on a Mozambican reality, where aesthetics gains a new direction, valuing profit more than the value of art.

Keywords: Hypermodernity, definition, aesthetics.

Introdução

O presente artigo tem como tema “A hipermodernidade em Gilles Lipovetsky: será a “desdefinição” dos valores estéticos?”.

As sociedades estão feitas de história, isto é, um tempo e um espaço. Estas noções são representadas por perspectivas distintas, segundo a complexidade técnica e simbólica da social. O tempo é sempre precursor da experiência humana e, qualquer forma de percepção identitária só será possível pelos princípios da inteligibilidade e alteridade. Neste sentido, procurar-se-á ao longo do trabalho compreender a hipermodernidade como um novo tempo histórico.

Novos tempos: novas expectativas, novos desafios, novos valores? É desta maneira que contextualiza-se a presente investigação e o presente artigo. O novo tempo gera muita insegurança, provoca também muito medo e é muito desafiador. Porque o novo tempo nos faz desprender dos paradigmas antigos que fizeram parte da nossa formação epistemológica, dos nossos valores éticos e até mesmo dos nossos valores estéticos.

Nas sociedades actuais, denominadas de “sociedades do conhecimento e da comunicação”, boa parte da humanidade está conectada nas redes sociais via internet. Entretanto, paradoxalmente, nesse novo cenário, está a se criando cada vez mais, isolamento e solidão entre as pessoas, os valores éticos estão a perder o seu efeito, isto porque a moralidade é substituída pela imoralidade; a técnica e a estética é substituída pela moda. Sobre isso, pode-se afirmar que a actual humanidade habita uma espécie de caverna digital. As relações com a realidade concreta, com o toque humano, cada vez mais, se tornam mais raras, são cada vez mais virtuais e, prejudicam a vida humana. É nesta perspectiva que busca-se neste artigo Gilles Lipovetsky para responder a pergunta: será a “desdefinição” dos valores estéticos nas sociedades actuais de modo particular a moçambicana? Numa época em que tende-se mais a dar valor o objecto, a técnica e o mercado, a chamada assim, a época do hiperconsumo”, “hipercomplexidade” e “hipernarcisismo” como trar-se-á ao longo do desenvolvimento desta pesquisa científico-filosófica.

O objectivo do artigo é compreender, a partir das ideias do filósofo francês Gilles Lipovetsky a “desdefinição” dos valores estéticos na sociedade em que vivemos. Mas para a concretização deste objectivo ter-se-á que contextualizar filosoficamente a hipermodernidade; caracterizar a época em que se vive actualmente a partir do profetismo de Gilles Lipovetsky e por fim falar da “desdefinição” dos valores estéticos em Moçambique.

Com efeito, a pesquisa é de natureza qualitativa porque na sua abordagem procura relacionar por meio de uma análise profunda os fenómenos e os pensamentos dos autores que versam sobre o assunto em causa e submetê-los ao juízo crítico, tendo em vista o contexto e os objectivos a alcançar; lida com uma reflexão de problemas que circundam a vivência de uma sociedade, moçambicana em particular. No que concerne ao tipo de pesquisa, é bibliográfica, pois é aquela que procura resolver um problema, com base nas referências teóricas, das obras já publicadas. Para a elaboração do trabalho usou-se o método hermenêutico, que possibilita interpretar as ideias do filósofo Gilles Lipovetsky em relação ao modo de convivência actual; e o método dialéctico, relacionando o dinamismo da ética e estética.

  1. A Contextualização Filosófica da Hipermodernidade

Gilles Lipovetsky[2] filósofo francês, considerado profeta do século XXI os seus escritos tem a sua relevância não só no contexto europeu, mas também, africano e concretamente moçambicano, entende a Hipermodernidade como “um modelo teórico pensado para compreender o mundo contemporâneo principalmente por uma relação entre três lógicas fundamentais: o mercado, a tecnociência e a cultura individualista democrática” (LIPOVETSKY, 2010: 155). Partindo desta concepção da Hipermodernidade pode-se constatar que a Hipermodernidade seria assim uma época, ou seja, uma teoria virada para o consumo e para o benefício próprio mas com auxílio da tecnologia.

Hipermodernidade será também entendida por Lipovetsky e Charles (2004: 25) “como uma sociedade liberal, caracterizada pela fluidez e pela flexibilidade”. Ao caracterizar a hipermodernidade como uma sociedade em movimento, fluida e flexível, Lipovetsky cria uma diferenciação para com a modernidade não mais apenas pela radicalização, mas também apresenta a hipermodernidade como um processo de constante mudança. Estamos numa sociedade em que a ordem das coisas foi invertida. Na modernidade, o indivíduo tinha que se adaptar ao conjunto de regras sociais; na hipermodernidade, os princípios estruturantes da modernidade buscam adaptar-se à sua própria radicalização, difícil seria conciliar esta interpretação com a realidade moçambicana, isto porque a história moçambicana é recente, mas só pelas histórias que temos acompanhado dos nossos antecessores podemos observar que a ordem das coisas até mesmo nas nossas pequenas sociedades foi invertida.

Por essa perspectiva, a hipermodernidade como um modelo teórico tem como função mais de ajudar no entendimento das transformações sociais por que as sociedades actuais estão passando. O principal motivo para Lipovetsky dominar o modelo teórico de hipermodernidade está na maneira como que ele interpreta as transformações actuais da modernidade. Lipovetsky vê nosso tempo mais como uma realização dos fundamentos da modernidade do que uma ruptura com esse período histórico como muitos outros filósofos apontaram nas suas lucubrações. Para Lipovetsky a hipermodernidade não seria só uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez e pela flexibilidade como ficou descrito acima, mas também como “uma sociedade indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer” (LIPOVETSKY & CHARLES, 2004: 25).

Lipovetsky fundamenta que não seria apropriado usarmos o termo “pós-modernidade” para indicar as transformações na modernidade. “Pós” e assim consideramos seria o mesmo pensar de maneira constante, não como um desenvolvimento que nos levará do ponto A para o ponto B. De acordo com Lipovetsky e Charles:

O neologismo pós-moderno tinha um mérito: salientar uma mudança de direcção, uma reorganização em profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades democráticas avançadas. Rápida expansão do consumo e da comunidade de massa; enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares; surto de individualização; consagração do hedonismo e do psicologismo; perda da fé no futuro revolucionário; descontentamento com as paixões políticas e as militâncias (Ibidem, 52).

Tendo em conta as características acima descritas Lipovetsky considera a época pós-moderna fracassou, por isso, deveria se passar da era do pós para a época do híper. É neste contexto que Lipovetsky considera da nova sociedade moderna como a hipermodernidade e caracterizada assim por mais duas eras, nomeadamente: hiperconsumo e hipernarcisismo. Esta nova era do híper trata-se não mais de sair do mundo da tradição para aceder à racionalidade moderna, e sim de modernizar a própria modernidade, racionalizar a racionalização.

Na hipermodernidade, não há escolha, não há alternativa, senão evoluir, acelerar para não ser ultrapassado pela “evolução”: o culto da modernização técnica prevaleceu sobre a glorificação dos fins e das ideias (Cf. Ibidem, 57). Olhando nesta perspectiva a hipermodernidade seria assim a imensa “inversão do tempo” e que constitui assim a supremacia do futuro sobre o passado. Com a hipermodernidade morre as utopias colectivas e intensificam-se as atitudes pragmáticas de previsão e prevenção técnico-científicas. Importa salientar com Gilles Lipovetsky nasce a “Ética do Futuro”. Por isso, que as suas ideias mesmo escritas no século passado, sem fazem sentir nos dias que correm; mesmo escritos no contexto europeu e francês, atravessa as fronteiras e o continente e toca as sociedades particulares, um dos exemplos desta realidade é moçambicana. Trilhando o pensamento de Lipovetsky e Charles constata-se que

na hipermodernidade, a fé no progresso foi substituída não pela desesperança nem pelo niilismo, mas por confiança instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias” (Ibidem, 70).

Para Lipovetsky, a hipermodernidade aponta, no contexto actual, para uma nova mudança de temporalidade, configurando o que podemos chamar de “o tempo presente”. Daí ter-se algo como uma revolução permanente, uma revolução do quotidiano. Para Charles, pensar a questão temporal na hipermodernidade é situar o tempo presente como o centro de referências das transformações. De acordo com esse autor:

Tendo o passado e o futuro sido desacreditados, existe a tendência a pensar que o presente se tornou a referência essencial dos indivíduos nas democracias, pois esses últimos romperam definitivamente com as tradições que a modernidade varreu e se desviaram daqueles amanhãs que nem chegaram a enaltecer muito (Ibidem, 14).

Se a questão temporal é tão importante, principalmente com a primazia do tempo presente, para a compreensão das transformações do mundo contemporâneo, esse elemento não passa despercebido por outros pensadores, como o antropólogo francês Marc Augé, também atento à questão temporal, o qual diz que a “História está em nossos calcanhares” (AUGÉ, 1992: 2). Faz com isso referência ao encurtamento do tempo na ocorrência de situações históricas significativas, como, por exemplo, a queda do Muro de Berlim em 1989, um facto relevante para nossa história que ocorreu há menos de 30 anos. Outro pensador, Cornelius Castoriadis, também atento à primazia do aqui e agora, diz:

Mais precisamente, há actualmente um tempo imaginário que consiste na negação do verdadeiro passado e do verdadeiro futuro, um tempo sem verdadeira memória e sem verdadeiro projecto (2006: 259).

Castoriadis chama a atenção para algo que pode ser chamado de “achatamento”, no qual é dada a mesma importância e significação às coisas, configurando um “perpétuo presente”. Tudo o que fazemos é urgente, e em todas as esferas da vida, e não apenas no trabalho, para uma busca de maior produtividade, como estávamos de certa maneira acostumados a ouvir desde a intensificação da industrialização no século XIX. A urgência como forma generalizada de viver o presente, de ocupar todo o tempo, ou o máximo possível, com o que desejamos, sem esperar, e sem se restringir, é algo novo, uma transformação que chamou atenção desses pensadores.

A mudança do eixo temporal do futuro na modernidade para o presente na hipermodernidade, sem dúvida, tem influência nas transformações da cultura individualista democrática, mencionada no início desde capítulo como um dos três elementos de referência para as análises de Lipovetsky.

Lipovetsky (2005: XV) ao dizer que “estamos vivendo uma segunda revolução individualista” tem como referência a primeira revolução individualista, o individualismo nascido na modernidade e que apresentava uma liberdade de acção em face das tradições já anunciada pelos ideais das Luzes. A segunda revolução individualista liberta o indivíduo da referência do futuro para conceber seu bem-estar. Ao fazer relações como a apresentada, entre a primeira revolução individualista da modernidade e uma segunda sendo percebida mais recentemente, Lipovetsky deixa claro que é a modernidade seu principal parâmetro para pensar a hipermodernidade, sendo esta última uma maneira tanto de contemplar uma análise sobre a radicalização dos elementos da modernidade, quanto de observar na sociedade contemporânea fenómenos paradoxais.

  1. O Superlativo “Híper” como guia das Sociedades Actuais

Muitos pensadores procuram encontrar nomes para o tempo em que vivemos, alguns encontram traços com a modernidade e outros ainda não encontra nenhum traço com a modernidade, procurando assim denominar de tempo contemporâneo, e outros ainda mais colocam sugere algo novo em sequência da condição acima da modernidade colocando na condição “pós-moderna”. Para além dos termos descritos anteriormente não são os únicos constatamos também termos como “supermodernidade”, “ultramodernidade, “modernidade reflexiva” para nomear o novo tempo que vivemos. Charles porém, por outro lado, acredita que a “hipermodernidade” é o termo que melhor representa essa radicalicalização, ou seja, ele considera que a época em que vivemos poderia ser designada por “hipermodernidade”. Segundo ele

O termo hipermodernidade me parece o mais adequado pelo facto de o superlativo “híper”, como demonstrou Lipovetsky, adaptar-se melhor à ideia de uma radicalização da modernidade, como prova a sua reutilização sob diversas formas: hiperligação, hipertexto, hiperpotência, hiperterrorismo, etc. (CHARLES, 2009: 22).

Adoptando o superlativo “híper” como a melhor expressão de radicalização, Lipovetsky e Charles na obra Tempos hipermodernos” apresentam outros termos para além do “hipermodernidade” para caracterizar da melhor forma o tempo em que vivemos “hiperconsumo”, “hipercomplexidade” e “hipernarcisismo”. Imbuídos no pensamento de Lipovetsky e Charles caracterizar-se-á a seguir os termos mencionados. Segundo os autores:

Hiperconsumo: um consumo que absorve e integra parcelas cada vez maiores da vida social, que funciona cada vez menos segundo o modelo de confrontações simbólicos caro a Bourdieu; e que, pelo contrario, se dispõe em função de fins e de critérios individuais e segundo a lógica emotiva e hedonista que se faz que cada um consuma antes de tudo para sentir prazer, mais que revitaliza com outrem. O próprio luxo, elemento da distinção social por excelência, entra na esfera do hiperconsumo porque é cada vez mais consumido pela satisfaço que proporciona, e não porque permite exibir status (LIPOVETSKY & CHARLES, 2004: 25-26).

Na modernidade, cada vez mais mecanismos são gerados para aumentar o consumo. Metodologias de produção, técnicas de marketing, investimento em publicidade, tudo fez com que hoje exista um hiperconsumo, que não se restringe mais a um horário ou local específico. O comércio pode ficar aberto ainda em horário e dia específico, mas, com lojas na Internet, a empresa oferece a possibilidade de compra 24 horas por dia, da mesma maneira que não se restringe a uma oferta local, mas aproveita a possibilidade de comprar no mundo todo, não se direcciona mais a uma pequena classe de consumidores, e sim a todas as classes de consumidores, desenvolvendo produtos e serviços específicos, e segmentando a sociedade em idades, géneros, estilos. O hiperconsumo, sem dúvida, é um dos principais elementos da hipermodernidade e de influência na percepção de bem-estar dos indivíduos.

Outro termo destacado por Charles, a “complexidade”, como elemento a ser observado na hipermodernidade, tem ligação com a dificuldade de compreender o mundo actual: frequentemente termos como “ambiguidade”, “volatilidade”, “incertezas” são elencados para traduzir nossos tempos. Realmente complexos são movimentos como o da intensificação do desapego, já observado na modernidade com as tradições, convivendo com a motivação para, cada vez mais, visitar e conhecer o passado. Na hipermodernidade, esses e outros fenómenos paradoxais simultâneos tornam o que já era complexo, hipercomplexo. Para Charles:

Hipercomplexidade: pode-se entender uma sociedade liberal caracterizada por uma lógica paradoxal, lógica que existia na modernidade e na pós-modernidade, mas que foi levada ao extremo, na qual coexistem, por um lado, a crispação, a reacção, o conservadorismo, o recuo comunitário, o retorno à tradição, mas a uma tradição reciclada pela lógica da modernidade e, por outro lado, o movimento, a fluidez, a flexibilidade, o desapego com relação aos grandes princípios estruturantes da modernidade (a nação, o Estado, a religião, a família, os partidos políticos, os sindicatos), que tiveram de se adaptar ao ritmo hipermoderno para não desaparecer (CHARLES, 2009: 17).

O último dos três elementos destacados por Lipovetsky e Charles é o narcisismo. Os autores empregam o termo “hipernarcisismo”. Segundo eles

Hipernarcisismo: época de um Narciso que ares de maduro, responsável, organizado, eficiente e flexível e que, dessa maneira, rompe o Narciso doa anos pós-modernos, hedonistas e libertário (LIPOVETSKY & CHARLES, 2004: 26).

Lipovetsky, em 1983, dizia que “hoje em dia é Narciso que aos olhos de considerável número de pesquisadores, principalmente americanos, simboliza os tempos atuais” (Ibidem, 52). O autor resgata uma figura mitológica para ilustrar o processo crescente do individualismo que se intensificou na modernidade e que se radicalizava de uma maneira narcísica, expressada na relação de cuidado consigo mesmo e com seu corpo. O indivíduo demonstra o desapego cada vez maior em relação às tradições, mas também às obrigações sociais com o colectivo e com o futuro. Sem as referências externas limitantes, o indivíduo age de maneira individualista e hedonista. O “hipernarcisismo” refere-se ao indivíduo que, ao experimentar cada vez mais o cuidado consigo mesmo, e o contacto com o sentimento de liberdade diante das normas colectivas que o regiam, também entrou em contacto com sentimentos de desorientação e com a responsabilidade pelos seus actos. “Época de um Narciso que toma ares de maduro” é a referência à percepção crescente do indivíduo em relação à responsabilização.

A pergunta que se coloca é: quanta vez constatou-se a necessidade de mais consumo para os consumidores e lucro nos negociantes moçambicanos? Quantas vezes constata-se com o hipercomplexo para com os cidadãos moçambicanos? E quantas vezes cuidámo-nos de forma exagerada? É nesta perspectiva que afirma-se que Lipovetsky é um filósofo do futuro porque já havia previsto estas realidades que tem se feito sentir nos dias de hoje. Hoje não só no Ocidente, mas também, na África concretamente em Moçambique o hiperconsumo, hipercomplexo e hipernarcisismo é uma realidade. Mas será só isso que tem acontecido nas nossas sociedades?

  1. Será a “desdefinição” dos valores Estéticos dos dias de Hoje?

O tempo que vivemos hoje, cujo, o nome ficou acima descrito como o tempo dos híper, possui grandes e muitos desafios. Lipovetsky aponta a técnica, a mídia, e a estética como alguns desafios. Lipovetsky em muito dos seus escritos aponta o “consumo” como o grande factor do individualismo, do narcisismo e do egoísmo nos tempos actuais.

Para Lipovetsky a moralidade hoje é substituída pela imoralidade; a técnica e a estética é substituída pela moda. Neste subtítulo, por seu turno o último, procurar-se-á reflectir em torno da ética e estetização do mundo como um dos desafios da hipermodernidade. Antes mesmo de adentrar no ápice do presente subtítulo, importa conceptualizar e contextualizar o conceito Estética, conceito este, que será importante neste item.

A estética (aisthetikós, de aisthenesthai: perceber, sentir) é um dos ramos da filosofia. O termo “estética” foi criado por Baumgarten (séc. XVIII) para designar o estudo da sensação, a ciência do belo, referindo-se à empina do gosto subjectivo, àquilo que agrada aos sentidos, mas elaborando uma ontologia do belo (JAPIASSÚ & MARCONDES 2001, 68.).

Com o conceito acima dado mostra que a beleza é vista como uma harmonia das realidades naturais existentes no universo. Seria isso que atrai o homem a apreciar o belo não basta pelo aquilo que vimos mas sim pela beleza que está por de traz daquilo que o vemos. É o amor que nos leva a contemplar a beleza.

A estética enquanto disciplina filosófica surgiu na antiga Grécia, como uma reflexão sobre as manifestações do belo natural e artístico. O aparecimento desta reflexão sistemática é indispensável da vida cultural das cidades gregas, onde era atribuída aos dramaturgos, arquitectos e escultores desfrutavam de grande reconhecimento sociais. A estética é baseada na arte de bem interpretar o que nos chama atenção que cria um susto e espanto. Segundo Hegel,

a essência da arte consiste na livre totalidade de que resulta da íntima união entre o conteúdo e a forma que lhe mais adequada só na arte clássica aparece esta realidade que é conforme ao conceito do belo em que a arte simbólica, em vão procurou atingir (HEGEL, 1958: 7).

A arte clássica de muitos e vários modos procurou alcançar o seu lugar e colocar-se no seu contexto que tudo dava o sentido de que o seu carácter e de contemplar as coisas da natureza, assim ficou conhecida como sua característica. A arte clássica é caracterizada através da profunda união entre o conteúdo e a forma que se encontra no ideal, ela foi sempre suspeita e acusada de antropomorfismo, porque concebe a livre espiritualidade na maneira de uma individualidade de compreender e determinar as coisas postas nas suas manifestações. Hegel citando, Xenófanes diz:

se deus criou o homem à sua imagem, o homem fez o mesmo e criou deus à sua imagem humana. A arte clássica que o homem usava para descrever e contemplar o belo era insignificante, por causa da maneira muito popular sem transcender os sentidos da compressão que caia no concreto (Ibidem, 21).

Portanto, segundo Lipovetsky,

A pós-moralidade não é sinónimo de imoralidade. Três elementos possibilitam destacar bem a persistência dos ideais éticos em contexto individualista. Em primeiro lugar, o desaparecimento de uma moral incondicional não teve como consequência a difusão de comportamentos egoístas no conjunto do corpo social. Em segundo lugar, o relativismo de valores não contribuiu para o niilismo moral porque perdura um núcleo duro de valores democráticos, núcleo em torno do qual se afirma um consenso forte. E, por fim, a perda dos referenciais tradicionais não resultou no caos social, dado que a liberação individual, especialmente no pleno sexual, não produziu uma anarquia total dos costumes (Ibidem, 39).

Regressando ao mundo antigo e aos séculos passados constatamos que as artes em vigor nas sociedades ditas primitivas não foram em absoluto criadas com uma intenção estética e tendo em vista um consumo puramente estético, “desinteressado” e gratuito, mas com uma finalidade principalmente ritual. Nessas culturas, o que pertence ao estilo não pode ser separado da organização religiosa, mágica, clânica e sexual. Inseridas em sistemas colectivos que lhes dão sentido, as formas estéticas não são fenómenos com funcionamento autónomo e separado: a estruturação social e religiosa é que em toda parte regula o jogo das formas artísticas. Trata-se de sociedades em que as convenções estéticas, a organização social e o religioso são estruturalmente ligados e indiferenciados. Traduzindo a organização do cosmos, ilustrando mitos, exprimindo a tribo, o clã, o sexo, cadenciando os momentos importantes da vida social, as máscaras, os penteados, as pinturas do rosto e do corpo, as esculturas, as danças têm inicialmente uma função e um valor rituais e religiosos (Cf. LIPOVETSKY & SERROY, 2014: 14). Mas hoje o mundo, os valores estéticos, éticos, culturas são remodelados essencialmente por lógicas de mercantilização e de individualização extremas, isto é, todo é feito por meio mercantil e de negócio.

De acordo com Lipovetsky & Serroy (2014: 20) nos tempos em que vivemos há estetização dos mercados de consumo, o capitalismo artista multiplica os estilos, as tendências, os espectáculos, os locais da arte; lança-se continuamente novas modas em todos os sectores e cria-se em grande escala o sonho, o imaginário e as emoções. E isto leva a “desdefinição” dos valores éticos e artísticos.

Hoje a arte torna-se um universo de superabundância ou de inflação estética que se molda diante dos nossos olhos: um mundo transestético, uma espécie de hiperarte, em que a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida comum. O domínio do estilo e da emoção se converte ao regime híper: isso não quer dizer beleza perfeita e consumada, mas generalização das estratégias estéticas com finalidade mercantil em todos os sectores das indústrias de consumo. Uma híper arte também na medida em que não simboliza mais um cosmos, não expressa mais narrativas transcendentes, não é mais a linguagem de uma classe social, mas funciona como estratégia de marketing, valorização distractiva, jogos de sedução sempre renovados para captar os desejos do neoconsumidor hedonista e aumentar o facturamento das marcas.

Olhando a realidade moçambicana, observa-se nenhum objecto, por mais banal que seja, escapa hoje da intervenção do design e de seu trabalho estilístico, até os produtos que outrora eram estritamente utilitários e tinham um pouco a ver com a dimensão estética (telefones, relógios, óculos, material esportivo ou de escritórios, roupas de baixo, transportes colectivos) são agora redesenhados por designers, quando não artistas de vanguarda, repaginados continuamente, transformados em acessórios de moda. Um estilo que se estende até aos territórios dos aromas, dos sons e das sensações tácteis. Aquilo que outrora Lipovetsky considerou de “O estilo como novo imperativo económico” (LIPOVETSKY & SERROY, 2014: 36).

Hoje não só em Moçambique, mas em todo canto do mundo, não se vende apensa um produto, mas estilo, elegância, beleza, coll, emoções, imaginário, personalidade. Como afirmou Lipovetsky & Serroy que “o mundo mercantil se tornou ao mesmo tempo valor de uso, valor de troca e valor estético: o capitalismo artista é esse sistema no qual industria e arte, mercado e criação, utilidade e moda, marca e estilo não são mais disjuntos” (Ibidem, 37). E tudo é pensado e realizado para parecer o que Lipovetsky considerou de “tendência”, seduzir, ser imagem e novo, produzir efeitos visuais e emocionais.

Os termos utilizados para designar as profissões e as actividades económicas hoje também trazem a marca da ambição estética: os jardineiros se tornaram paisagistas; os cabeleireiros, hair designers; os floristas, artistas florais; os cozinheiros, criadores gastronómicos; os tatuadores, artistas tatuadores; os joalheiros, artistas joalheiros; os costureiros, directores artísticos; os fabricantes de automóveis, “criadores de automóveis”. Assim, o capitalismo artista não criou apenas um novo modo de produção, mas favoreceu, com a cultura democrática, o advento de uma sociedade e de um indivíduo estético ou, mais exactamente, transes tético por não depender mais do estetismo à moda antiga, compartimentado e hierarquizado. Vivemos num universo quotidiano transbordante de imagens, de músicas, concertos, filmes, revistas, vitrines, museus, exposições, destinos turísticos, bares descolados, restaurantes que oferecem todas as cozinhas do mundo (Ibidem, 22). Nisto nasce uma nova ética, a chamada “ética estética hipermoda” que segundo os autores a ética estética hipermoderna se mostra impotente para criar uma existência reconciliada e harmoniosa: nós a sonhamos voltadas para a beleza, e ela é voltada para a competição (Ibidem, 24).

O aumento dos profissionais das artes não é o único fenómeno a ser levado em conta. O capitalismo artista também é o sistema que contribuiu para democratizar largamente a ambição de criar, com um número cada vez maior de indivíduos exprimindo o desejo de exercer uma actividade artista paralelamente a seu trabalho profissional, observa-se hoje no nosso belo País Moçambique a “desdefinição” da estética, isto porque grande número de amadores tem níveis equivalentes a certos profissionais. E graças às ferramentas informáticas e à internet, o fosso entre profissional e amador não para de diminuir. São incontáveis os artistas plásticos, os videomakers e fotógrafos amadores.

Com a época hipermoderna se edifica uma nova era estética, uma sociedade superestetizada, um império no qual os sóis da arte nunca se põem. Os imperativos do estilo, da beleza, do espectáculo adquiriram tamanha importância nos mercados de consumo, transformaram a tal ponto a elaboração dos objectos e dos serviços, as formas da comunicação, da distribuição e do consumo, que se torna difícil não reconhecer o advento de um verdadeiro “modo de produção estético” que hoje alcançou a maioridade. Chamamos esse novo estado da economia mercantil liberal de capitalismo artista ou capitalismo criativo, trans-estético.

Conclusão

Do que foi dito pode se concluir que se a hipermodernidade é caracterizada segundo Lipovetsky por consumos emocionais e indivíduos preocupados com a própria saúde e segurança, não será a ascendência da barbárie sobre as nossas sociedades. Segundo o mesmo, o erro de uma visão reducionista, será o de considerar o sujeito hipermoderno hermético e desligado do passado e do futuro, em que a cultura do presente é aquela que assume a eternidade desse mesmo presente.

Conclui-se também que tal conceptualização deixa passar excessivamente em branco as tensões paradoxais que animam o regime do tempo na hipermodernidade. Na hipermodernidade, a fé no progresso foi substituída não pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma confiança instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias, isto é, vive-se hoje nas nossas sociedades o tempo dos híper, o hiperconsumo, hipercomplexidade e hipernarcisismo.

Não navegamos na dúvida de os tempos mudam ou não. O nosso mundo hipermediatizou-se, no qual o papel social da arte, ao contrário do que pretendem algumas afirmações, não está de forma alguma em declive, mas sim, está a mudar o seu sentido clássico, porque hoje valoriza-se mais as artes que não educam do que aquelas que educam, as artes hoje não possuem o valor artístico mas sim está virada a moda e ao consumo. Uma última ideia, a de que a cultura não só produz uma percepção do mundo, mas num sentido mais radical, produz a realidade. Hoje vive-se a “desdefinição dos valores estéticos”. Mas que volte a se valorizar as artes e a estética tem que se dar o seu valor nas sociedades.

Bibliografia

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HEGEL, G. W. F., Estética, a arte clássica e arte romântica, 2ª ed., Guimarães, Lisboa, 1958.

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www.google.com/gilles_lipovetsky_acessado_20_Março_de_2020


  1. Ernesto António Mubango Hoguane, frequenta o Mestrado em Ética e Filosofia Política na Universidade do Porto (Portugal). É Licenciado em Ensino de Filosofia com Habilitações em Ética pela Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique). Professor de Filosofia e Ética, Pesquisador de Filosofia Africana afeto ao Grupo de Estudos de Filosofia Africana e Relações de Género coordenada pelo Professor Catedrático José P. Castiano no Departamento dos Estudos Filosóficos e Culturais da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia da Universidade Pedagógica de Maputo. Pesquisador no Instituto Filosófico da Universidade do Porto em Philosophy Public Space.


    Autor da obra Em busca da Felicidade Perdida: Da Felicidade Individual à Felicidade Colectiva, pela editora moçambicana Inter Escolas Editores publicada em 2021. Vários artigos publicados em revistas científicas e jornais de opinião.E-mail: netohoguane@hotmail.com



  2. Gilles Lipovetsky nasceu em Milau no dia 24 de Setembro de 1944 é um filósofo francês, teórico da hipermodernidade, autor dos livros A Era do Vazio, O Luxo eterno, A terceira mulher, O império do efémero, A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, entre outros. Em suas principais obras, sobretudo em A Era do Vazio, analisa uma sociedade pós-moderna, marcada, segundo ele, pelo desinvestimento publico, pela perda de sentidos das grandes instituições morais, sociais e politicas, e por uma cultura aberta que caracteriza a regulação “cool” das relações humanas, em que predominam tolerância, hedonismo, personalização dos processos de socialização e coexistência pacifico-lúdica dos antagonismos-violência e convívio. (www.google.com/gilles_lipovetsky_acessado_20_Março_de_2020) importa salientar que Lipovetsky é o autor do termo “híper”.