A Melodia Transcrita: A Intersecção de Rossini e Beethoven na Tradição Musical

A Melodia Transcrita: “A Intersecção de Rossini e Beethoven na Tradição Musical”: Um estudo etnomusicológico sobre a circulação de temas melódicos na Europa do século XIX

“O Enigma das Melodias Cruzadas”

Era uma noite fria e húmida, típica do inverno lisboeta, quando me dirigi à casa do sociólogo da música Jorge Lima Barreto. A cidade, mergulhada numa quietude quase sinistra, contrastava com o zumbido de ideias e teorias musicais que ecoavam na minha mente. O caminho até ao número indicado, num bairro de ruas estreitas e empedradas, parecia estender-se por um labirinto de sombras, como se o destino estivesse a preparar-me para algo mais do que uma simples reunião de amigos.

Aquele encontro, marcado há semanas, era aguardado com expectativa. Jorge, uma figura excêntrica, mas genial, acolhia-nos no seu refúgio intelectual, uma morada onde o jazz, a música erudita e o experimentalismo se fundiam como enigmas à espera de serem desvendados. Juntavam-se a nós dois jovens que, embora alunos meus, traziam uma perspectiva inquieta e provocadora ao nosso círculo: Carlos Andrade, um músico amador com uma certa inclinação para o mistério das composições, e Gonçalo Falcão, designer e agora director da revista “Jazz.Pt”, cujas ideias disruptivas pareciam sempre à beira de nos conduzir para o inesperado.

A sala de Jorge, envolta em penumbra, era decorada com pilhas de discos, livros e instrumentos dispostos como relíquias de uma investigação sem fim. O ar, carregado de uma leve fragrância de madeira antiga e vinil desgastado, parecia evocar histórias de melodias esquecidas, de compositores há muito mortos mas cujas notas persistiam no tempo. Sentámo-nos em redor da mesa, enquanto Jorge preparava um tabuleiro de vinis que prometia ser o nosso desafio da noite: o famoso jogo de Blindfold Test.

O jogo era simples, mas envolvia uma astúcia quase sherlockiana: cada um de nós deveria escolher uma peça musical sem revelar o autor, enquanto os restantes tentavam adivinhar de quem se tratava, qual a obra e, idealmente, qual a versão. Um exercício de memória, intuição e conhecimento musical profundo.

O ambiente estava calmo, mas uma tensão subtil pairava no ar. Sabíamos que aquela noite poderia reservar-nos uma surpresa, uma revelação que nos escapava ainda. Quando Carlos Andrade se levantou, com um leve sorriso enigmático, para colocar o próximo disco, algo no seu olhar sugeria que ele tinha preparado um enigma especial para nós. As primeiras notas ecoaram pela sala. Uma melodia familiar, mas ao mesmo tempo perturbadoramente fora de lugar. Algo não batia certo.

Era neste momento que, sem saber, nos aproximávamos de um mistério que ligaria duas figuras gigantes da música — Rossini e Beethoven — numa teia de sons cruzados, uma charada musical que iria desafiar o nosso entendimento e colocar em questão séculos de história.

Mas o que seria? E como poderíamos resolver este enigma? Naquela noite, um segredo escondido nas entrelinhas da história da música seria desvendado, e nós, como detectives num romance de mistério, estávamos prestes a descobrir a verdade por trás de uma melodia que viajara no tempo.

O que parecia ser apenas mais um jogo transformava-se agora num caso musical que desafiaria tudo o que pensávamos saber. A resposta estava ao nosso alcance, mas teríamos nós a acuidade suficiente para desvendá-la?

A Noite do “Blindfold Test”


“De Rossini a Beethoven, ou o Jogo das Aparências”

O contexto era descontraído, mas envolvia uma actividade que exigia concentração — o jogo do Blindfold Test. A proposta era simples: alguém escolhia uma peça musical, e os outros tentavam adivinhar o autor, a obra, ou até a versão interpretada. Parecia uma noite de lazer para três músicos entusiastas, mas o que começou como um jogo despretensioso acabaria por se tornar o ponto de partida para uma das descobertas mais surpreendentes da minha carreira enquanto etnomusicólogo.

Carlos Andrade decidiu então colocar um quarteto de cordas. De imediato, algo me soou familiar, embora não conseguisse identificar a peça de imediato. A melodia soava conhecida, mas a instrumentação — um quarteto de cordas — não parecia encaixar com a memória que eu tinha. Foi aí que comecei a tentar organizar as ideias. “Isto é de uma ópera de Rossini”, disse eu. Mas no mesmo instante, Carlos corrigiu-me: “Não, isto é o segundo andamento do penúltimo quarteto de cordas de Beethoven, o opus 132.” O choque foi imediato. Como poderia a minha mente associar uma melodia beethoviana a uma ópera de Rossini?

A Busca pela Melodia Perdida


“Rossini ou Beethoven? Uma Questão de Antecipação Melódica”

Ainda intrigado, decidi verificar se a minha memória me estava a pregar partidas. Liguei para o meu amigo, o pianista Manuel Guimarães, e cantei-lhe a melodia que tanto me perturbava. Ele, sem hesitar, respondeu: “Isso é da ópera La Gazza Ladra de Rossini!” O meu espanto foi total. Coloquei o disco da referida ópera, e o que ouvimos foi a confirmação daquilo que eu tinha pressentido: a melodia era quase idêntica à do quarteto de Beethoven.

Foi então que comecei a considerar a hipótese de Rossini ter copiado a melodia de Beethoven, ou pelo menos se ter inspirado nela. Naturalmente, fui verificar as datas de composição das duas obras. E para minha grande surpresa, a ópera de Rossini, La Gazza Ladra, tinha sido composta em 1817, enquanto o quarteto opus 132 de Beethoven só foi finalizado em 1825. Como seria possível? Sempre imaginei que, caso houvesse influência entre ambos, seria Rossini a “beber” da tradição alemã, e não o contrário.

Os Encontros Entre Rossini e Beethoven


“Quando o Pequeno Alemãozinho Conhece o Mestre”

Determinado a descobrir mais sobre esta ligação melódica, aprofundei a minha pesquisa. Através de leituras, descobri que Rossini e Beethoven se tinham encontrado pelo menos duas vezes, uma em 1813 e outra em 1816. E mais relevante ainda: Beethoven, no seu último encontro em 1816, teria mostrado a Rossini alguns esboços dos seus últimos quartetos de cordas, que ainda estavam em desenvolvimento.

Foi aí que a minha hipótese se consolidou. Acredito que Rossini, pressionado a compor a abertura de La Gazza Ladra, poderia ter-se lembrado de uma melodia que havia visto nos esboços de Beethoven e adaptou-a para a sua ópera. A melodia seria então uma antecipação de um tema que Beethoven só terminaria anos mais tarde. O compositor alemão era conhecido pelo seu processo lento e meticuloso de composição, e é plausível que Rossini, num momento de urgência, tenha adaptado esse esboço para a sua obra.

Influência ou Coincidência?


“O Etnomusicólogo em Busca de Respostas”

Como etnomusicólogo, a minha preocupação vai além da mera comparação de datas ou da busca por “plágios” formais. O meu interesse centra-se na circulação de ideias musicais, nos encontros e desencontros culturais que moldaram a música europeia do século XIX. A questão aqui não é apenas se Rossini copiou Beethoven. O mais intrigante é entender como estas duas figuras colossais partilharam, consciente ou inconscientemente, um universo sonoro comum. Em que medida Rossini se apropriou de elementos do estilo beethoviano?. E como Rossini, o “Pequeno Alemãozinho”, como era apelidado, assimilou a tradição germânica?

Não se trata de condenar um compositor por copiar outro, mas de entender o fluxo de ideias musicais que atravessaram fronteiras e estilos. É possível que, num encontro casual, Beethoven tenha partilhado algo que, anos depois, surgiria transformado na obra de Rossini. Afinal, a música é, muitas vezes, uma confluência de ideias, influências e inspirações. E de facto assim tinha sido: Beethoven tinha-se encontrado em 1816 com Rossini e tinha-lhe mostrado os seus esboços dos seus últimos quartetos. Um ano mais tarde Rossini, no dia da estreia da sua ópera “La Gazza Ladra” ainda não tinha terminado a Abertura da ópera e o Director do teatro prendeu-o numa sala no teatro e só o deixou sair depois deste ter completado a sua Abertura (que seria esta, a tal influenciada pelo referido andamento do penúltimo quarteto de Beethoven).

A Melodia como Património Comum


“Beethoven e Rossini: Dois Lados de uma Mesma Moeda”

O que podemos tirar desta análise é que a música, tal como outras formas de arte, é um território partilhado. As melodias, harmonias e ritmos são parte de um património comum que transcende o indivíduo. Rossini e Beethoven, embora com estilos e personalidades distintas, operaram dentro de um mesmo universo musical, onde as influências se cruzavam e as ideias fluíam de uma obra para outra.

Este caso, longe de ser uma anomalia, demonstra a riqueza da tradição musical europeia e a forma como compositores de diferentes geografias e estéticas se influenciaram mutuamente. Mais do que uma questão de cópia, estamos a falar de um diálogo melódico que atravessou fronteiras, criando novas formas e expressões artísticas.

Este é o verdadeiro legado da música: um espaço onde o passado e o presente se encontram, onde as ideias se transformam e onde as melodias, como pontes entre épocas, nos lembram da complexa teia de influências que nos une.

O Último Acorde: O Mistério Resolvido com um Sorriso

“A Solução do Mistério e o Desfecho Harmonioso”

A sala, até então imersa num silêncio pesado de reflexão, explodiu numa risada colectiva quando o disco de La Gazza Ladra finalmente soou. A verdade estava ali, inegável, tão clara quanto as notas que ecoavam na sala. Aquela melodia de Rossini, que eu tinha identificado quase instintivamente, coincidia em mais do que um simples acaso com o segundo andamento do quarteto de Beethoven. Um mistério que começara como um simples jogo de Blindfold Test transformara-se num enigma musical digno de uma investigação digna de Sherlock Holmes, mas agora, no desfecho, o ambiente era leve e descontraído, como se tivéssemos resolvido um grande quebra-cabeças.

Carlos Andrade, ainda com o sorriso enigmático no rosto, quebrou o silêncio, batendo com as palmas nas pernas e exclamando: “Bem, quem diria que acabaríamos a discutir um plágio entre Rossini e Beethoven esta noite!” Gonçalo Falcão, recostado na sua cadeira, acrescentou com um tom brincalhão: “Talvez devêssemos publicar um artigo para uma revista de música, não sobre jazz, mas sobre esta charada musical! ‘Beethoven, o Copista de Rossini’ — aposto que ia ser um sucesso!” As risadas ecoaram novamente pela sala.

“De facto,” comecei eu, “não há como negar a coincidência, ou talvez o ‘empréstimo’… Mas a questão é que esta noite provou uma coisa: a música, tal como a vida, é cheia de surpresas. “Quem diria que Rossini, tão rápido e espontâneo a compor, pudesse ter sido influenciado por Beethoven de forma tão… subtil?”. Se foi plágio ou inspiração, isso já não cabe a nós decidir. O que importa é que descobrimos um pequeno mistério que, talvez, nem os próprios compositores soubessem que existia!”

Jorge Lima Barreto, que até então observava em silêncio, com um ar de satisfação pelo rumo que a noite tinha tomado, levantou-se da sua poltrona e disse com um sorriso: “Meus caros, a música é feita destas coincidências e encontros. Às vezes, as melodias vagueiam de um lado para o outro, e os compositores, conscientes ou não, são apenas veículos dessas ideias. O importante é que terminámos esta noite com um mistério resolvido e um bom momento de partilha.”

Ao sairmos da casa de Jorge, o frio da noite lisboeta voltou a envolver-nos, mas o calor da descoberta ainda pulsava em cada um de nós. Carlos e Gonçalo conversavam animadamente sobre outras melodias que poderiam estar “escondidas” em obras que nunca imaginaríamos, enquanto eu caminhava em silêncio, a reflectir sobre como a música nos surpreende até nos momentos mais triviais.

“Sabem,” disse eu, interrompendo a conversa dos dois, “não posso deixar de pensar que, no fundo, a música é como este nosso jogo de Blindfold Test. Nunca sabemos de onde vem a melodia, nem para onde vai. E esta noite mostrou-nos isso mais uma vez.”

Despedimo-nos com abraços, e enquanto cada um seguia o seu caminho, havia uma sensação de leveza no ar, como se tivéssemos partilhado algo mais do que apenas uma descoberta musical. Era a magia do inesperado, do mistério revelado e da amizade cimentada pelas melodias que ecoavam nos nossos pensamentos.

Afinal, naquela noite, o suspense musicológico deu lugar à alegria da descoberta, e todos nós, como detectives musicais, saímos emocionados e com a sensação de que, no fundo, a música — tal como a vida — sempre tem mais a oferecer do que aquilo que esperamos.

“A Melodia Revelada: Análise Comparativa entre Beethoven e Rossini”

No quarteto de cordas opus 132 de Beethoven, podemos identificar, ao minuto 25:22, a melodia em questão, cuja estrutura melódica será, mais tarde, apropriada por Rossini na abertura da sua ópera La Gazza Ladra. Ao ouvirem este excerto, notem como a progressão melódica em Beethoven apresenta uma característica linear e expansiva, típica da sua linguagem harmónica madura. Agora, ao compararmos este fragmento com a abertura de La Gazza Ladra, logo nos primeiros momentos da ópera, podemos claramente identificar a mesma sequência melódica, reinterpretada por Rossini, mas mantendo a essência rítmica e melódica do original de Beethoven.

Este tipo de apropriação, não incomum na época, levanta questões sobre a intertextualidade na música, onde compositores de diferentes tradições podiam, conscientemente ou não, incorporar elementos uns dos outros. Aqui, o encontro entre Rossini e Beethoven parece ter sido marcado por uma partilha de ideias melódicas que transcendem as barreiras estilísticas entre a ópera italiana e o quarteto de cordas alemão.