Texto de Nuno Brito. Revisão de João N.S. Almeida. Resumo: O objeto deste estudo é a unidade poética: “Isilda ou a nudez dos códigos de Barras, de Manuel de Freitas [Lisboa, Black Sun, 2001], incidindo sobretudo no sujeito poético “Isilda”, uma empregada de caixa registadora num supermercado do centro da cidade de Lisboa, na forma como ela reflexiona e apresenta uma leitura dos gestos, atitudes, expressões faciais, dos clientes mais frequentes, não só através das suas características pessoais mas também dos produtos consumidos ou em falta. Afastando- se de uma voz poética tradicional, Isilda representa uma voz silenciada por uma situação laboral precária, instável e insegura. É reflexionada a forma como esta unidade poética apresenta o poema na linguagem verbal lado a lado com as diferentes ilustrações representativas dos códigos de barras, assim como a ligação entre as sequências numéricas que dão origem aos títulos e a palavra poética que consiste na visão humanizada e intuitiva dos clientes mais assíduos. Procura-se ver como número, palavra e imagem coexistem para potencializar a expressividade crítica e a intensidade da força sugestiva e imagética desta unidade poética. Palavras-chave: Poesia Portuguesa Contemporânea; Manuel de Freitas; Voz Poética; Número.
Isilda ou a nudez dos códigos de barras do poeta português Manuel de Freitas é um livro composto por 13 poemas em que a voz poética, Isilda, é uma empregada de caixa registadora num supermercado do centro de Lisboa. O título de cada poema é constituído por uma sequência numérica de 13 dígitos, que corresponde a um número de código de barras, assim por exemplo, o poema inicial intitula-se: 5 412971 117161. A sequência numérica longa impõe uma dicção normalmente estranha à poética, a cada título-numérico de poema corresponde um cliente, consumidor mais ou menos habitual deste supermercado. Cada poema marca, por isso, um encontro, relativamente rápido de Isilda com um dos consumidores: encontro em que os produtos comprados passam pelo tapete, são lidos pelo leitor de códigos de barras, digitalizados e identificados numericamente enquanto produto, seguidos do momento do pagamento e a colocação dos produtos no saco, gestos rotineiros que remetem para um automatismo mecânico que estes poemas na voz e visão de Isilda procuram trazer à superfície e desconstruir.
À leitura instantânea e direta dos códigos de barras que originam o título dos poemas fica implícita também a crítica a um sistema comercial que não deixa de ver cada cliente como um número, e nesse sentido cada poema como uma mercadoria. Atentemos ao primeiro poema, em que Isilda nos apresenta através dos produtos consumidos um retrato rápido, intuitivo e com uma ampla noção de conjunto:
5 412971 117161
Tem cara de perder. Esta semana
voltou a não levar preservativos
e nunca mais comprou comida para o cão.
Se calhar divorciaram-se, e ficou ela
com o bicho. Só não percebo como é que
ele sozinho consegue beber tanto leite.
Perdeu também um pouco da arrogância
com que habitualmente me passava
o visa. Mas devia ser bonito, em novo.
(Freitas, 2001, p. 7)
Os três primeiros versos incluem a enumeração de uma lista de produtos: “Preservativos, comida para o cão” que constituem não só os produtos adquiridos mas também os produtos em falta num conjunto de historial de compras através do qual Isilda reflete sobre uma visão pessoal intuitiva. A partir destes produtos que são ou deixam de ser consumidos gera-se uma suposição das mudanças que se dá na corrente de vida do cliente: “se calhar divorciaram-se, e ficou ela sem o bicho”, numa corrente de suposições, que não deixa de lado um humor atento: “Só não percebo como é que / ele sozinho consegue beber tanto leite”; para nos três versos finais se aludir ao momento do pagamento, que implica sob a visão de Isilda uma mudança de atitude em relação às vezes anteriores: “Perdeu também um pouco da arrogância com que habitualmente me passava o visa”: podemos distinguir assim 4 partes do poema: a leitura automática do código de barras, a descrição verbal e enumerativa dos produtos (comprados ou em falta), a leitura humanizada de Isilda e o momento do pagamento dos produtos.
Cada poema desta unidade tem assim a sua origem no intervalo de tempo entre a digitalização dos códigos de barras e o pagamento dos produtos: a voz poética de Isilda constitui-se assim como uma leitura humanizante que dialoga com o título da sequência numérica: leitura que implica, desde logo, um silencio: entre o intervalo de tempo de um bom dia, e o final obrigado, códigos também de uma cordialidade própria de um espaço automatizado pela lógica comercial que a própria unidade poética vai desconstruir, preenchendo e humanizando com linhas de sugestão de vida: Tudo aquilo que está no poema sob a voz de Isilda é, nessa aceção, aquilo que a lógica mercantil não previu, aquilo que não foi catalogado e quantificado. A visão de Isilda põe a nu e desmascara e, dessa mesma forma, o título desta unidade poética sugere o próprio ato de nudez: diante do olhar atento e crítico de Isilda cada cliente encontra-se despido de qualquer performance ou artificialidade que possa haver na sua conduta, despido de um aparato ou máscara, que pode também ele ser comprado ou artificialmente e externamente adquirido. Atentemos ao seguinte poema:
4 902030 132408
Vai olhar de novo, a ver se o reconheço.
“Eu não vejo televisão, ó filho” – mas,
infelizmente, não posso responder assim.
Tenha a bondade, insigne doutor,
de ir ser notável para a cona da sua mãe.
– São doze mil, setecentos e noventa
e cinco, se faz favor. Pode confirmar, obrigado.
(Freitas, 2001, p. 8)
Entre um olhar, não correspondido por Isilda à celebridade televisiva, e o pagamento do produto há um intervalo que se configura como um abismo interior, algo que não é dito e que não pode ser dito, e por isso arde com mais intensidade internamente.

O silêncio que se estabelece é então por isso um silêncio gritante, um silêncio que lê mais humanamente, intuitivamente e em absoluto, um individuo, através dos olhares dos gestos e dos produtos a leitura de Isilda é tão rápida como a do códigos de barras, ela não precisa de olhar para aprender em si um estado de vida, um estar no mundo despido, numa leitura que, mais do que a leitura do código de barras, é um olhar-leitura dos produtos, mas também dos gestos e olhares que nos compõem; do conjunto de atitudes que o corpo reflete, Isilda extrai uma visão sensível crítica e atenta que constitui em si o nascimento do poema, um estado interno em que aquilo que não é dito remete para uma experiência intensa, um autocontrole. Como reflete o seguinte poema:
Não me vêem. Ainda bem.
Fiquei de apanhar a Raquel
no infantário e não tenho como dizer
ao Jorge que a puta da Irene
faltou e já não dá. Beijam-se,
cospem-se assim de afecto
como eu (nós?) há dez anos.
Mal ouvem a conta ou isto tudo
que me gane dentro numa
servil polidez. Apetecia-me dizer
“foda-se!” – o vosso amor, o meu.
E o pior é que não posso.
(Freitas, 2001, p. 10)
Ou ainda:
Gostava de lhe poder dizer um dia
como detesto que me chame “menina”
com tão poucos dentes e catarro à farta.
(Freitas, 2001, p. 14)
Aquilo que se queria verdadeiramente dizer e é silenciado constitui o próprio tecido e corpo do poema e adquire as dimensões de um grito, grito silenciado pela servil polidez que a lógica do trabalho impõe, o grito é possível sim no núcleo do poema, ele fá-lo nascer, ele é uma visão inteira, que despe, que rasga, que trespassa e que desconstrói. A servil polidez que a lógica do consumo faz imperar é a de uma cordialidade que desde logo Isilda tenta recusar, como nos seguintes versos:
Não me agrada assim tanto
dizer “boa tarde” a Deus, enquanto
vou passando vinhos caros, gin
e produtos bizarros cuja serventia
desconheço.
(Freitas, 2001, p. 17)
Os clientes aparecem ao olhar atento de Isilda despidos de todo o aparato, construção ou performance:
8 410500 001100
Estou a ver o estilo: a folha de canábis
ao peito, os óculos de Foucault
não li e uma devoção macrobiótica
tão estúpida quanto inquebrantável.
Esta gente custa – e o que é pior:
cheira mal. Assoa-se à manga
da camisola, cheio de ideologias
nos sovacos. E vem fazer compras
como se estivesse outra vez no Lux,
entre amigos abstémios que só
não legalizam a vida porque
ainda há limites para o mau gosto.
(Freitas, 2001, p. 15)
Ou ainda no seguinte poema:
5 601036 307313
Dizem que ressuscitou o rock
numa pose de vampiro. Não sei.
Pelas olheiras, sobre o cabedal
tão velho, mais parece um agarrado,
desses que costumo encontrar
no 42. Mau hálito tem – quase tanto
como a voz. Mas leva sempre
suminhos, cremes de beleza, fiambre.
Dá-me a ideia que nele até o olhar
cansado é uma mentira cosmética,
que depois usa em voz alta contra o tal
“sistema”. Eu talvez gritasse melhor.
(Freitas, 2001, p. 11)
Da pose fazem parte os gestos, os olhares mas também os produtos consumidos. Como observa Ana Beatriz Affonso Penna: “os poemas de Isilda invertem a lógica das pesquisas publicitárias e dos estudos de mercado que procuram criar perfis de clientes através dos seus gostos e da sua personalidade para identificar os produtos de que eles podem ser possíveis consumidores e expandir os seus lucros: a leitura de Isilda busca penetrar nas relações mercadológicas para resgatar nelas uma dimensão humana ainda não digerida” (Penna, 2015, p. 33). Na voz de Isilda dá-se uma desautomatização do silêncio, que procura provar ainda que existem coisas que escapam à claridade e à compartimentação absoluta do espetáculo publicitário. É esta arquitetura que é desequilibrada com Isilda em busca de um lado autêntico de uma visão humana, da visão da pessoa antes do cliente, da visão profunda e inteira. Como observaria ainda Ana Beatriz Affonso Penna “Contra um projeto de objetificação de subjetividades, através das vias do trabalho e da mercantilização, Manuel de Freitas parece propor uma ética” (Penna, 2015, p. 36) Atentemos a um dos poemas mais marcantes do livro:
5 601761 2446
Vai sorrir muito enquanto me diz
“boa noite”. Vê-se que sofre
e não diz. Cozinha pouco, quase
nunca, está seguramente sozinha.
Coisas fáceis, guloseimas, algum
álcool. Já não teme tanto, é certo.
Parecia gelatina, com vergonha de pagar
o que, no fundo, lhe encontrava
sempre saldo no cartão. Qualquer homem
a olharia com interesse se as mãos
não fossem assim, como punhais antigos
que quase me custa olhar de tão perto.
(Freitas, 2001, p. 16)

A uma leitura automática, superficial, utilitária, Isilda propõe uma leitura profunda, humanizada; contra uma visão quantificável e categorizável ela propõe uma leitura intuitiva e silenciosa, um preenchimento através dos pequenos gestos: dos olhares, cansados, sinceros, desviados, dos códigos fatais que nos compõem enquanto seres expostos ao olhar do outro, – uma leitura profunda dos códigos que a nossa exposição possibilita – os gestos os olhares, ou a falta dele, o silêncio e as suas multiplicidades, a atitude como se passa o visa, a velocidade ou intensidade com que arrumamos as compras no saco do supermercado, o baixar dos olhos, a paciência ou impaciência na fila de espera, tudo isso é alvo de uma leitura, e de um colocar a nu: estamos expostos na medida em que somos humanos: aquilo que Isilda propõe é uma desautomatização do silêncio, um silêncio que se cria (que se preenche, que se humaniza na sua aceção mais autêntica), um silêncio que permite o nascimento do poema enquanto espaço interior, mas também enquanto grito silenciado. Do consumidor passamos à pessoa, da pessoa passamos a um contacto: origem final dos poemas que nos aproximam:
No último texto de uma sequência de doze (o último poema sobre a voz de Isilda), temos a visão desta sobre o próprio poeta, Manuel de Freitas:
5 010509 001229
É o que se chama um “higiénico”: latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia do gato .
É tímido, inseguro e – por isso mesmo –
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.
Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.
A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.
(Manuel de Freitas, 2001, p.17)
Para no poema final se inverter a perspetiva através de uma visão do poeta sobre Isilda, no único poema cujo título não é um número, mas sim a palavra: Coda – que para além de aludir à extensão de um texto, as palavras finais de um autor ou últimas anotações, expressa igualmente, através da sigla de Children of Deaf Adults as pessoas ouvintes que possuem um ou ambos os pais surdos, comunidade de pessoas que misturam a sua cultura e identidade surda com as restantes pessoas ouvintes. Isilda é sobretudo uma leitura ou ouvinte de códigos e hábitos e alheios, filha também ela de surdos. Lembrando Clarice Lispector – Ouve-me com todo o teu corpo. A audição, como uma leitura e uma atenção intensificada e revolucionária, é também essa uma das propostas de Manuel de Freitas nesta unidade. Também Isilda está entre duas formas de linguagem e entre dois mundos e daí a amplitude e vividez desta exteriorização.
Atentemos ao poema completo:
CODA
Esconde em ouro e laca a pobreza
da profissão, da vida, do amor talvez.
Reparo que não é casada, que prefere
uma esmeralda azul na mão que
desvenda códigos e hábitos alheios.
Mas é possível que exagere; ela
nem me vê, vai falando
com a colega recém-despedida
enquanto os dedos de plástico
maquinalmente seguram
um cartão igual a tantos outros.
No dia de folga irá à praia,
se estiver bom tempo – e
se não for o caso, foi para isso
mesmo que se inventou a televisão.
Não vale a pena eu dizer-lhe
que um pingo doce de ternura
não conseguirá salvar este continente.
Ou até amar, subitamente, o seu gesto anónimo
– na cama sem números a que me rendo.
(Freitas, 2001, p. 19)
De leitora, Isilda passa também a ser lida num gesto de reciprocidade, mas ela nega o olhar para quem olha mais profundamente, a sua leitura é a do silêncio, dos gestos, das atitudes, dos produtos, das coisas que nos vão formando aos poucos, uma sabedoria muda, só possível no poema, ou doutra forma sem poema, só possível na loucura, num pesadelo sentado com barras transparentes. Há um grito que faz estremecer, também ele poeticamente um edifício comercial. Aquilo que os códigos de barras invariavelmente ocultam é tudo aquilo que é mais necessário dizer. Contra o sequencial e o automático Isilda propõe o intuitivo, a atenção e a curiosidade, e isso não tem um fim prático nem pode ser classificado numa sequência ou código, a vividez da perceção de Isilda configura-se assim como uma atenção revolucionária num espaço configurado por mecanismos consentidos, propõe por isso uma partilha e um espaço de contacto: poeticamente, a partir de dentro, é assim que a poesia nasce.
Referências:
Freitas, Manuel de. Isilda ou a nudez dos códigos de barras. Lisboa: Black Son, 2001.
Penna, Ana Beatriz Affonso. “Um supermercado em Lisboa”. In: Ida Alves e Marleida Anchieta: Grafias da cidade na poesia contemporânea (Brasil-Portugal). Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015.