A Narrativa do Silêncio e a Procura da “Palavra Exata” em Eugénio de Andrade: Leitura Crítica de Ostinato Rigore (1964)

A razão pela qual hoje destacamos Ostinato Rigore, no meio de tantos outros trabalhos de Eugénio de Andrade, reside no facto de os poemas que integram o livro romperem com a “poética mediterrânica” que consagrou este autor contemporâneo, e que se traduz numa obsessão literária por elementos como o sol, a terra, a areia e o mar. De modo completamente contrário, no livro que estamos prestes a explorar, as temáticas reinantes são a preocupação com o efémero, a invocação do silêncio, a inevitabilidade da morte e a aceitação da materialidade dos objetos que circundam o sujeito poético. De um estoicismo nunca antes verificado na literatura de Eugénio, nestes poemas encontramos semelhanças com as Odes de Ricardo Reis.

Como o título do presente estudo indica, o nosso objetivo será investigar até que ponto e de que maneira a temática do silêncio pode, ou não, ser conciliada com a criação da própria palavra poética.

A procura da “palavra exata”

Ao falarmos neste conceito, somos obrigados a recuar até ao modernismo norte-americano, e lembrar que a procura da “palavra exata” era um dos lemas mais proclamados na poética imagista, estética encabeçada pelo vanguardista Ezra Pound. No prefácio de Rosto Precário, Joana Matos Frias verifica algumas semelhanças entre essa poética norte-americana e a de Eugénio de Andrade, nomeadamente no que respeita o “helenismo apolíneo na ordem, na clareza, na claridade, na plasticidade dos versos e no pictoralismo das imagens solares; no orientalismo assente nos valores essenciais da brevidade minimalista e do silêncio”[1]. Por outras palavras, os imagistas defendiam a procura incessante do melhor termo para a descrição da imagem artística que se pretendia transmitir, repudiando, assim, o excesso descritivo da poesia vitoriana. De modo parecido, e com o propósito de “tornar o visível mais visível”, “o poeta mais íntimo do Sol” parte para a construção de uma poesia clara, pura e elemental.

A procura da “palavra plena” remete-nos, certamente, para a procura do absoluto, presente na filosofia de Hegel. Importante será mencionar que, segundo o filósofo alemão, o caminho percorrido, o movimento em busca do tal absoluto é tanto ou mais importante que a própria coisa que se quer alcançar. O desejo hegeliano de plenitude, de unidade, do transcendente traduz-se na procura da própria Beleza, sendo nesse sentido que a arte surge como solução suprema. Tanto em Hegel como em Eugénio de Andrade, o papel do artista reside em “agarrar a essência da vida”, contestando o princípio de identidade, que impede o ser humano de encontrar o seu “outro”. Efetivamente, um dos conceitos hegelianos mais essenciais consiste na importância da contradição enquanto impulso de todo o movimento para o encontro da totalidade. Através da reconciliação dos contrários, o poeta procura o seu rosto, “feito de mil rostos”, ou, nas palavras de Ricardo Reis, “Para ser grande, sê inteiro”.

Numa primeira leitura dos poemas de Ostinato Rigore, verificamos uma nostalgia de unidade assente na própria estação temporal que estes ilustram, nomeadamente, o verão, cujos dias são mais plenos. Da mesma maneira que se quer captar a “palavra exata”, o escritor deseja congelar o momento presente, tornando-o num instante eterno. Os poemas são, assim, prova de um presente sem futuro, de um momento pleno. Para percebermos melhor o conceito de “palavra plena”, olhemos para o poema “Escrita da terra”:

1.

Sê tu a palavra,

branca rosa brava.

2.

Só o desejo é matinal.

3.

Poupar o coração

é permitir à morte

coroar-se de alegria.

4.

Morre

de ter ousado

na água amar o fogo.

(…)

6.

Da chama à espada,

o caminho é solitário.

7.

Que me quereis,

se não de mais

o que é tão meu?[2]

Efetivamente, no primeiro dístico, o sujeito poético invoca uma assimilação entre o mundo e a escrita, onda a rosa se quer palavra, e vice-versa. Repare-se que a colocação do artigo definido “a” indica a procura de uma única palavra, um termo particular. Em segundo lugar, a adjetivação do nome “rosa” também não nos parece inocente. Para além da ressonância obtida através da aliteração em “r”, ser “branca” é sinónimo de pureza, mas também de uma origem indefinida, que o “eu” ainda não conseguiu detetar. De igual modo, ser “brava” isola-a para o grupo das plantas selvagens, que crescem de maneira silvestre, sem que o ser humano intervenha no seu cultivo. Se pensarmos nela enquanto “palavra exata”, a rosa assume-se brava, porque tem a ousadia de ser mais do que se pode ser; cresce sem ser plantada e não é cultivada, porque o indivíduo não lhe conseguiu alcançar a perfeição ou a origem misteriosa. O sujeito poético parece celebrar a intrepidez desta palavra/rosa em atingir o absoluto, de transcender os limites impostos, na medida em que ousou “na água amar o fogo”. A mensagem que ecoa através do poema é o apelo à procura da unidade primordial. Impedir que a morte se coroe de alegria é agitar o espírito, sendo esse o único fulgor que dá sentido à existência. Apesar do incentivo, o poema acaba num tom desolador: “Que me quereis,/ se me não dais/ o que é tão meu?” . O “eu” lírico parece exigir uma resposta que lhe é inalcançável, a chave do paraíso que lhe é vedado. Será, então, que a escrita não lhe providencia a totalidade desejada?

Se a “palavra plena” nos é apresentada como sinónimo de perfeição, uma vez encontrada, o que falta? O que desanima o sujeito poético? E como devemos entender a obsessão pela “Palavra”, ao mesmo tempo que se glorifica o orientalismo assente no silêncio? Como perceber a afirmação proferida por Eugénio de Andrade numa das suas entrevistas: “A música que me sai dos dedos ama o silêncio, e a suprema ambição do poeta é integrá-lo no seu canto”?[3]

A palavra como intérmina exploração do silêncio

O poeta, como qualquer artista, nada mais faz do que filtrar o seu universo circunscrito, produzindo uma imagem da realidade que se quer comunicar. Desse modo, a palavra poética assume-se como o “impronunciável que paradoxalmente se pronuncia, deixando intacta a essencialidade impronunciável”[4], garantindo, assim, o perpétuo nascimento do poeta.

Na verdade, o artista falha em atingir a plenitude, porque constantemente se esquece que ele também é parte integrante da Natureza que tanto deseja transcender. Em História da Sexualidade, Foucault lembra que o ser humano não preexiste à linguagem. O Homem não é causa do discurso, mas efeito dele. Ora, a poesia de Eugénio é moderna, precisamente porque rompe com a tradição representante, em que os versos nos remetiam para a representação de uma realidade anterior ao próprio poema. Como Eduardo Prado Coelho afirmou a dada altura sobre a poesia de Eugénio: “Ele não permite que se veja através dele, porque continuamente nos reafirma que tudo está nele”. O mundo significante é a palavra e a palavra significante- o mundo.

Na poesia de Eugénio de Andrade, a assimilação entre o mundo e a escrita chega a ser bastante explícita. Vimos há pouco como a “branca rosa brava” se queria “palavra”, mas há uma abundância de outros exemplos: “eis como o verão/entra no poema[5]; “Com palavras amo[6]; “as palavras doem[7]; “Assim eu queria o poema:/ fremente de luz, áspero da terra,/ rumoroso de águas e de vento[8]; “Ergue-se aérea pedra a pedra/ a casa que só tenho no poema[9], ou ainda “De palavra em palavra/a noite sobe”[10].

Condicionado pela sua própria Natureza, o poeta não consegue descrever perfeitamente “a” essência que o transcende, limitando-se a produzir um sem-número de imagens/reflexos do seu mundo. Assim que uma imagem é produzida e verificada nela a não-essência, o escritor parte à procura de uma melhor. O processo é sucessivo e é o que garante a proliferação de nomes e, com isso, de poemas. Assim, a poesia é como um palimpsesto, que continuamente se reescreve, à procura de uma essência que foi, é e será sempre fugitiva.

Doloroso ao ponto de se tornar físico ou milagrosamente instantâneo, o poema é descrito como uma necessidade que “procura tomar expressão”. Mais do que alcançar a “palavra exata”, procura-se a essência, esse silêncio enigmático que transcende a própria poética. Não o conseguindo desvendar, o poeta resuma-se a obter breves imagens, fulgurações desse mistério, que serão comunicadas aos outros. Nesse sentido, podemos falar num silêncio expresso e numa narrativa do mesmo.

Mas se já estabelecemos que o absoluto é- e será inatingível, qual o sentido de o procurar obsessivamente? Será justificada a teimosia do artista em tentar descrever algo que não pode ser descrito? Em gritar o que só pode ser ouvido no íntimo silêncio das coisas?

O silêncio como interrupção de discurso

Por “silêncio” entendemos a ausência total ou relativa de sons audíveis ou uma ausência de comunicação. Relembremos também o “voto de silêncio”, cultivado pela Igreja cristã e praticado nos mosteiros, onde as conversas consideradas inúteis eram estritamente proibidas. Em alguns dicionários, “silêncio” é também definido como “omissão de uma explicação”. Explicámos como a palavra poética se mostra incapaz de abarcar a totalidade desejada. Por ser transcendental, ela não poderá ser alcançada pela linguagem, e muito menos pelo Homem.

Em 1978, numa entrevista concedida pelo poeta ao jornal Expresso, Helena Vaz da Silva dirige-se a Eugénio, com as seguintes palavras: “Você ama de uma maneira clara seres sombrios. E a sua luta é por trazer à luz a claridade, sabendo que eles são sombra”. A observação parece-nos, além de sensata, bastante poética! Eugénio é visto pela jornalista como alguém que luta contra o impossível, que faz todos os esforços para tornar “luz” aquilo que é destinado a ser “sombra”, para decifrar o enigma que não pode ser decifrado. O poeta responde:

Se fosse pintor, diria que passei a trabalhar com menos cores, e as poucas com que trabalho são cada vez mais surdas. Mas isso é natural, chama-se crescimento[11].

Identificamos aqui uma anomalia semântica. Seria expectável dizer que as cores são cegas ou, se falasse de si próprio como músico, afirmar que as notas são surdas. Naturalmente, a metáfora não é inocente. A ideia implícita parece ser a do artista que está deslocado do seu ofício, ou cujo trabalho final já não se lhe relaciona. Enquanto poeta, “trabalhar com menos cores” poderá significar trabalhar com menos palavras. Mas como entender a sua surdez? Estará ela relacionada com esse deslocamento de ofício, com crias que já não ouvem o seu criador e que lhe escaparam do controlo? Quando Eugénio menciona “crescimento”, poderemos entrever uma resignação relativamente à poesia, uma consciencialização e consequente aceitação do caráter oculto da própria palavra poética, contra a qual o indivíduo nada pode fazer?

No início do ensaio, mencionámos a influência, na poesia de Eugénio de Andrade, do orientalismo assente na brevidade minimalista e no silêncio. Vale a pena trazer para o estudo uma referência a uma das obras mais prestigiadas da literatura chinesa, Tao Te Ching, comumente traduzido como O Livro do Caminho e da Virtude. Escrito por Lao Zi, um dos maiores filósofos da Antiga China, a obra é considerada a base fundadora do taoismo filosófico. A leitura deste texto implica um único, mas grande desafio: que o leitor se “esvazie” de toda a rede de pensamentos e que a sua mente seja límpida, como a água que flui no vale. Por outras palavras, o livro faz um apelo à necessidade do “retorno à origem”, à “essência”. Longe de se reduzir às ideias citadas, percebemos que um dos ensinamentos de Lao Zi reside na procura do Caminho através da sua não-procura. “O Caminho” de Tao Te Ching é aquilo que Eduardo Lourenço descrevia como sendo o “invisível, inaudível, inomeável, inexprimível…”. O Caminho é, então, o Vazio. Ele preexiste a toda a existência e a única maneira de o alcançar é através do simples ato de contemplação. Assim, quanto mais o Homem acreditar na capacidade de transcender os limites impostos pela Natureza, maior será a sua ilusão. Quanto mais este tentar a sua dominação sobre o mundo, mais rapidamente se aproximará do destino de Ícaro. Segundo o pensador chinês, apenas quem compreender e aceitar isso no âmago do seu ser terá encontrado o verdadeiro Caminho.

Abandonando um pouco as deambulações teóricas que temos estado a fazer, regressemos a Eugénio de Andrade e aos poemas de Ostinato Rigore. Famosíssima ficou a afirmação do poeta: “Vou morrer a querer que um poema meu contenha a luz do mundo”[12].

Terá conseguido o escritor cumprir esse desejo?

No livro de poemas sob análise, encontramos, ainda que de forma esporádica, alusões a um possível “silenciamento” do poeta. Vejamos, a título de exemplo, os primeiros veros de “As nascentes da ternura”:

1.

No espaço de um relâmpago

os olhos refletem os navios.

2.

O silêncio brilha acariciado.

3.

O silêncio é de todos os rumores

o mais próximo da nascente.

4.

Só água era, e sem memória[13].

Ora, considerando a brevidade de um relâmpago e o caráter ilusório da reflexão, observamos que os limites da linguagem são refletidos (ironicamente) na própria Natureza. Se nos restantes poemas verificamos uma constante glorificação do universo, a certeza da sua matéria, a partir deste poema, a aparência dos objetos adquire um poder enganador. O poeta substitui a visão pela reflexão; o momento pleno pelo instante fugaz, demonstrando, assim, a impossibilidade de a palavra poética abranger o absoluto. Em sintonia com os ensinamentos de Tao Te Ching, a terceira estrofe marca a passagem de uma poética da palavra para uma poética do silêncio, posicionando-se esta última mais perto da “origem”. Finalmente, o último verso aqui citado indica uma valorização do presente sem passado, em detrimento de tudo o que não possa ser diretamente contemplado através dos sentidos.

Uma insinuação da ideia de silêncio “mortal” é também feita através do poema “Eros Thanatos”, onde o “eu” lírico remata: “Seria a morte esta carícia/ onde o desejo era só brisa?”[14]. Em “Cristalizações”, por exemplo, o silêncio é visto como o “leito” para onde todas as águas vão desabar: “Ama/ como o rio sobe os últimos degraus/ ao encontro do seu leito”[15]. Ainda neste poema, é-nos comunicada a insuficiência da palavra poética, através da metáfora da rosa (que no seu inclinar contra o vento é, e deixa de ser); e da pergunta retórica “Como podemos florir,/ ao peso de tanta luz”- nele podemos ler também “Como pode o ser humano sair vitorioso ao peso de tamanho Mistério?” e, ainda, a invocação à própria morte do sujeito, que implica necessariamente a morte poética: “Onde espero morrer/ será manhã ainda?”[16] .

Tal como o título do livro sugere, os poemas procuram o máximo rigor, que Eugénio conclui ser o máximo silêncio. Ora, máximo silêncio exige a ausência desses mesmos poemas, sendo por isso que o poeta solicita a sua morte. Após uma primeira leitura na íntegra de Ostinato Rigore, observamos que os versos adquirem uma carga cada vez mais melancólica, fazendo triunfar palavras como “memória”, “dor”, “silêncio” e “morte”. O caráter desolador revela-se, ainda, na redução progressiva dos versos à medida que avançamos para o fim do livro, bem como na escolha dramática dos títulos dos próprios poemas finais: “Escuto o silêncio”, “Eros Thanatos”, “Epitáfio”, “Antes da neve”, “Melancolia de um fim de setembro”, “Sete espadas para uma melancolia, “Despedida”, “Exílio” e “Exorcismo”.

Ora, muitos foram os artistas que procuraram atingir a plenitude, iniciando um caminho que os levaria à loucura e/ou ao suicídio. Exemplo disso são as biografias de Oscar Wilde, Rilke ou Tsvetaeva. Muitos outros que conseguiram sobreviver, abdicaram da vida literária, refugiando-se no silêncio absoluto: lembremos o caso de Byron, de Musset ou até a carta fictícia de Lord Chandos a Francis Bacon, escrita por Hofmannsthal, no século XX, na qual o sujeito protesta “Quem é o homem para fazer projetos!”. Na obra do escritor austríaco, a linguagem é descrita como um abismo:

(…) porque a língua na qual eu seria capaz não só de escrever mas também de pensar não é a língua latina, nem a inglesa, nem a italiana, nem a espanhola, mas uma língua da qual não conheço palavra alguma, uma língua na qual me falam as coisas mudas e na qual quiçá algum dia, na tumba, prestarei contas diante de um juiz desconhecido[17].

No caso de Eugénio de Andrade, existem testemunhos de um silenciamento poético, curiosamente, logo após a publicação de Ostinato Rigore, em 1964, e que durou pouco mais de sete anos. Apesar disso, o poeta continuou a publicar livros em vida, pelo que não o conseguimos colocar ao lado dos poetas acima mencionados. Todavia, estamos certos da sua alusão, ainda que em matéria ficcional, à inutilidade da linguagem e à necessidade do regresso às origens, aos sentidos. Na verdade, os críticos são de opinião que, a partir de Ostinato Rigore, há uma nova perspetiva de Eugénio sobre o silêncio…a musicalidade que ele produz.

Do silêncio à música

Chegámos ao objetivo proposto no início da nossa investigação, nomeadamente a relevância da reconciliação dos contrários na poética de Eugénio de Andrade. Mais do que apenas reconciliações temáticas, sugiro aqui a possibilidade de haver, na sua poesia, uma reconciliação entre a palavra o silêncio.

Creio não trazer nenhuma novidade ao afirmar que a finalidade da arte reside em produzir uma emoção estética, e que toda a obrigação do Artista consiste em fixar uma imagem e comunicá-la aos outros. Trata-se, aqui, da significação do silêncio, que nasce nas margens do dito ou do escrito, através da sugestão que ele comunica, da aura de sentido que produz. Mais do que a musicalidade inerente à escrita, pelo ritmo das sílabas e pelo encadeamento das palavras, trago a hipótese de uma musicalidade metafórica, uma música criada pelo próprio leitor. Imaginemos uma partitura musical. Por mais prodigiosa e excelente no rigor o seu verdadeiro valor será revelado somente ao ser tocada pelo músico, na comunicação da sua mensagem auditiva aos outros.

Na obra Os Afluentes do Silêncio, o próprio Eugénio de Andrade menciona:

Só quando as palavras brilham têm esta limpidez, e brilham assim, como um corpo nu, a música pode ser invocada, pois toda a tensão provém de um ritmo que ali tem o seu nascimento primeiro e se prolonga, em sucessivos ecos de si próprio, até atingir a perfeição última do silêncio[18].

Efetivamente, “ecos de si próprios” podem ser os inúmeros significados e sentidos que cada leitor atribui à criação artística, mas também a maneira como a acolhe no interior do seu ser e que pode, por isso, não ser expressa. A palavra é lançada pelo escritor, estende-se em sucessivos ecos, e encontra, como última morada, o silêncio.

No seguimento da contemplação de um quadro de Resende, Eugénio escreve: “Uma impensada felicidade…Será de luz, fresca, molhada, saída há instantes da água? Do silêncio que se tornou visível e se pode tocar com os dedos? Ou é em mim que tal amanhecer se não extingue, e ilumina tudo onde piso os olhos?”[19] . Ora, se a luz e a música que o artista procura está em quem lê/contempla a sua obra, é necessário que o artista se “apague”, para que o poema “seja”. O próprio o diz em Rosto Precário: “Porque a palavra poética visa a subversão- se assim não fora, que sentido teria esta música onde o homem morre sílaba a sílaba para que outro homem nasça?”[20].

Em Ostinato Rigore, encontramos várias passagens onde o refúgio do poeta é mencionado, como em “Metamorfoses da casa”: “Ah, um dia a casa será bosque,/ à sua sombra encontrarei a fonte/ onde um rumor de água é só silêncio”, ou ainda em “Epitáfio”: “Voa coração,/ Ou então arde”. Para tornar o visível mais visível, o poeta consome-se em combustão com a sua obra, e é o seu silêncio que provoca rumor no leitor. Como Melville diria, “Agora que sou imperador da minha alma, o meu primeiro ato é abdicar”.

Ao contrário do que se poderia prever, a problemática enunciada no início do ensaio não encontrou uma palavra final. Ainda assim, demonstrámos que o silêncio e a palavra podem, sob determinados pontos de vista, ser conciliados. Se quisermos falar em termos hegelianos, a procura do absoluto estrutura-se, numa primeira fase, na tese (no nosso caso, “a palavra-exata”); em segundo lugar, na negação (o silêncio); e, finalmente, na negação da negação, isto é, na síntese (a reconciliação entre a palavra e silêncio).

Não nos esqueçamos também do significado da expressão que intitula o livro de poemas em análise. “Ostinato” designa, com efeito, um motivo ou uma frase musical que é persistentemente repetida numa mesma altura. Terá Eugénio insistido numa mesma ideia ao longo da obra? Ele bem o diz numa das suas entrevistas: “Não sei se não andei sempre a dizer a mesma coisa…”. Mas que ideia será essa? Coincidirá ela com as nossas conclusões?

Bibliografia

ANDRADE, Eugénio de. Os Afluentes do Silêncio. Porto: Limiar, 1979. Impresso.

ANDRADE, Eugénio de. Poesia e prosa (1940-1979). Lisboa: Imp. Nac.-Casa da Moeda, 1980. Impresso.

ANDRADE, Eugénio de. Rosto Precário. Porto: Assírio & Alvim, 2015. Impresso.

OLIVEIRA, António. Metáforas obsessivas em Eugénio de Andrade. Leça da Palmeira: Letras e coisas – Livros , Arte e Design, Soc. Unipessoal, Lda, 2008. Impresso.

QUEIRÓS, Luís Miguel, pref.; SANTOS, José da Cruz. Ensaios sobre Eugénio de Andrade. Porto: Asa, 2005. Impresso.

Webgrafia

HOFMANNSTHAL, Hugo von. «Uma Carta». A Carta de Lord Chandos. Traduzido por Zebba Dal Farra. S.d. 5 de Junho 2019.

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/234389/mod_resource/content/1/uma_carta%20%281%29.pdf

TSE, Lao. Tao Te Ching – O Livro do Caminho e da Virtude. Traduzido por Wu Jyn Cherng. S.d. 5 de Junho 2019.

http://livros01.livrosgratis.com.br/le000004.pdf

  1. ANDRADE, Eugénio de. Rosto Precário (2015). Pp. 17.

  2. ANDRADE, Eugénio de. Ostinato Rigore (1980). Pp. 188.

  3. ANDRADE, Eugénio de. Rosto Precário (2015). Pp. 55.

  4. LOURENÇO, Eduardo. Paraíso sem mediação (2007). Pp. 14.

  5. ANDRADE, Eugénio de. Ostinato Rigore (1980). Pp. 185.

  6. Ibidem. Pp. 186.

  7. Ibidem. Pp. 193.

  8. Ibidem. Pp. 196.

  9. Ibidem. Pp. 199.

  10. Ibidem. Pp. 200.

  11. ANDRADE, Eugénio de. Rosto Precário (2015). Pp. 115.

  12. Ibidem: 191.

  13. ANDRADE, Eugénio de. Ostinato Rigore (1980). Pp. 202.

  14. Ibidem: 205.

  15. Ibidem: 186.

  16. Ibidem: 186.

  17. HOFMANNSTHAL, Trad. FARRA, Zebba Dal, s.d.: 2.

  18. ANDRADE, Eugénio de. Os Afluentes do Silêncio (1979). Pp. 42.

  19. Ibidem: 97-98.

  20. ANDRADE, Eugénio de. Rosto Precário (2015). Pp. 120-121.