Acerca da Histeria Bovina nas Redes Sociais quanto a Afirmações Comuns

Sobre como afirmações vulgares — não propriamente inteiramente certas nem inteiramente erradas — podem estalar o clamor acéfalo das multidões. Texto de Ricardo Fortunato. Imagens: fotograma e vídeos de Alice Santos, em https://www.tiktok.com/@alicesantos0204.

Regularmente as chamadas “redes sociais” acordam e, dominadas por um qualquer impulso claramente sub-civilizational, resolvem comportar-se como matilhas de hienas, escolhem um alvo que tenha expressado, feito ou sido algo que consideraram, de forma básica e instintiva, de algum modo moralmente censurável ou somente ridicularizável e dedicam-se a atacá-lo durante um período que em geral oscila entre um dia ou dois. De seguida, conforme a forma dessa sístole de fúria e descarregar de frustrações com o mundo e a vida, e conforme o regime de défice de atenção generalizado que hoje vivemos, esquecem-se completamente do alvo que acabaram de massacrar e passam para outro. Foi o que se passou no dia de ontem. Uma rapariga, de seu nome Alice Santos, produtora de conteúdos do Instagram e do Tiktok, foi atacada, gozada e provavelmente assediada de modo geral por ter tido a ousadia de dizer, num dos seus conteúdos, que a administração de anti-depressivos merece algumas reservas e que hábitos de vida saudável podem também ser uma excelente terapêutica para quadros de desânimo ou pré-colapso psíquico. Talvez influenciados pelo quadro geral de “aderência á fé da ciência” que o pânico da recente pandemia trouxe à vida e à proximidade de todos nós, tomaram estas declarações de princípios precaucionários por parte da referida rapariga como mais um atentado àquilo que certas pessoas acham que constitui o santo dogma da medicina.

Mas há uma coisa que temos de sublinhar: nem a medicina nem a ciência funcionam assim. Nem funcionam como dogma para o qual toda a experiência concreta se deve dirigir e adequar, nem funcionam como campos em que a discussão, o questionamento e o cepticismo de modo geral não sejam os mais importantes actores. Isto para dizer que nem as afirmações da referida Alice Santos são particularmente certíssimas e inequívocas, nem são também propriamente motivo para toda a histeria bovina que foi levantada. Sabemos que a mesma faz parte do registo patológico em que as redes sociais funcionam, mas não é por isso que os participantes nesse tipo de delírios colectivos de selvajaria devem ser desculpados. Acresce que a dita produtora de conteúdos é dona de um sotaque um pouco afectado, além de misturar português e inglês na mesma frase (devido a ter vivido no estrangeiro muito tempo) e que isso pode ter despontado também impulsos patéticos de ridicularização de baixo-nível da parte de muita gente, mas esse ponto merece ainda menos ser desculpado.

O vídeo original que despontou as reacções da turba.

O que disse, então, mais concretamente, a rapariga? Enumerou uma série de hábitos saudáveis que podem ajudar a mitigar a situação da depressão ou do desânimo psíquico, transmitiu um quadro geral de desconfiança face à medicamentação psiquiátrica, como já dissemos, e aconselhou de modo genérico terapêuticas naturais como exercício físico, apanhar sol, cautelas quanto a bons hábitos mentais como não estar o tempo todo ao telemóvel, etc.; conselhos que pertencem perfeitamente ao senso comum. Sublinhou, de modo amador mas não inteiramente incorrecto, que anti-depressivos podem “fazer pior” — ponto que abordaremos mais à frente tendo em conta quer a relativa ineficácia absoluta dos mesmos quando não acompanhados de hábitos mentalmente salutares, quer também tendo em conta o potencial para criar dependência que essas drogas encerram. É importante lembrar também, desde já, que serão exactamente estes os mesmos conselhos que alguns médicos darão, outros não — por vezes em detrimento de terapia medicamentosa, por vezes não. 

Nas contas e nos canais das plataformas em que Alice Santos está presente existem outros vídeos com conteúdos referentes a conselhos sobre estilo de vida saudável, mas em nenhum deles, pelo que vimos, se encontra o mínimo dos mínimos que seja assim tão chocante para qualquer pessoa sensata e moderada. Num deles fala dos efeitos secundários da pílula contraceptiva, que estão atestados quer ao nível dos estudos científicos — e devidamente assinalados na bula da droga — quer ao nível de testemunhos de quem a toma ou tomou, amplamente conhecidos por quem pertence ao sexo feminino ou já assistiu a discussões sobre o assunto. Num outro vídeo, explica que não vê com bons olhos a toma de uma vacina em específico, aquela contra o Covid-19, ponto de vista que tem total direito a ter, obviamente, assim como milhares de portugueses que não o fizeram, conscientemente. Mas repare-se: nesse vídeo, Alice Santos tem até medo de dizer o porquê das suas objecões quanto à vacina devido às políticas da plataforma (no caso específico, a plataforma de vídeos TikTok). Portanto, genericamente — e dando o desconto de ser uma pessoa jovem, ser amadora em relação aos assuntos de que está a falar, e obviamente a sua palavra não ter qualquer poder vinculativo e ser equivalente à de qualquer cidadão com maior ou menor projecção e visibilidade — de tudo o que foi para nós até agora visível dos conteúdos dessa rapariga, o que passou foi uma ideia de cautela com medicações em excesso e incentivo a que as pessoas se informem individualmente sobre o que estão a tomar. Qual é o raio do problema com isto?

Outro vídeo de características semelhantes, desta vez sobre a pílula contraceptiva, um tópico familiar para muita gente.

Tais comportamentos, fazendo evidentemente parte do tal quadro animalesco a que as redes sociais dispõem os seus utilizadores, talvez tenham também relação com acontecimentos mais recentes. Tem-se intensificado, particularmente com o período quasi-lunático por vezes das reacções públicas e dos poderes públicos à recente pandemia, a ideia falsa de que existe uma determinada entidade, “a ciência“, que só diz uma coisa, tal como “os médicos“ só têm uma única opinião, etc. São assim lamentáveis os impulsos totalitários que as redes sociais têm veiculado. Reiteramos que não é assim que a ciência, nenhuma ciência séria, nem exacta nem semi-exacta, funciona, e que a mesma está muito mais próxima do cepticismo do que do dogma. 

Se já é assim nos terrenos da física ou da química, e se já é assim nos terrenos da medicina, imagine-se então — ou, melhor, ponha-se os pés na terra e relembre-se — como ainda mais o é nos terrenos da psiquiatria e da psicologia. Com que arrogância dogmática e maioritariamente ignorante quanto às especificidades da prática se pode clamar a “palavra da ciência” como verdade dogmática em certos aspectos deste campo? Por acaso acha-se que os diagnósticos psiquiátricos são alguma prática absolutamente exacta? Alguém acha que é como fazer testes ao vírus da gripe — retira-se uma amostra de sangue, põe-se num tubo e leva-se ao laboratório e vem o resultado: depressão! Bipolaridade! Défice de atenção! Desconhece-se que, nalguns casos, um psiquiatra diagnosticaria depressão e outro psiquiatra diagnosticaria outra coisa mais ou menos semelhante mas diferente? Desconhece-se que a psiquiatria, já para não falar da psicologia, trabalha com agregados de sintomas que por vezes são muito semelhante entre si e que os diagnósticos por vezes são meros aglomerados probabilisticos? Meros, salvo seja, porque a prática é séria: agora essa ideia comum, absolutamente errada, de que os médicos “têm uma única opinião”, ainda por cima na psiquiatria, não ajuda nada a lidar com os problemas de forma séria e a manter um diálogo aberto e franco entre os pacientes e os praticantes da medicina, o que só prejudica a sua actividade. E é absolutamente nocivo usar o termo “a ciência” como sinónimo de “a palavra divina”, o dogma da igreja, quando na prática as coisas não se passam assim — aliás, nem na igreja se passam assim. As coisas analisam-se e discutem-se: isso, sim, é ciência.

E é bom lembrar que a “depressão“ não é um diagnóstico absolutamente estanque e de facto interseciona-se com quadros de desânimo simples. Sim, é verdade que a confluência e a semelhança dos dois estados pode ser perigosa, dado que pode resultar em casos indiagnosticados, mas atenção: seguramente que essa equiparação é um perigo tanto quando se julga que se está desanimado mas na verdade existe quadro clínico, como também quando se acha que se está com depressão mas apenas na verdade desanimado; como já dissemos, é um erro tratar certas doenças mentais como se fossem traçáveis a um quadro absolutamente previsível tal como na virologia; a depressão intersecciona-se com o quadro de desânimo, e a confusão é perfeitamente legítima e incontornável, até mesmo para a profissão médica. O diagnóstico de depressão, assim, padece das imprecisões próprias da prática; portanto talvez seja bom assumirmos isso à partida, que de facto até certo ponto talvez não existe diferença substancial — substancial como na diferença que existe entre estar contagiado com o vírus da gripe e não estar — entre o desânimo e depressão, embora a partir de outro ponto possa existir de facto — e essa discussão deixamos aos especialistas. É evidente assim que a confusão entre desânimo e depressão encerra perigos, mas não mais graves do que a ideia de proibir certos pontos de vista sobre estes tópicos, mesmo que da parte de leigos, de serem apresentados e de serem debatidos na esfera livre do debate público.

Até mesmo quem opte por sublinhar que em casos de depressão severa nunca apenas hábitos saudáveis seriam suficientes para ultrapassar a maleita, e provavelmente afirmam-no com razão, estará a incorrer num erro quando ache que as duas coisas são de valências completamente diferentes. A “ciência”, neste caso a medicina psiquiátrica e a prática das terapias psicológicas, não faz uma distinção categórica tão estanque como a que está a ser proposta por alguns entre “hábitos saudáveis” e “tratamentos e medicamentos”; não é assim na prática, nomeadamente em doenças mentais. Dependendo do caso em específico, a adopção de “hábitos saudáveis” é usada em terapia em certos casos exactamente com a mesma valência de “tratamentos e medicamentos” e que podem até ter importância superior.

Ou seja, em certos casos efetivamente a medicação é primeiro passo quase obrigatório para sair da situação mental em específico; mas que indubitavelmente o exercício físico e a luz solar, conforme referidos por Alice Santos no vídeo em questão, pontos que foram sujeitos a forte troça por parte das turbas irracionais, têm um papel vital no equilíbrio psíquico e que se esses passos de uma vida normal não forem dados a medicação não conseguirá suficiente efeito por si só. É por isso que se pode argumentar que se a mesma não for acompanhada de uma terapêutica transversal que inclua esses e outros hábitos de vida, acaba por ser contraproducente e a partir de certo ponto “fazer pior“, como disse a autora.

Ou seja, num quadro de depressão é verdade que se alguém só tomar medicamentos, e não tiver alguma proatividade que inclua alguns hábitos referidos, não terá sucesso, e que até “fará pior”, possivelmente, acrescentando a uma depressão não resolvida uma dependência de fármacos. Estamos a fingir que isto não é um problema também? Vamos todos fingir que não existe ou não pode existir um problema de dependência de medicamentos anti-depressivos e afins? De repente parecia, no meio da berraria da turba, que existe uma massa gigantesca de pessoas que nunca ouviu falar ou sequer pensou nisso. Mas a afirmação que a autora proferiu tem uma larga parte de verdade mas também alguma imprecisão, ou seja, certos quadros clínicos não vão lá — não chegam à estabilidade, à funcionalidade e à saúde — sem medicamentos. Mas alguns — muitos? — vão. Acresce a isto que a preocupação acerca da sobre-medicação existe tanto na medicina psiquiátrica como noutras — no caso do uso de antibióticos, por exemplo, ou na generalização da prescrição da pílula contraceptiva.

Mais uma vez: tanto existe um problema de sub-diagnóstico de depressões clínicas como de sobre-medicação nesse e noutros casos até fora da psiquiatria. Em resumo, compreendemos perfeitamente o ponto quanto ao perigo da mensagem sobre a confusão entre desânimo e depressão clínica, mas achamos que as pessoas em geral são inteligentes e sabem destrinçar. Qualquer pessoa leiga tem o direito a estabelecer objeções de princípio ou gerais em relação às filosofias que orientem a prática médica, particularmente na terapêutica. Qualquer pessoa pode ter liberdade de escolher terapias que não funcionem à base de medicamentos para tratar alguns problemas psíquicos — e os médicos sabem que as pessoas têm essa liberdade. Isso é bastante comum e pelo que sabemos nem sequer é propriamente problemático. Como já sublinhámos, há quem prefira assim, até mesmo médicos: uns sobre-prescrevem, outros talvez sub-prescrevem. Se se pode argumentar que os leigos não têm conhecimento especializado que lhe permita avaliar se a prática da medicina convencional é a mais correcta, por outro lado, exactamente o argumento inverso pode ser feito; seria preciso ser especialista em medicina alternativas para opinar sobre as mesmas, e o que não falta aí são médicos a dizerem que essas são uma fraude. Portanto a liberdade existe e é para todos. E ainda bem.

No entanto, para concluir, talvez toda esta situação demonstre exactamente o ponto inverso do que Alice Santos estava a tentar transmitir: que quando o quadro geral destas campanhas de matilhas furiosas por coisas que nem elas próprias perceberam bem resulta em quererem denunciar uma miúda porque ela diz que que receitam antidepressivos a mais ao ponto de fazerem pior e recomenda hábitos de vida saudáveis e a turba acordou a achar que toda a gente tem é de ir ao psiquiatra, pode-se dizer com toda a franqueza que isso é de doidos, um estado de ânimo e de magro raciocínio verdadeiramente impressionante. É de doidos. E é de um nível de loucura que realmente se calhar não vai lá só com banhos de sol e exercício físico: portanto concordamos, Alice Santos é capaz de não ter razão no caso destas pessoas.