As Festividades do 25 de Abril: Uma Reflexão Crítica sobre o Legado da Revolução

Anualmente, um desfile da burguesia intelectual de esquerda, advinda de toda a área metropolitana de Lisboa, já sem qualquer apoio relevante das antigas classes operárias, há muito extintas, celebra uma manifestação ao nível de feira popular à qual a maioria da população local de Lisboa é alheia. Este espetáculo, que outrora simbolizava a unidade popular na conquista da liberdade, transformou-se numa espécie de ritual sectário, distante do pulsar da sociedade portuguesa contemporânea. Recentemente, tensões com a entrada da Iniciativa Liberal no desfile e o cerrar de fileiras da esquerda política em geral relevam a sua verdadeira essência: tratar-se-á fundamentalmente de uma manifestação daqueles que acham que o 25 de Abril não foi a criação de uma democracia liberal e plural aberta a ideologias de esquerda e de direita, mas sim a criação de um regime político rumo ao socialismo, de inspiração marxista, sectário, e, por várias vezes, não sempre, rejeitado pelos portugueses nas urnas. São absolutamente bem-vindas estas tensões, que devem estar o mais explícitas possível, e demonstrar o contraste gritante entre os resultados dos sufrágios universais realizados desde 1974 e a deriva totalitária de uma minoria de extrema-esquerda, que aglomera também muita burguesia de esquerda moderada que gosta de com ela namorar, para que, um dia, possivelmente, a ideia de democracia liberal plural que constitui o atual regime político deixe de estar definitivamente ligada a uma espécie de data natalícia de características religiosas, caducas, cujas principais objetivos já estavam cumpridos por volta de 1982. É possível que no dia em que essa data já não seja celebrada exista mais possibilidade, mas democracia, mais pluralidade, mais esquerda e mais direita.

O Contexto Histórico: O Golpe de Estado de 1974 como Reacção à Obsolescência do Regime

O 25 de Abril de 1974 marcou o fim de quase meio século de ditadura salazarista, um regime que sufocou liberdades, reprimiu dissidências e manteve, na sua fase mais tardia, Portugal num estado de atraso económico e social, enquanto prolongava uma guerra colonial insustentável em África. Isto não objecta a que, inicialmente, e em particular no período pós guerra, o regime tenha tido um trabalho notável quer de pacificação da sociedade na sequência da ingovernabilidade de tendências anárquicas da primeira república, quer na modernização das estruturas materiais e imateriais do país, ao mesmo tempo que trilhava um percurso de responsabilidade económica. Perto do final do século, porém, o regime tinha coalhado e funcionava mais como um empecilho ao desenvolvimento do que como motor. A Revolução dos Cravos, liderada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), foi um momento de ruptura a que a maior parte do povo português reagiu bem, significando uma reacção natural a um regime que tinha já parado no tempo, congelado nos dogmas da sua fundação inicial — como tem sucedido a todos os regimes ao longo da história.

Sendo a revolução, ou, melhor dizendo, o golpe de estado, na sua concepção, execução e acolhimento, um evento quase irrepreensível e de grande apoio popular, o período imediato à revolução, conhecido como Processo Revolucionário em Curso (PREC), revelou profundas divisões ideológicas. Entre 1974 e 1975, Portugal viveu um turbilhão político, com movimentos de esquerda, inspirados por ideais marxistas, a disputarem o controlo do futuro do país. Partidos como o Partido Comunista Português (PCP) e setores radicais do MFA defendiam uma transição para um regime socialista anti-parlamentar e distante daquilo a que chamavam a “democracia burguesa” — a que temos hoje —, enquanto forças moderadas, como o Partido Socialista (PS) e o Partido Social-Democrata (PSD), advogavam uma democracia liberal pluralista. As eleições de 1975 para a Assembleia Constituinte, as primeiras livres em décadas, foram um marco: os portugueses rejeitaram maioritariamente as visões mais radicais, optando por partidos que defendiam a democracia representativa e a integração europeia — e, apesar da opinião pública estar fortemente manipulada para um entendimento da revolução como inevitavelmente marxista, premiaram maioritariamente a social-democracia moderada de Mário Soares e de Sá Carneiro.

Por volta de 1982, com a estabilização das instituições democráticas e a aprovação de uma Constituição revista que afastou algumas das ambições socialistas mais utópicas do PREC, os objetivos centrais do 25 de Abril – democracia, descolonização e modernização económica – estavam, em grande medida, cumpridos. A adesão à Comunidade Económica Europeia em 1986 consolidou Portugal como uma democracia liberal, aberta ao pluralismo político e à economia de mercado, colocando-a aliás na dependência de financiamentos e estruturas externas que na prática tornavam praticamente impossível qualquer regresso a um regime não democrático. Mesmo depois deste sucesso, que poderia ter sido aproveitado como um passo em frente no desenvolvimento económico, social, cultural e principalmente político do país, a celebração do 25 de Abril permaneceu, adquirindo contornos quase religiosos, como uma “data natalícia” que, para muitos, transcende a política e se torna um símbolo intocável. Espanha, que não teve, como nós, um momento de transição tão súbito, passou por uma democratização muito mais racional e não conta com nenhuma data de características sacras como esta — e passa bem sem isso.

A Transformação das Celebrações: De Revolução Popular a Feira Elitista

As celebrações do 25 de Abril, especialmente em Lisboa, mudaram drasticamente desde os anos 1970. Nos primeiros anos, as manifestações eram vibrantes, com operários, camponeses e estudantes a encherem as ruas, celebrando a liberdade recém-conquistada — cerimónias aliás largamente estendidas à data do primeiro de Maio, naturalmente associada a essas classes. Hoje, porém, o desfile transformou-se numa manifestação ao nível de feira popular, dominada por uma burguesia intelectual de esquerda que, vinda de toda a área metropolitana de Lisboa, parece desconectada do resto da sociedade. A ausência das antigas classes operárias, há muito extintas reflete transformações socioeconómicas profundas: a desindustrialização, o enfraquecimento dos sindicatos e a ascensão de uma economia de serviços reduziram o peso das classes trabalhadoras tradicionais, que outrora foram o coração da revolução. O que resta hoje é a peregrinação das classes intelectuais progressistas — entre as quais se contam famílias burguesas bem instaladas no novo regime, juventudes das indústrias criativas enganadas por promessas de ensino superior como garante de empregabilidade, e alguns radicais socialistas que ainda sonham, em pleno século XXI, com

A maioria da população local de Lisboa — que, à semelhança dos parisienses que nunca vão à Torre Eiffel — não tem significativo interesse na parada ou procissão que ali decorre, tal como também não são conhecidos por se dirigirem em massa à feira da ladra, às marchas ou aos santos populares. Este é aliás um triunvirato de eventos cuja frequência se pode dizer mais turístico do que autenticamente local, embora, no caso das marchas ou dos santos, existam adesões de camadas específicas dos antigos bairros populares cuja lealdade aos eventos é duradoura. Mas a descida da avenida, em particular, é um evento quase exclusivo de uma elite politizada, fauna que curiosamente podemos encontrar, em menor número, mas com as mesmas caras, os mesmos hábitos e a mesma categoria de classe social perfeitamente discernível e inconfundível, na Feira do Livro que anualmente decorre no Parque Eduardo VII.

Esta alienação pode ser atribuída a vários fatores. Primeiro, o 25 de Abril, enquanto evento histórico, pode ter perdido relevância para gerações mais jovens, que não vivenciaram a ditadura ou o fervor revolucionário. Segundo, as celebrações, frequentemente organizadas por partidos e movimentos de esquerda, adquiriram um caráter sectário, afastando aqueles que não partilham a mesma visão ideológica. O que era um momento de unidade popular transformou-se num ritual que, para muitos, parece mais performativo do que genuíno. Com o passar do tempo, o fosso tem-se alargado ainda mais: novas forças políticas, ajustadas aos tempos actuais e já não agrilhoadas pelos dogmatismos da revolução socialista, surgem no panorama parlamentar e extra-parlamentar português, não reconhecendo na procissão do dia o carácter sacramental e religioso que os seus participantes lhe incutem, tal como não reconhecem na data do 25 de Abril a inevitabilidade do caminho para o socialismo.

Tensões Ideológicas: O Legado do 25 de Abril em Disputa

A existência destas novas forças políticas podia ser meramente um fenómeno distante da marcha, já que algumas não pretendem sequer ter nela parte. Mas recentemente, as tensões nas celebrações do 25 de Abril tornaram-se mais evidentes com a entrada da Iniciativa Liberal no desfile. Este partido, que defende o liberalismo económico e político, representa uma visão da democracia que contrasta com a narrativa dominante de setores da esquerda, que continuam a ver o 25 de Abril como o ponto de partida para um projeto socialista de inspiração marxista. O cerrar de fileiras da esquerda política em geral face a esta participação revela a verdadeira essência das celebrações: para muitos dos seus organizadores, a revolução não foi a criação de uma democracia liberal e plural, aberta a ideologias de esquerda e de direita, mas sim o embrião de um regime sectário, que, por várias vezes, foi rejeitado pelos portugueses nas urnas.

Estas tensões são, paradoxalmente, bem-vindas. Elas expõem o contraste gritante entre os resultados dos sufrágios universais desde 1974, que consistentemente favoreceram partidos moderados e pluralistas de esquerda e de direita, e a deriva totalitária de uma minoria de extrema-esquerda a que a esquerda centrista, por comodismo, covardia ou ignorância, vai atrás. Esta minoria radical, que aglomera também muita burguesia de esquerda moderada que gosta de com ela namorar, parece agarrada a uma visão do 25 de Abril que já não ressoa com a realidade política portuguesa. Desde 1975, os portugueses escolheram, eleição após eleição, um modelo de democracia liberal, rejeitando tanto o autoritarismo de direita do Estado Novo quanto as utopias socialistas do PREC. No entanto, as celebrações do 25 de Abril continuam a ser apropriadas por setores que insistem numa leitura ideologicamente enviesada da revolução, aliás marcada por expressões conflituosas anti-direita e com evocações mal-informadas de supostos “valores de abril” que incluem nacionalizações massivas que não recolhem unanimidade da sociedade portuguesa, expressões estas que nada têm a ver com uma democracia liberal que inclua expressões políticas de todos os quadrantes.

Para um Futuro Mais Plural

A insistência em celebrar o 25 de Abril como uma data natalícia de características religiosas e caducas impede, em certa medida, a plena realização da democracia liberal plural que a revolução tornou possível. Os principais objetivos do 25 de Abril – liberdade, democracia e desenvolvimento – foram alcançados, em grande parte, por volta de 1982. Continuar a tratar esta data como um totem intocável, reservado a uma elite ideológica, apenas perpetua divisões e obscurece o verdadeiro legado da revolução: a criação de um sistema político aberto a todas as ideologias, de esquerda e de direita.

É possível que, no dia em que o 25 de Abril deixe de ser celebrado com este fervor quase religioso, Portugal possa abraçar uma democracia ainda mais vibrante e plural. Nesse futuro, haverá mais possibilidade, mais democracia, mais pluralidade, mais esquerda e mais direita. A revolução, afinal, não pertence a um grupo ou ideologia; ela pertence a todos os portugueses, que, através do voto e da participação cívica, continuam a moldar o seu destino. Que o 25 de Abril seja, então, não um fim em si mesmo, mas um convite permanente à construção de um país mais livre e inclusivo — e que, quanto mais depressa for esquecido, mais depressa se avançará para um futuro mais de acordo com os tempos, mais desenvolvido, mais próspero — e, no fundo, o que isto quer dizer é que se avançará para um futuro mais progressista e não um futuro preso nas ideias conservadoras de há cinquenta anos.