As Várias Gradações do “Negacionismo”

Texto de Ricardo Fortunato. Todas as fotos de United States Holocaust Memorial Museum. Imagem de capa: Ana Sérgio.

Demorámos algum tempo até nos pronunciarmos sobre este assunto porque, ao contrário da maior parte dos intelectuais de boca grande, não gostamos nem de falar do que não conhecemos bem, nem de tirar conclusões antes de termos tempo para conhecermos suficientes contornos do que se passa. Não temos entre nós quem seja entendido em virologia, em tecnologia mRNa, nem em políticas de saúde públicas. Aguentámos estes três anos com toda a racionalidade e paciência, aceitando a maior parte das decisões políticas tomadas, com mais nuances ou menos nuances, compreendendo com todas a sinceridade quer os movimentos imensamente minoritários, devemos dizer, de pessoas fortemente contra as acções de vacinação covid, quer também a posição de outros movimentos e comunidades, incluindo de cientistas e de políticos, a favor do estado de alarme. Porém, existiu um epíteto que foi alvo de elevado abuso nas discussões por vezes de grande inflamação sobre o tópico; a ideia de que alguém do campo céptico se poderia invariavelmente classificar como “negacionista”. A nossa paciência quanto ao uso comum e até grosseiro deste termo por vezes esgota-se e desta vez esgotou-se mesmo. Tem sido usual da parte de certos fanáticos acusarem outros certos fanáticos — e, levando a eito, muita gente que não é propriamente fanática — com essa categoria, que é primeiramente depreciativa, de “negcionismo”. É um termo feio, pejorativo, que associamos a comportamentos de total negação da razão ou da moral, como o conjunto de pessoas também imensamente minoritárias que se dedicam a alegar que nunca existiu holocausto — que é obviamente diferente do conjunto de pessoas que discutem quais terão sido os números ao certo respeitantes a esse genocídio.

Assim, uma série de pessoas activas e entusiasmadas quanto a campanhas de vacinação em massa devido a um vírus que tinha uma taxa de letalidade global de 3% (em comparação com a de 1% da gripe comum), pessoas essas que poderiam ter ficado simplesmente pela posição sensata de contentamento com a existência de vacinas minimamente eficazes e com a livre escolha de cada um de as aplicar, passaram, durante um período — esse sim verdadeiramente “chalupa” — a olhar de lado, a evangelizar ou ostracizar e de modo geral a mal-dizer ou insultar quem demonstrava o mínimo de cepticismo legítimo acerca da necessidade das mesmas, atitude essa que não tem rigorosamente nada de científico. Em primeiro lugar, porque existe uma diferença entre as vacinas serem “benéficas” para a maioria individualmente, ou apenas para pessoas que por razão ou outra (e muitas das razões desconhecemos ou são aleatórias) são particularmente susceptíveis a risco de vida com a doença; e ainda uma diferença entre esses casos e a perspectiva mais holística de ver como as vacinas são benéficas para travar a transmissão colectivamente e desse modo acautelar os sistemas públicos de saúde — mas não necessariamente benéficas individualmente para toda a gente. Ou seja, serem benéficas de forma directa é completamente diferente de serem-no indirectamente — e é de uma desonestidade ou ignorância monumental (porque na verdade é uma questão política) certas pessoas quererem vender essa posição como “científica”. Portanto seria útil que tais pessoas activas e entusiasmadas não trocassem aqui os conceitos entre benéficas “para a sociedade”, no seu ver, e “benéficas para a esmagadora maioria das pessoas”, embora talvez existam notórias dificuldades da parte desses em conseguirem distinguir uma coisa e outra.

A partir destas questões e doutras conseguimos discutir convenientemente os vários graus de “negacionismo”, que, de maneira menos tendenciosa, podemos designar simplesmente como graus de cepticismo. Conseguimos assim identificar pelo menos seis gradações da atitude céptica, a saber, por uma ordem que vai desde a plausibilidade/razoabilidade até ao lunatismo:

  • (1) pessoas que achem desnecessário a aplicação da vacina para todos os grupos da sociedade;
  • (2) pessoas que achem que a vacinação em massa está mais dominada pelos interesses das multinacionais farmacêuticas do que pela saúde pública;
  • (3) acham que a vacinação universal serve mais para acautelamento da sobrecarga dos SNS e não propriamente por uma preocupação realista com pessoas fora dos grupos de risco;
  • (4) acham que a vacinação universal pode ser inofensiva mas é uma espécie de teste da parte dos governos para analisarem a capacidade das populações para serem controladas;
  • (5) acham que as vacinas são propositadamente nocivas e parte de um esquema de controlo populacional com vista a exterminar excesso de população;
  • (6) acham que as vacinas têm chips para determinar o posicionamento/controle mental/aliens/etc.
Suitcases that belonged to people deported to the Auschwitz camp. This photograph was taken after Soviet forces liberated the camp. Auschwitz, Poland, after January 1945.

Algumas pessoas que para nós escreveram ou tentaram escrever artigos sobre o assunto foram inclusive avisadas de que o uso abusivo desse termo não seria tolerado sem que o sentido do mesmo não fosse especificado com criterio, dado que existe uma diferença abissal entre uma ponta da escala e outra; e enquadrar todos estes comportamentos e opiniões na classificação de “negacionismo” encerra vários problemas, nomeadamente: alguns deles são alicerçados em cepticismo perfeitamente científico; as pessoas são livres de fazerem escolhas, mesmo que isso coloque em perigo a sua própria saúde; e o carácter excomungatório da categoria do “negacionismo” coloca a ciência perigosamente num mesmo patamar da religião, de tendência universalista, exigindo não só aos seus praticantes mas a toda a sociedade a aderência à fé, sob pena da classificação excomungatória do “negacionismo”. Ora não deixa de ser absolutamente verdade que existe um fenómeno verdadeiramente negacionista nomeadamente quanto às vacinas mas não só, que, no entanto, tem partes das suas origens no falhanço da vacinação da gripe dos porcos em 1976, segundo sabemos (evento que despertou desconfianças perfeitamente legítimas não só quanto à ciência mas também à gestão da saúde pública, que são aliás duas coisas distintas), mas para além do negacionismo mais hardcore e quiçá completamente equivocado, existe uma disposição céptica quanto a vacinas e a outras questões científicas, uma disposição que é apenas não só perfeitamente legítima mas que faz parte, aliás, do próprio método científico em geral.

A Soviet soldier walks through a mound of victims’ shoes piled outside a warehouse in Majdanek soon after the liberation. Majdanek, Poland, August 1944.

Um outro apontamento que valerá a pena lembrar é que a presente disposição céptica foi, aliás, alimentada por uma desinformação propagada pela própria Organização Mundial de Saúde no início da pandemia: veicularam a ideia de que a eficácia das máscaras era muito reduzida e que não era necessário ninguém abastecer-se em massa desses acessórios: e isto foi dito com o objectivo de não esgotar os stocks de máscaras necessárias para os serviços de saúde. Ora esta desinformação despertou logo a desconfiança de uma parte do público em geral. Aqui se coloca a questão da honestidade, e é fácil perceber a partir daqui como as populações, quanto são tratadas por “estúpidas”, ou por crianças (o que é normal, pois muitas vezes a comunicação para as massas tem de se processar desse modo) tendem a desconfiar posteriormente, o que é legítimo.

Um outro ponto é, como já referimos, que a gestão da saúde, a gestão da saúde pública e o lado político da questão não é a mesma coisa que “a ciência” e os cientistas. Aliás, tem sido apontada como legítima crítica a um dos grandes apóstolos da vacinação e um dos responsáveis pelos programas de saúde pública mais extensos, o doutor Antony Fauci, que este tem formação mais do que respeitável em virologia, mas não necessariamente em gestão da coisa pública, gestão pandémica, política, etc. Pensamos que é muito importante distinguir claramente as duas coisas: a gestão da saúde e a pesquisa científica propriamente dita — distinção que, aliás, não foi suficientemente precisa na discussão pública sobre todos estes assuntos, dado que (por razões que não sabemos a priori interpretar) foram ambas subsumidas no conceito de “a ciência”. 

E isto leva-nos ao nosso último ponto, que achamos absolutamente importante relevar, que é que quanto mais as instituições e as pessoas ligadas à actividade da ciência comunicarem com o público em geral de forma a abraçar também o cepticismo deste, e quanto menos se assemelharem a instituições dominadas por dogma (que aliás não faz sentido, dado que as teorias científicas são corpos em constante actualização e não dogma), melhor atingirão os seus objectivos. Ou seja, que tanto o público em geral como o espírito do método científico são alimentados por uma espécie de talento humano a que chamamos de ceticismo, e que isso pode e deve ter um casamento possível. Gostaríamos de terminar com duas referências que estabelecem fronteiras flexíveis quanto a tópicos que podemos ver relacionados com a categoria completamente anti-crítica e anti-científica do “negacionismo”: a primeira, da enciclopédia do holocausto, descreve as metodologias usadas para estimar o verdadeiro número de vítimas; o segundo, dois exemplos da desinformação — levada a cabo por profissionais da ciência — posta a circular logo no início da pandemia por questões de gestão de pânico social.

https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/documenting-numbers-of-victims-of-the-holocaust-and-nazi-persecution

https://www.scientificamerican.com/article/scientists-failed-to-use-common-sense-early-in-the-pandemic/ e https://link.springer.com/article/10.1007/s10900-021-00971-8