Big Boys Do Cry — O Choro dos Homens na Literatura Clássica

Resumo

Propõe-se uma análise sobre o choro de homens em uma cultura que muitos consideram incentivadora de uma masculinidade antissentimentos. O ponto de partida é um artigo publicado na revista da USP, e a pesquisa explora a Ilíada, a Odisseia, a Bíblia e o Beowulf em busca de representações do choro masculino. Por meio dos textos analisados, estabelece-se um contraste entre as ideias neles expostas e o conceito difundido de “big boys don’t cry”, associado a Nietzsche e à era vitoriana.

Introdução

Nos últimos anos, tem-se levantado questões sobre os sentimentos masculinos, especialmente representados pelo ato de chorar. Em 2022, foi publicado um artigo na revista da USP intitulado “Para especialistas, é hora de acabar com a cultura do ‘homem não chora’”. O texto lança luz sobre o problema da conhecida “masculinidade tóxica”. Segundo Mesquita (2021, p. 1),

a expressão “masculinidade tóxica” passou a ser utilizada para nomear, com tom crítico, o conjunto de comportamentos associados à suposta crença da superioridade masculina, a qual é acompanhada de uma agressividade insidiosa, que alcança os próprios homens e as pessoas com quem estes se relacionam. Pode-se relacionar a utilização do termo à ideia de envenenamento das relações sociais e do próprio sujeito que performa essa imagem viril, exigida para se encaixar no padrão masculino.

Embora o artigo da USP afirme a existência da “masculinidade tóxica” e aponte a necessidade de superá-la, não apresenta meios efetivos para combatê-la nem oferece pistas sobre a origem dessa concepção. Ao analisar textos clássicos, a expressão “grandes meninos não choram” não parece ser completamente adequada. Assim, surgem questionamentos: por que homens não choram? Quem afirmou isso? Não há exemplos de homens chorando na literatura?

A investigação teve início com a intrigante afirmação de G. K. Chesterton: “De fato, os vikings não reprimiram de modo algum os sentimentos. Choravam como bebês e se beijavam como garotas; em suma, agiam como Aquiles e todos os heróis vigorosos, filhos dos deuses” (CHESTERTON, 2012, p. 206). Chesterton, um ávido leitor, não faria tal proposição sem indícios, o que nos levou a buscar tais evidências nos textos clássicos.

Desenvolvimento

Erroneamente, ser masculino tem significado, para alguns, buscar uma masculinidade distorcida: ser fisicamente forte, estar no controle e não demonstrar emoções. No entanto, os homens possuem sentimentos e emoções, mas são ensinados a suprimi-los e, consequentemente, a não prantear. É comum ouvir frases como: “Os meninos não choram” ou “Aceite isso como homem”.

Essa tradição equivocada de supressão dos sentimentos como manifestação de masculinidade parece ser fruto de uma distorção histórica. Diversos filósofos defenderam uma espécie de antissentimentalismo, como Nietzsche, que proclama: “Sede duros” (NIETZSCHE, 2003). Algumas interpretações de suas ideias levaram a um ideal de homem que não apenas reprime seus sentimentos, mas, por vezes, exalta a inexistência deles.

É inegável que os homens possuem sentimentos — exceto em casos patológicos, como a psicopatia —, e eles têm várias formas de expressá-los, inclusive por meio das lágrimas. A questão no passado não estava em ter ou não sentimentos, mas em como e quando expressá-los. Vejamos alguns exemplos:

O Angustiado Aquiles

Na Ilíada, no canto 19, encontramos o grande herói Aquiles em profunda angústia e Antíloco em prantos devido à trágica morte de Pátroclo. O contexto do trecho é o seguinte: Pátroclo decide ajudar os gregos, que estão acuados pelos troianos. Antes de partir para a batalha, Aquiles, seu amigo, o aconselha a ser cauteloso, mas Pátroclo ignora o aviso. Vestido com a armadura de Aquiles, ele persegue os troianos e é morto por Heitor.

Enquanto isso pensava no espírito e no coração, chegou junto dele o filho excelso Nestor. Vertendo lágrimas escaldantes, deu a triste notícia: “Ai de mim, ó filho do fogoso Peleu! Demasiado funesta é a notícia que ouvirás, prouvera que nunca tivesse acontecido!” Assim falou; e uma nuvem negra de dor se apoderou de Aquiles. Por seu lado, Antíloco lamentava-se e chorava muitas lágrimas, segurando nas mãos de Aquiles, que gemia no seu glorioso coração; é que receava que com ferro ele cortasse a própria garganta (HOMERO, 2013, p. 519-520, linhas 15-30).

Nesse excerto, observamos dois homens dominados pelo luto, pela angústia e pelo sofrimento. Homero descreve com clareza os sentimentos que atravessam os corações de Aquiles e Antíloco, transmitindo ao leitor o peso dessa dor. O poderoso Aquiles, conhecido por sua força, torna-se vulnerável ao perder o amigo Pátroclo, o que nos permite empatizar com sua humanidade.

Figura 1 – Quadro
Achilles Frantic for the Loss of Patroclus, Rejecting the Consolation of Thetis (1803), de George Dawe. Óleo sobre tela, 128,9 × 102,2 cm.1

O Nostálgico Ulisses

No canto 13 da Odisseia, Ulisses, mesmo estando vivo, é retratado como se estivesse morto. Ele se encontra na corte dos Feácios, sua última parada antes de retornar a Ítaca e reencontrar sua amada Penélope. Durante um banquete, o aedo Demódoco, sem saber da presença de Ulisses na audiência, canta sobre a Guerra de Troia, despertando emoções no herói:

Era isto que cantava o celebérrimo aedo. Mas Ulisses, com suas mãos possantes, pegou sua capa de púrpura e com ela cobriu a cabeça, escondendo o belo rosto. Sentia vergonha dos Feácios, porque das pálpebras corriam lágrimas: na verdade, cada vez que o aedo fazia uma pausa, Ulisses limpava as lágrimas e tirava a capa da cabeça; e com a taça de asa dupla oferecia libações aos deuses (HOMERO, 2011, p. 239, linhas 80-85).

Há debates sobre os motivos do choro de Ulisses, mas é evidente que ele é tocado profundamente pelas palavras de Demódoco. As memórias da guerra, com suas glórias e perdas, o levam às lágrimas diante de uma audiência, revelando a sensibilidade de um herói épico.

O Andarilho sem Direção

Beowulf é estruturado em torno de quatro funerais, todos conduzidos principalmente por homens. Após a morte de Beowulf, o último sobrevivente, um Geat, torna-se um andarilho sem senhor, lamentando o destino de seu povo. O funeral de Beowulf, o quarto e último do poema, é descrito com grande detalhe:

For him then the Geatish lords a pyre prepared upon the earth, not niggardly, with helms o’erhung and shields of war and corslets shining, as his prayer had been. Now laid they amidst their glorious king, mighty men lamenting their lord beloved. Then upon the hill warriors began the mightiest of funeral fires to waken. Woodsmoke mounted black above the burning, a roaring flame ringed with weeping, till the swirling winds and quiet, and the body’s bony house was crumbled in the blazing. Unhappy in heart they mourned their misery and their liege-lord slain (TOLKIEN, 2016, p. 104-105, linhas 2635-2640).

A cerimônia é marcada por episódios de luto intenso, com homens tristes e afligidos pelos eventos recentes, demonstrando que o choro e a expressão de dor eram parte integrante de sua cultura.

O Messias Choroso

Na narrativa bíblica, encontramos um episódio marcante envolvendo Jesus Cristo, descrito no Evangelho de João. Jesus, uma figura associada a características como força, compaixão, serenidade e humildade, demonstra emoção ao lidar com a morte de seu amigo Lázaro, que estava sepultado há quatro dias. Ao chegar a Betânia, onde viviam Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria, Jesus é interpelado por Marta e, em seguida, encontra Maria e outros judeus que consolavam as irmãs:

Jesus, vendo-a chorar, e bem assim os judeus que a acompanhavam, agitou-se no espírito e comoveu-se. E perguntou: “Onde o sepultastes?” Eles lhe responderam: “Senhor, vem e vê!” Jesus chorou. Então, disseram os judeus: “Vede o quanto o amavam!” (Jo 11:33-36).

Dois aspectos chamam a atenção nessa passagem. Primeiro, a agitação no espírito de Jesus, seguida por seu choro explícito, que é tão visível que os judeus reconhecem seu amor por Lázaro. Segundo, o fato de Jesus chorar mesmo sabendo que ressuscitaria Lázaro, mostrando que ele foi tomado por suas emoções de forma profunda, expressando um amor que transcende palavras.

Um Lamento ao Sentimentalismo

A partir dos exemplos apresentados, questiona-se a origem da condenação à expressão de sentimentos por homens. Uma das possíveis origens pode estar no conceito de “super-homem” de Nietzsche. Em sua obra, Nietzsche propõe a superação do homem tradicional, o que inclui a superação de comportamentos associados à fraqueza, como a expressão de emoções. Conforme Berdiaev (2021, p. 51),

Nietzsche quer vencer o homem, como sendo uma vergonha e um opróbrio, e busca o Super-homem. Assim, o termo extremo deste culto do homem criado pelo humanismo é a própria destruição do homem.

As interpretações de Nietzsche geraram controvérsias, influenciando ideologias como o nazismo, que associava o “super-homem” à eliminação de toda fraqueza, incluindo as emoções e a dor. Não havia espaço para dilemas sentimentais nesse ideal; eles deveriam ser suprimidos para que o homem se aproximasse do “super-homem”.

Além de Nietzsche, outras correntes influenciaram a perspectiva antissentimentalista. Segundo Capp e Jenkins (2014), o estoicismo na era vitoriana foi elevado a um radicalismo em que as emoções deveriam ser reprimidas. Contudo, estudos mostram que as emoções desempenhavam um papel crucial na dinâmica social da Inglaterra vitoriana. A origem dessa ideia é controversa, e uma investigação mais aprofundada sobre a recorrência da expressão “homens não choram” e seu contexto sociocultural e histórico seria relevante.

Conclusão

A bibliografia sobre o tema é vasta, mas os textos aqui analisados foram escolhidos por sua clareza e relevância no cânone literário. Nos exemplos apresentados, não se observa uma repreensão explícita da sociedade ao choro masculino; ao contrário, os textos são permeados por lágrimas viris. O problema não residia na fragilidade exposta pelo choro, mas na falta de domínio das emoções. Não era errado chorar, mas sim chorar copiosamente a ponto de se fechar em uma tristeza mortal ou em uma loucura, como a de Aquiles.

Portanto, os homens não eram incentivados a reprimir o choro, mas a conhecerem a si mesmos, a expressarem seus sentimentos sem se tornarem reféns deles, sem que estes ofuscassem a claridade do dia, a glória da batalha ou a razão de ser e viver. A origem exata da expressão “homens não choram” permanece incerta, mas os textos analisados revelam que figuras frequentemente associadas à masculinidade tóxica demonstraram maior abertura ao coração dos homens.

Referências Bibliográficas

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BERDIAEV, N. O Espírito de Dostoiévski. Tradução de Otto Schneider. 1. ed. Rio de Janeiro: Eleia Editora, 2021.

BERDIAEV, N. A Verdade e a Revelação. Tradução de Bernardo Santos. Rio de Janeiro: Eleia Editora, 2021.

CHESTERTON, G. K. Hereges. Tradução de Antônio Emílio Angueth de Araújo e Márcia Xavier de Brito. Campinas: Ecclesiae, 2012.

CAPP, B.; JENKINS, G. Big Boys Don’t Cry: Masculinity from Jesus to Michael Fassbender. Warwick Knowledge Centre, 2014. Disponível em: <https://warwick.ac.uk/newsandevents/knowledgecentre/arts/history/big-boys-dont-cry/>. Acesso em: 6 dez. 2023.

DAWE, George. Achilles Frantic for the Loss of Patroclus, Rejecting the Consolation of Thetis. 1803. Óleo sobre tela, 128,9 × 102,2 cm. Disponível em: [inserir URL]. Acesso em: 7 dez. 2023.

HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e notas de Bernard Knox. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011.

HOMERO. Ilíada. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e apêndices de Peter Jones. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2013.

TOLKIEN, J. R. R. Beowulf: A Translation and Commentary Together with Sellic Spell. Edição de Christopher Tolkien. London: HarperCollins Publishers, 2016.

MESQUITA, Yukimi Mori; CORREA, Hevellyn Ciely da Silva. A “masculinidade tóxica” em questão: uma perspectiva psicanalítica. Rev. Subj., Fortaleza, v. 21, n. 1, p. 1-13, abr. 2021. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692021000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 6 dez. 2023. DOI: 10.5020/23590777.rs.v21i1.e10936.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2003.

OLIVEIRA, Laura. Para especialistas, é hora de acabar com a cultura do “homem não chora”. Revista USP, 2022. Disponível em: [inserir URL]. Acesso em: 6 dez. 2023.

1 George Dawe (1781-1829), Achilles Frantic for the Loss of Patroclus, Rejecting the Consolation of Thetis, 1803. Óleo sobre tela, 128,9 × 102,2 cm.