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Caça ao Eros (uma travessia com George Bataille) 

“Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?”

-Fernando Pessoa

Variadas obras tratam este tema tão complexo e latente no Homem, sendo que em muitos casos é a Literatura que faz uma mais sagaz descrição do mesmo. Recomendaria, por exemplo, a famosa literatura erótica japonesa, como o livro Chá e Amor de Yasunari Kawabata, onde encontramos espelhado muito do que aqui será dito em forma de mero conceito.

Eros é uma força tão misteriosa quanto presente na vida dos homens: já na sua Teogonia, Hesíodo reconhece-o como uma força unificadora, filha do caos primitivo reinante. Outros autores integram o eros mítico no Olimpo, ou seja, enquadram-no numa fase bastante posterior do Kósmos, sendo este apresentado como filho de Afrodite.

Para entender esta força, é, segundo muitos autores, fundamental compreender a separação dos elementos que ela atrai, como para Simão de Samaria, que apresentava o fogo como Grande Poder, isto é, como energia vital, que se manifesta no homem e na mulher de modos distintos. Simão concebe dois momentos de transformação pelos quais passa o fogo nestes dois sexos distintos. Se no homem, o sangue quente e vermelho (como o fogo) se converte em esperma, a mulher converte-o em leite, sendo o homem o potenciador do ato e a mulher o sustento da nova vida.

A statue of a person and person

Description automatically generated Platão, na sua célebre obra O Banquete, apresenta a génese do eros de uma outra forma: Terá sido fruto do acasalamento de Poros e Pénia, recebendo do primeiro a astúcia de caçador e da segunda um estado natural de carência.

A person holding a pen and talking on the phone

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Description automatically generated O leitor familiarizado com Platão sabe como é difícil extrair teses acabadas dos seus diálogos deslumbrantes, sendo que uma leitura minuciosa frutifica, mas não encerra, com muitas das questões colocadas. Em certos momentos, Eros pode ser entendido como uma doença, um desvio da alma tirânico e que cega o apaixonado. É também conhecida a versão de Diotima na qual eros é um daimon (um génio) que estabelece a ligação entre os homens e os deuses.

Talvez algo mais próximo da ideia com que o senso comum ficou do pensamento platónico possa ser encontrada no diálogo Fedro, em que dado momento se sugere que a nossa alma, outrora participante da contemplação do Bem e do Belo, ao cair neste mundo e tendo sido feita prisioneira num corpo, consegue, por vezes, encontrar indícios desse Belo em alguém, o que desencadeia em si a ação das forças obscuras do eros, que são no fundo a consequência de uma carência que o sujeito tem de algo Superior.

Outra tentativa de acomodar o indomável eros no nosso espírito está presente no discurso proferido por Aristófanes n”O Banquete”. Este apresenta-nos um homem original com características para lá do extravagante: Quatro mãos, quatro pernas, quatro orelhas, etc. Sendo estes seres de grande poderio, os deuses terão deliberado separá-los, fragmentá-los, tornando-os nas mulheres e homens que conhecemos hoje, seres consideravelmente enfraquecidos e incompletos, eros seria assim a força que busca a completude original, isto é, em termos mais familiares da cultura popular, a cara-metade.

Nesta caça ao eros espantou-me o Prólogo de Georges Bataille que afirma no seu livro O Erotismo o seguinte: “De olhos fixos sobre uma tal visão de conjunto, o que mais me apaixonou foi a possibilidade de reencontrar numa visão de conjunto a imagem que obcecou a minha adolescência, a de Deus. Não porque regressasse à fé da minha juventude, mas porque estou certo de que no mundo abandonado que habitamos a paixão humana tem um só objeto (…)” (pág. 10, BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Moraes Editores,1980).

Para entender o aspeto fatal deste jogo, Bataille “denuncia” o Homem enquanto ser transgressor, uma vez que se trata de um ser descontínuo que busca fugir dessa condição. O Homem é, portanto, (e isto é fundamental para entender esta obra), um ser naturalmente descontínuo, que surge in medias res e que é mortal, mas, ao contrário da pedra ou da árvore que também perecerão com o tempo, o seu caso é diferente porque este não se conforma com isso.

A young child with wings sitting on a rock

Description automatically generated Esta noção de ser descontínuo é para Bataille a chave para entender, na medida do possível, qual é a natureza do eros, é esta descontinuidade que permite que dois seres descontínuos se encontrem num ponto, dando vida a um ser de igual natureza descontínua, é nesta força de atração física que reside o eros, daimon que confunde os sábios que tomam o humano como inevitavelmente só.

Embora pareça demasiado científico ou matemático, passível até de esquematização em folha branca de papel, Bataille atribui-lhe um sentido eminentemente religioso cuja ciência e a filosofia não conseguem extrair a essência fundamental. Trata-se de um misterioso e súbito de romper de fronteiras de duas individualidades fechadas.

Para este autor é absurdo fazer como muitos, na contemporaneidade, uma redução do eros a uma atividade lúdica entre corpos e corações, na realidade “(…) todo o erotismo é sagrado (…) a procura duma continuidade do ser prosseguida sistematicamente para lá do mundo imediato só pode ser designada por uma atitude essencialmente religiosa” (Ibidem, pág.17)

Tal como para os gregos, para Bataille o eros é essencialmente uma força violenta e transgressora (sem violência não existiria mudança, isto é, movimento), trata-se de uma transgressão em duplo sentido; além de ser um movimento este dirige-se para um querer-ser-como-os-deuses. Trata-se, portanto, de uma forma de mania, loucura, bem explícita nos versos pessoanos dedicados a D.Sebastião que escolhi como mote para este texto.

Este é o ponto fundamental, a tentativa de romper com a estrutura essencialmente solitária do eu, a busca por um esbatimento das fronteiras deste eu face ao outro. Podemos assim contrapor esta tese a algumas das afirmações mais comuns, que reduzem o eros a uma resposta a estímulos, sorvendo-lhe toda a metafísica e atribuindo-lhe a qualidade de coisa passiva à espera de ser desencadeada. Creio que Bataille glosa bem quando afirma que eros vai muito além do mero jogo anatómico, mas se for assim encarado poderá ser reduzido a uma modalidade desportiva com alguns traços particulares, mas ainda assim pouco mais que isso.

Não obstante, Bataille não nega a ação decisiva que é a procura da nudez, ou seja, de um dar-se a ver ao outro. Procura-se a nudez no recato livre do olhar alheio e, segundo o autor, este desnudamento era visto primordialmente como um simulacro da morte violenta, como é violento o ato sexual- aproxima-se do sacrifício.

É a partir deste momento que Bataille se torna claro para alguns e estranho para outros… É preciso vincar que eros é uma forma de hybris, isto é uma transgressão, estando subjacente por tal ordem de ideias uma proibição obscura, mas que estende os seus tentáculos aos pontos sensíveis da existência.

Quando o francês escreve a respeito do erotismo dos corações, descreve-o como “mais livre”, porque está separado da mera materialidade corporal e do aspeto imperativo que lhe reconhecemos. Várias foram as tentativas de definir este amor-paixão, muito presente em autores como Tolstói e Stendhal. Mas que se desengane aquele que começa a romantizar e a crer que aqui estamos a mencionar um território de paz, algo que de facto qualquer jornal sensacionalista desmente, assim como o “nosso” autor: “ Se é verdade que a posse do ser amado não significa a morte, também o é que a morte está necessariamente envolvida na busca dele. Se aquele que ama não pode possuir o seu amado, pensa, por vezes, em matá-lo, em muitos casos prefere matá-lo a perdê-lo” (Ibidem, pág.20).

O leitor ficará justamente escandalizado com estas cáusticas considerações, mas ela são, reitero, empiricamente comprováveis na imprensa e no quotidiano, mas é justo perguntar: A que forças dará o mais comum dos homens a mão a fim de se confrontar com o abismo da morte, isto é, do Tudo ou Nada (estado inerentemente religioso)?

O Aristófanes platónico e Bataille aparecem a responder em uníssono que o Homem é individualmente incompleto, isto é, uma presença-meio-ausente que busca a completude (que só pode ser encontrada no Divino).

Para o apaixonado, o ser amado é a Verdade, é assim que este lhe aparece e como tal induz-lhe uma sofreguidão de posse. Com ele a complexidade do Mundo parece desvanecer-se, focando-se este (pateticamente?) num(a) outro(a) mortal atribuindo-lhe o estatuto de unidade de sentido da totalidade do aparecimento, isto é, divinizando-a. Sendo que, assim como o rito sacrificial, o erotismo é uma procura do Eterno por um atalho.

Algo que ainda não foi dito mas que me parece importante vincar é que um dos pontos que faz divergir a sexualidade do Homem da do Animal, é a da posse neste primeiro desta coisa estranha a que por vezes damos o nome de interioridade. E, voltando ao que já tinha sugerido, e está presente em Bataille, o Homem Primitivo além de utensílios criou proibições, focando-se em dois pontos basilares da vida humana, a sexualidade e a morte.

Sendo que o erotismo nasceu, como podemos intuir no Antigo Testamento, da passagem da sexualidade inocente à sexualidade envergonhada, que passa, portanto, a fazer parte da vida moral, ou desta misteriosa interioridade.

Georges Bataille deixa sempre bem claro o facto de estar em território enigmático. A busca de eros não pode ser feita pelo tratado filosófico ou científico, mas sim eventualmente pela confissão. É em boa verdade nas confissões deixada por Santo Agostinho que encontramos uma das expressões mais exuberantes de amor, e no Salomão bíblico que encontramos algumas das passagens em que o erotismo é revelado no seu apogeu.

Não é possível conceber o erotismo na ausência de uma dicotomia do tipo proibição-transgressão. Existe, como sublinha o autor, uma cumplicidade entre a lei e a sua transgressão.

O termo que há pouco empreguei, confissão, deve ser corrigido acrescentando um outro elemento, a impessoalidade, pois se a experiência de eros fosse no campo fenoménico para x algo que nada tem de aproximado com y ou z pouco sentido faria falar-se de um eros porque este estaria carente te traços discerníveis. Dito de outro modo, o ato de morder a maçã é um bom arquétipo que se terá repetido incontáveis vezes até ao presente momento. Acompanhado de toda a angústia e sofrimento que advêm do instante primeiro e transgressor em que o Homem se achou sozinho no Mundo.

Trata-se, como Bataille reitera, de um rasgar-se a si mesmo e não um resultado de coerção externa, não, o Homem conhece, de alguma forma, a sua condição e procura transgredi-la. Sendo a morte, a procriação e o Divino a tríade louca que permite ter uma ideia do que é eros.

O leitor poderá achar que o francês exagera, ou interrogar-se sobre qual o motivo de tantas proibições, ao que este responderia que está a ser realista e que esta advém do trabalho, isto é da ação organizada, isto é, da razão, ainda que essas proibições sejam em muitos casos irracionais. Toda a atividade violenta como é o caso do ato sexual perturba o trabalho e como tal é passível de proibições.

A nudez sempre foi considerada digna em espaços e momentos específicos e vergonhosa noutros, sendo que esta separação tem vindo a ser diluída pela pós-modernidade em resultado da perda da noção de sagrado no quotidiano. Estamos a assistir ao definhamento do tabu, sendo importante definir este, trata-se de uma velha solução para um problema difícil e estrutural sendo que o seu questionamento faz abalar toda a estrutura. Um dos exemplos disso, e que é dado pelo autor é o incesto.

Quem lê O Erotismo depara-se com a descrição de horrores primordiais que serviriam de fundamento para os tabus poderá sentir-se a ler Lovecraft, assistindo a uma visão do humano no seu fundamento mais primitivo e cruel, não considero que se trate de um exagero e recomendo a quem assim pensa menor ingenuidade. Bem vemos como o estado de guerra conviveu sempre bem com a da violação, sendo a sexualidade usada também de forma bélica e criminosa quando se torna possível em estados de suspensão das proibições.

Bataille expõe insistentemente o erotismo comparando-o com outras formas de violência organizada como é o caso da guerra ou do rito sacrificial; apresentando o sagrado como a continuidade do ser que é revelada solenemente fixando a atenção na morte de um ser descontínuo. Sendo que a morte de alguém é mais traumática que o desejo violento da posse do outro, é também ela mais sagrada. Deus pedira a Abraão o sacrifíco do seu próprio filho como prova da sua lealdade.

Creio importante encadear dois aspetos; como diz o francês no começo do V capítulo, a transgressão não se resume à proibição, mas sim da sua superação consciente. Daí que possamos em seguida entender como a mesma sociedade que proíbe o homicídio pode permitir e até fomentar a guerra (para os animais não existem proibições, e como tal não existe o conceito guerra).

Uma chave fundamental para entender o que até aqui tem vindo a ser dito é o conceito de fecundação, apenas com ela é possível que numa ínfima parcela de dois seres descontínuos exista um instante de unidade. Como tal a atividade sexual parece colocar provisoriamente o isolamento em crise, o ato sexual potencia uma fuga de si mesmo. Faz de cada um de nós uma espécie de personagem hamsuniana, em que temos a figura do ermita que é perturbado pela beleza feminina, motivo pelo qual os pensadores ascéticos condenam de forma perentória a convivência entre homem e mulher, que inevitavelmente se irá traduzir numa injeção de mundo no sujeito que procura escapar dele.

O ato sexual é resultante de uma mortal superabundância, é embriaguez, grito descontrolado, sendo que somente os seres sexuados escapam dele com vida, nem sempre é assim por exemplo a fêmea louva-a-deus decapita usualmente o macho após o mesmo. Ainda assim segue-se no Homem aquilo a que usualmente chamamos ressaca e a que Bataille dá o nome de “pequena morte”.

Georges Bataille faz aliás na sua obra um gritante elogio à morte, que arrepiaria cada cabelo trans-humanista com pretensões criogénicas: “Só a morte inumerável faz sair de um beco estes seres que se multiplicam. Imaginar um mundo em que a organização artificial assegurasse o prolongamento da vida humana é apenas evocar a possibilidade de um pesadelo. Para lá de certo tempo a mais, nada conseguimos entrever. No fim reinaria a morte, invocada pela multiplicação, invocada pela superabundância de vida” (Ibidem, pág.90).

Uma posição que eu não poderia deixar de mencionar, e que vem à boleia do que tem vindo a ser dito, é a de que o êxtase sexual é no fim de contas a procura de um existir sem o peso de ser, como poderia ter dito Kundera, trata-se no fundo da busca de um esquecimento de si. Conforme tenho vindo a mencionar, segundo Bataille existe uma proibição fundamental obscura relativa à carne, sendo que, tanto no ato sexual como no sacrificial é a carne que é revelada enquanto excesso e em oposição à decência.

O ato sexual é, portanto, uma transgressão, um querer-ser-como-os-deuses, que de forma paradoxal reconduz na aparência o humano à animalidade. Trata-se de uma erupção excessiva desta energia a que damos nome vida, um excesso que irrompe da matéria inerte e que visa o crescimento (sendo que na reprodução se trata de um crescimento impessoal, em benefício de um outro ser descontínuo por vir, como tal, um rito de passagem).

O autor prepara-se para estabelecer uma divisão que eu já intuía: No caso da reprodução assexuada é a verdade última da morte que se manifesta, por seu turno na reprodução sexuada a mortalidade desses seres é mais frágil e pode levar tempo até que alguém se apaga da memória : “Um esqueleto pode durar milhões de anos” (Ibidem, pág.87). Permanecendo, ainda assim, a sua alma como elemento de descontinuidade que sobrevive ao ser corporal. Existe sempre esta clara ligação entre morte e eros em Bataille, sendo que este é um imperativo para sair-fora-de-si.

A violência do ato sexual abre uma ferida que está diretamente ligada com a angústia, reabre um abismo que há em nós. No entanto raramente é isso que aparenta ocorrer, na aparência parece ser o oposto, mas, “O movimento carnal é singularmente estranho à vida humana, desencadeia-se fora dela (…)” (Ibidem, pág.94) No ato sexual, aquilo a que chamamos personalidade encontra-se suspenso.

No capítulo X, Bataille começa por afirmar que geralmente o casamento e o erotismo não aparecem associados, pondo as coisas nos termos em que colocaria Kant ou Mandeville: “O casamento é, acima de tudo, o enquadramento da sexualidade lícita” (Ibidem, pág.99). Assim como o rito sacrificial, o casamento é um paradoxo, porque é uma transgressão carimbada. E se para os contemporâneos o casamento é cada vez mais uma experiência, podendo ser invalidada a qualquer momento, para os antigos possuia uma força imprimida pelo sagrado, tratava-se de uma união feita sob o olhar dos deuses.

Posto isto, e para concluir o meu texto, Bataille faz também referência ao fenómeno oposto ao do casamento: a orgia. Tal como podemos ver em autores como Eliade, a orgia é comum sobretudo em momentos de crise, exemplificando o autor no Erotismo com a figura do povo sem Rei, porque o Rei acabara de morrer. Instauram-se então ímpetos desagregadores da ordem e da hierarquia, que são em boa verdade os ímpetos que dominam a pós-modernidade. Como Bataille vê e bem, e talvez com uns anos de antecipação, mais do que ausência de pudor, a orgia é um sinal de que se vive um momento em que as forças do caos estão no comando.

Bibliografia

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Moraes Editores,1980

PLATÃO. O Banquete, Fedro, Apologia de Sócrates / Críton. Edições 70

VANEIGEM, Raoul. As Heresias. Lisboa: Antígona,1995