Várias interessantes reflexões sobre os compromissos médicos e filosóficos entre fisioterapia e cirurgia. Texto de Luís Coelho, Fisioterapeuta e escritor, Escola Superior de Saúde do Alcoitão. Revisão de Sílvia Pereira Diogo. Imagem: Votive Relief of Asclepius and Hygieia, Archaeological Museum of Piraeus, 350 BC, jstor.
Diálogos e polaridades concorrem para um objecto “manual”, funcional, que comunica cirurgia e fisioterapia num eixo demiúrgico, unitário, que, no seu aspecto final, parece suspender as primeiras contradições epistémicas entre as duas práticas. Faça-se a sua análise, bem como o caminho de síntese, coisa não irrelevante para a compreensão da própria relação médico/terapeuta – paciente.
Precisamente a última, por assentar numa díade onde avultam deslocamentos internos e transferências psicossociais, coloca o assento no que alguns contrapõem à cirurgia: o facto de possuir um quadrante fortemente “impessoal”, biomecânico, qualidade cruenta capaz de distanciar o objecto “paciente”. Mas a fisioterapia não é menos biomecânica e impessoal na sua tecnicidade (não apenas manual). Ela, tal como a cirurgia, não pode escusar-se ao seu papel “fisiológico”, sem o qual não passaria de pouco mais do que um placebo confortador; a relação “dialéctica” é o lugar da dicotomia cujos pólos terapeuta/médico e paciente requerem o necessário afastamento objectivo, arcaboiço do próprio modelo científico-positivo, sem o qual a intrínseca relação psíquica não se perfaz.

Claro está que a qualidade psíquica parece avultar mais na relação terapêutica contínua, sendo que ela põe em destaque uma série de itens “ideais”, que assumem, particularmente na fisioterapia, o papel de dogmas, que, às tantas, a aproximam do fantasma da pseudociência. Já Claude Bernard 1 alertava para o excessos escolásticos da lógica interna, passíveis de esculpir a teoria incompatível com o acontecimento fisiológico. Mas a última não pode, de todo, ser denegada; é, na verdade, ela que acode ao raciocínio clínico, e é a este, à sua qualidade observacional empírica (Francis Bacon 2), que acodem as grandes teorias, os sistemas de forte componente abstracta.
Consabidamente, a fisioterapia pode e deve alargar a cirurgia às suas diversas dimensões clínicas, bem como a “actos” modelares: há que distender as estruturas retraídas, as cicatrizes, quiçá o que a cirurgia acabou de libertar, há que reforçar o que se enfraqueceu pela sutura, fazer o levante, o equilibrismo, do acamado, deslocar o paciente apático: tudo isto fomenta os ganhos da cirurgia, e, por vezes, é o único modo de funcionalizar os ganhos operatórios. Guidelines são, muitas vezes, estabelecidas; parecem receitas, mas são, a bem ver, uma forma de defender o clínico dos seus próprios excessos dogmáticos, teoréticos, os quais transcrevem a desmesura do acto terapêutico, colocando, frequentemente, o resultado da cirurgia em risco. E não se trata, aqui, só de um problema de excesso de zelo, trata-se do facto de o zelo poder urdir a própria descompensação interna, psíquica, que nenhum placebo poderá contender no seu tempo útil.
Mas é justamente de compensação psíquica, de placebo, que trata o excesso dogmático do terapeuta, prestes a causar a descompensação do seu paciente. O excesso em causa é frequentemente urdido contra a própria medicina, contra o seu suposto “cientismo”, levando alguns terapeutas a seduzirem alguns pacientes no sentido de evitarem o tracto cirúrgico, um pouco à imagem do que promana de certas terapêuticas não convencionais, no seu intuito mais “alternativo” do que adjuvante.
Existe uma imagem “corpórea” que tem sido usada pelo autor deste texto para criar a analogia perfeita. Como sabemos, a musculatura anti-gravítica, muito presente na zona posterior do corpo, é de activação constante e “defensiva”, essencialmente involuntária. Tem sido, muitas vezes, reiterado que o alinhamento articular depende, grandemente, do estado de retracção dessas estruturas, das “cadeias musculares”, aliás, das cadeias “neuro-mio-fasciais”, sendo que o excesso destes músculos seria, assim, mais relevante para a criação de deformidades ou artroses do que o conjunto das actividades funcionais. Aliás, dor e disfunção adviriam daquela desmesura, não sendo, de todo, aconselhável reforçar de qualquer modo. 3, 4, 5 Assim, desportos, como a natação, que muitos “receitam” ao paciente com, por exemplo, raquialgia, deixariam de ser vistos como “panaceia”, sendo que a nova teoria, essa sim, viria substituir o intento salvífico da intervenção terapêutica.
Receitas, propaladas como médicas, e demonizadas enquanto científico-positivas, vêem-se, frequentemente, ser abaladas pela forte convicção dos proponentes das grandes teorias. Ao invés, portanto, de se defensar, por exemplo, a higiene postural, afecta à receita “consciente” fortificadora, passa a advogar-se a “reeducação postural”, que permitirá alongar o que aquele sistema fortaleceria sem piedade. De facto, a musculatura posterior é de tracto semi-voluntário, mas defensar o seu mero alongamento é, de todo, insuficiente, pelo que deve acrescer-se a dimensão neurológica. Claro está que surge, entretanto, a pretensão de “estruturar” um indivíduo. O método que se pretenderia “libertador” acabará por encurralar, terapeuta e paciente, num vínculo dogmatizador, quiçá placebetizador. Assim, ao invés de uma cirurgia de colocação de ortótese, pode, de algum modo, o terapeuta presumir-se capaz de a tratar com recurso à “reeducação postural”. Se não surgirem resultados palpáveis, é porque o método só poderá ser genuinamente mensurado na sua importância no longo prazo. Se surgirem resultados rápidos, eles podem não durar, ou podem implicar o pagamento de um preço em dor.

Há, também, o caso paradigmático das hérnias discais. A teoria das cadeias musculares defensa, frequentemente, que estas são provocadas pelos excessos miofasciais, mas o mecanismo de alongamento “mézièrista”, que assenta, sobretudo, na posição de flexão, pode, precisamente, fazer aumentar a hérnia, e a subsequente dor. É verdade que a colocação de, exemplificativamente, artrodese para estabilização da hérnia, poderá levar ao compromisso funcional de outras áreas da coluna, mas isto não desculpa o excesso dogmático da teoria em causa.
A teoria impõe, justamente, a ideia de Holisticidade, pelo que o corpo deveria ser tratado como um “todo”, para prevenir as respectivas “compensações”. O trabalho cirúrgico seria, portanto, encarado, como um processo de compensação capaz de criar novas necessidades “substitutivas”. De modo análogo, a relação com o paciente deveria ser cabalmente “holística”, atendo a sua totalidade bio-psico-social, ao invés da sua componente localizável mecanicamente. E tudo estaria bem se o próprio modelo “holístico” não fosse, também ele, um modo de compensar. Pois, quem pode, verdadeiramente, garantir onde se iniciam/finalizam os processos posturais e compensatórios? Como deverá ser esculpida a origem de toda a problemática, que, para alguns, é emocional, senão espiritual?
Segundo a teoria mézièrista, existe uma tríade de compensações miofasciais: lordose + rotação interna dos membros + retracção diafragmática 3, 5. É ela que permite, por exemplo, que a retracção da secção superior da cadeia muscular posterior seja compensada pela distensão da secção inferior da mesma, e vice-versa. Uma hipercifose dorsal será, provavelmente, consequente da lordose lombar e/ou cervical, o que faz com que a primeira possa ser, quiçá, meramente “aparente”. Ela colocaria os ombros em risco de desenvolvimento de artrose, do mesmo modo que a hiperlordose lombar aumentaria o risco de coxartrose. A intervenção postural implica, assim, o alongar das estruturas envolvidas. 5 O processo é contínuo, exige tempo e (re)avaliação constante. Pretende, talvez, cumprir, completar, o processo cirúrgico pretérito, invocando o equilíbrio miofascial pleno. Mas, com obviedade, nada durará sem o necessário equilíbrio neurológico e, acaso, psicoemocional.

Ora, o excesso dogmático do terapeuta pode ser representado pela desmesura do alongamento, com consequência semelhante à do fortalecimento indevido: a compensação por contracção. Esta implica a manifestação álgica, que, por sua vez, demanda mais defesa compensatória, criando, talvez, a “retracção” do paciente face ao método, ao dogma. Por seu turno, uma compensação deste processo emocional poderia fazer sobressair, novamente, a dor. Porque ela não foi tratada “realisticamente”. Por outro lado, note-se que mesmo o êxito em fazer dirimir a dor pode conter os seus riscos, porque a ausência “empírica” de sintoma poderá convidar a novos excessos posturais e/ou emocionais, perpetuando, como tal, o processo. Quanto ao terapeuta, poderá vivenciar coisa análoga, muitas vezes compensando o próprio paciente. Porque a ausência de dor convida, igualmente, ao exceder do método, como da “persona” do terapeuta; porque o excesso de sintoma reproduz, no terapeuta, a frustração emocional. Mas o sistema não se esgota no duo terapeuta-paciente: invoca todos os outros clínicos, bem como o colectivo social. Uma desmesura paradigmática pode levar a uma reacção “ressentida” prestes a urdir novel moral, e esta é, bem vendo, tão legítima como qualquer outra, se bem que ela conflitua com outros agentes, e também com a norma, no caso de se exceder. E a ausência de sintoma poderá, tal-qualmente, fazer expressar as morais para além de um limite “natural” aceitável.
Portanto, o paradigma representa o dogma “ideal”, a idiossincrasia, que pode ser aceite até determinado ponto, sobretudo se for funcional. Mas se ela implicar dor para o agente, ou outros agentes, isto poderá fazer abortar a metodologia. A manifestação sintomática é, assim, um alerta empírico, que, epistemicamente, representa a clínica nomotética, a norma fisiológica. Assim, ao invés de pretendermos, por um lado, a receita higiénica, ou, por outro, a “reeducação” livre, mais receitaríamos o equilíbrio, ao qual não será, decerto, estranha a harmonia social e do meio. E é, precisamente, do exterior que surge o novo desafio empírico, se bem que o equilíbrio defendido cria novel robustez pacificadora.
Logo, não poderíamos continuar a limitar-nos ao mero alongamento, mesmo que realizado com moderação; é preciso invocar os métodos mais “locais”, como a mobilização, a terapia manual e o reforço. Mas estes são devidos especialmente à musculatura fásica, liberal, do corpo, àquela que está feita para o movimento. No caso das “hérnias discais”, sobressai a importância do movimento em extensão (incluindo a terapia manual), bem como o reforço da musculatura profunda. Estes são métodos mais locais, com resultados mais “factíveis”. Eles contribuem para impor um limite aos métodos “dogmáticos”. Um ráquis operado tem tudo a ganhar com o movimento, o reforço, não devendo ser ameaçado pelo excesso de tensão, de estiramento. O que não implica que devamos olvidar o papel da idiossincrasia.

A propósito da última, devemos, agora, alertar para o excesso “cientificista”. Porque ele se inebria de “norma” clínica, da lógica nomotética, é necessário fazer sobressair, constantemente, o papel da razão, aliás, do raciocínio clínico, aplicado à intrínseca dialéctica terapeuta-paciente. Assim, tal como a componente empírica limita a racional, também esta deve, sempre, ser lembrada, pela própria dinâmica “dual”. O dualismo terapeuta-paciente é, igualmente, este equilíbrio, como a medida do seu controlo. O rigor empírico cria a convergência obrigatória ao equilíbrio, incluindo o “social”, até porque a ciência é, modernamente, o modelo dominante. Portanto, a par da dança das compensações, é a vertente científica pura que deve dominar.
Note-se que, apesar de a ciência parecer menos atractiva, é ela que responde, de um modo mais realista, às necessidades do paciente. Se a dualidade pretérita é, igualmente, a dualidade “espírito” vs. “matéria” que reacorda na “pós-modernidade”, é impossível não assumir a superioridade da “resultante” matéria. Ela não se limita a sanar o sintoma, ela faculta a própria vida que qualifica o sintoma. Assim, a distância clínica, que constantemente se imputa à frieza do médico, é o preço a pagar pela esfera de uma resultante que não pode limitar-se ao “insofrimento”. Mesmo no jogo das compensações sociais, quando a preferência pelo sujeito de uns é alavancada pela preferência de outros pelo objecto, é a segunda esfera que domina e aquela que tolera mais liberdade pessoal e clínica.

Sabemos bem que o objectivismo científico e dual adia consecutivamente o objecto uno. Aliás, mesmo o objecto dos modelos, dos paradigmas teoréticos, é de mote a dualizar a relação clínica. Mas esta é a esfera de uma relação “terapêutica”, em que o objecto cientificista permite, precisamente, equilibrar fisiologicamente o paciente, “matando-o” para a independência. Paradoxalmente, são os grandes modelos que propõem a perpetuação do “paciente”, na medida em que prometem mais do que dão. Se aquilo que recebem é pouco mais do que um placebo, então eis que se espraia o domínio maior das compensações, capaz de alimentar o sistema até ao infinito. Mesmo que o modelo clínico, nomotético, seja mais comedido no seu objecto, ele não deixa de prestar uma resultante palpável que, sempre, garante algo. Atendendo a que também ele placebetiza, então o acréscimo do realismo “científico” compreende um ganho mais consistente. O pior na esfera holística vigora na sua inquebrável infinidade de compensações, com cariz não falsificável (Popper 6). Por vezes, o desejo dos modelos teoréticos é, bem vendo, um querer permanecer doente. Porque, mesmo, e mormente, com os seus excessos, a sua “dor” previne um sofrimento bem maior. Mas se é para permanecer perpetuamente no encalço da solução terapêutica, mais vale a garantia empírica, que, de qualquer forma, consente um acompanhamento indefinido. Precisamente porque esta é uma solução importante, podendo acordar, entretanto, a esfera emocional, terá o cirurgião/terapeuta de fazer as vezes do terapeuta “holístico”. Bem vemos que não é possível escusar a dualidade em jogo, como o seu equilíbrio.
Claramente, consta a perspectiva cínica segundo a qual o cirurgião salvaria, sobretudo, os proponentes do seu modelo, patologizando os holísticos. Mas os últimos são igualmente bem-vindos a um modelo, que, de qualquer modo, represa a singularidade clínica bem mais do que os paradigmas dogmáticos. Entre a liberdade “material” e o dogma “pré-moderno”, a medicina/fisioterapia fez a sua escolha aparentemente mais salvífica. De resto, há que escolher entre um equilíbrio fátuo que pode durar indefinidamente e um insofrimento impassível. Mas isto seria como escolher entre a vida e a morte. E a vida, neste caso, é a maioria empírica capaz de fazer frente ao futuro. Se lhe adicionarmos a componente pacificadora, pode ser que o caminho futurável se defina de outro modo. Mas, com mais ou menos mortificação, a dualidade é o preço da consciência. Ela não poderá ser encarada, apenas, nos termos de um cirurgião que dá vida e de um fisioterapeuta que dá a qualidade de vida, ela exige que ambos os agentes sejam equilibradamente duais, vivos para o “sofrimento” da consciência dialéctica que o paciente vem desafiar. Alongar o dogma e reforçar a liberalidade é o alvo “objectivo” de um (des)equilíbrio tendencialmente pessoal, que abarca ambos os intervenientes. Não há como fugir ao processo, é o destino do “clínico” de excepção ser a regra da vida.
Referências bibliográficas
1. Bernard C. Introdução à medicina experimental. Guimarães edições; edição original de 1865.
2. Bacon F. Novum organum. Porto: Rés; edição original de 1620.
3. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert; 1949.
4. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
5. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
6. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul, Ltd.; 1945.