Como D. Pedro I quisera espancar um Bispo porque dormia com uma mulher casada

“Nom somente usava El-Rei de justiça contra aqueles que razom tinha, assi como leigos e semelhantes pessoas, mas assi ardia o coraçom delle de fazer justiça dos maus, que nom queria guardar sua jurisdiçom aos clerigos também d’Ordens pequenas como de maiores; e sse lhe pediam que o mandasse entregar a seu Vigairo, dizia que o posessem na forca e que assi o entregassem a Jesus Cristo que era seu Vigairo, que fezesse delle dereito no outro mundo; e ell per seu corpo os queria punir e atormentar, assi como quisera fazer a um Bispo do Porto [Afonso Pires do Soveral], na maneira que vos contaremos. Certo foi, e nom ponhaes dúvida, que El-Rei partindo d’Antre-Doiro-e-Minho por viir à cidade do Porto, foi enformado que o Bispo desse logar, que entom tinha gram fama de fazensa e honrra, dormia com huma molher d’hu cidadão dos bõos que havia na dita cidade, e que elle nom era ousado de tornar a ello [isto é, não ousava vingar-se do Bispo], com espanto d’ameaças de morte que lhe o Bispo mandava poer. El-Rei quando isto ouviu, por saber de que guisa era, nom via o dia que estevesse com elle pera lho haver de perguntar; e logo sem muita tardança, depois que chegou ao logar e houve comido, mandou dizer ao Bispo que fosse ao Paço que o havia mester por cousas de seu serviço; e ante que chegasse, fallou com seus porteiros que depois que o Bispo entrasse na câmara lançassem todos fora do Paço, também os [homens] do Bispo como quaisquer outros, e que ainda que alguūs do conselho viessem, que nom deixassem entrar nenhuū dentro, mas que lhe dissessem que sse fossem pera as pousadas, que elle tinha de fazer hūa cousa em que nom queria que fossem presentes. O Bispo como veio, entrou na câmara onde El-Rei estava, e os porteiros fizerom logo ir todos os seus e os outros, em guisa que no Paço non ficou nenhuū e foi livre de toda a gente. El-Rei como foi adeparte com o Bispo, desvestiu-se logo e ficou em hūa saya de escarlata, e por sua mão tirou ao Bispo todas suas vestiduras, e começou de o requerer que lhe confessasse a verdade daquelle malefício em que assi era culpado; e em lhe dizendo esto, tinha na mão huū grande açoute [chicote?] pera o brandir com ele. Os criados do Bispo, quando no começo viirom que os deitavom fora, e isso mesmo os outros todos, e que nenhuū nom ousava lá d’ir, pollo que sabiam que o Bispo fazia, desde aí juntando a esto a condiçom d’el-Rei e a maneira que em taaes feitos tiinha, logo sospeitarom que El-Rei lhe queria jugar dalguū mau jogo; e forom-se à pressa ao Conde velho e ao Mestre de Cristo D. Nuno Freire e a outros privados de seu conselho que acorressem azinha [rapidamente] ao Bispo; e logo tostemente [rapidamente] vierom a El-Rei e nom ousarom d’entrar na câmara por a defesa que El-Rei tinha posta, se nom fôra Gonçalo Vasques de Góis seus escrivam da puridade, que disse que queria entrar por lhe mostrar cartas que sobrevierom d’El-Rei de Castela a gram pressa; e per tal azo e fingimento ouverom entrada dentro da câmara e acharom El-Rei com o bispo em razões da guisa que avemos dito e nom lho podiam já tirar das mãos; e começarom de dizer que fosse sua mercê de nom poer mão em elle, que por tal feito, nom lhe guardando sua jurdiçom, averia o Papa sanha delle; demais que o Povo lhe chamava algoz, que per seu corpo justiçava os homens, o que nom convinha a elle de fazer por muito malfeitores que fossem. Com estes e outras taes razoes arrefeceu El-Rei de sua brava sanha, e o Bispo se partiu delle com triste e torvado coraçom”.

 – Crónica de D. Pedro, cap. VII.