Crítica: duas obras de Eduardo Marçal Grilo

«Salazar e a Educação no Estado Novo» (2022, 230 p.) e «Educação e Liberdade» (2024, 276 p.) de Eduardo Marçal Grilo, Clube do Autor. ISBN:978-989-724-660-9 e 978-989-724-768-2, respetivamente. Por José Braga, investigador do Centro Interuniversitário de História da Ciência e Tecnologia — Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

As declarações de memorialistas (diários, memórias, declarações orais ou entrevistas) só podem ser aceites como verdades após investigação suplementar. Devem ser avaliadas de forma crítica e abordadas com ceticismo, dado que pode haver afirmações inconsistentes e a tentativa de fixar versões da História. Além disso, um ator ao abordar as suas próprias ações nem sempre é fidedigno devido a esquecimento ou tendência para racionalizar à luz de eventos posteriores.

Sabendo isso, Eduardo Marçal Grilo (n. 1942), engenheiro mecânico, licenciado e Doutor pelo Instituto Superior Técnico, com mestrado feito no Imperial College da Universidade de Londres, publicou as suas memórias relativas a educação nestes dois volumes. São mais relevantes por se tratar de alguém que foi professor e Diretor Geral do Ensino Superior e Ministro da Educação. Não se trata de um texto memorialista típico, nem de história da educação apesar de existir uma base de investigação e de recordações. São o que se pode qualificar de «memórias pesquisadas».

«Salazar e a Educação no Estado Novo» abrange os consulados de António Carneiro Pacheco (que ocupou a pasta de 1936 a 1940), autor da Lei de Bases da Educação do Regime; Mário Figueiredo (com a tutela de 1940 a 1944) e Fernando Pires de Lima (responsável entre 1947 e 1955), que nos seus mandatos tiveram sobretudo preocupação de inculcar a ideologia do Estado Novo na população estudantil e no professorado, permitindo a sua consolidação e desenvolvimento. É esse o contexto do afastamento de 42 professores do ensino superior durante o Estado Novo (Anexo III do livro, pp. 219-221).

Com Francisco Leite Pinto (Ministro da Educação de 1955 a 1961) e Inocência Galvão Teles (entre 1962 e 1968) o Regime adota uma visão pragmática da relação entre educação e formação de recursos humanos para a Economia. Leite Pinto foi responsável pelo Decreto-Lei 40 900, de 1956, que, por pretender instaurar o controlo das direções das Associações Académicas (conjugado com a Guerra Colonial e o receio pelas oportunidades profissionais), originará diversas crises estudantis, nomeadamente a de 1962 (pp. 172-175) que o Autor viveu como estudante no Instituto Superior Técnico (pp. 188-192). É retratado assim, do ensino primário ao doutoramento, um ensino (superior) elitista e as suas convulsões.

«Educação e Liberdade» é um trabalho mais intimista e mais rico em informações. Marçal Grilo começa por referir o papel de Marcello Caetano na Crise estudantil de 1962 para explicar o início do consulado de José Veiga Simão (Ministro da Educação de 1970 a 1974). Debruça-se sobre a receção das ideias deste nas Universidades, nomeadamente a diversificação do ensino pós-secundário e a expansão da rede de ensino superior, quando só existiam 4 universidades: Lisboa, Porto Coimbra e Instituto Superior Técnico e a Universidade Católica (com um estatuto especial, ao abrigo da Concordata).

Veiga Simão elaborou as «Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior» (1971), sob influência britânica, criando os futuros Politécnicos (Vila Real e Covilhã foram os primeiros), a Universidade de Aveiro, a Universidade do Minho, a Universidade Nova de Lisboa e o Instituto Universitário de Évora. Também cria «vigilantes» políticos nas universidades (os «gorilas»), o que o Autor não esquece. Apoiado pelo Presidente do Conselho de Ministros, para o Autor, a liberalização do Regime tinha na Educação o seu motor. Marçal Grilo, com base numa investigação pessoal, aborda as relações entre Marcello Caetano e Veiga Simão, que ameaçou demitir-se caso o Instituto Universitário de Évora não fosse criado (p. 103).

Este Ministro da Educação teve uma visão estruturada e de conjunto do sistema educativo (algo raro) e procurou também não confrontar universidades, criando novas relações e equilíbrios institucionais, não pondo em causa «elites intelectuais», antes ampliando-as e diversificando-as.

Com o Período Revolucionário Em Curso, o Autor recorda os saneamentos (Anexo 2, pp. 259-263) em que 54 docentes foram afastados. Retrata a anarquia no ensino: «Na área da educação, este processo revolucionário teve as maiores consequências tanto no ensino superior como nas escolas dos ensinos básico e secundário. A indisciplina instalou-se em praticamente todas as escolas e a falta de autoridade era evidente; ninguém respeitava as hierarquias existentes, e os revolucionários tomaram conta dos órgãos de gestão, introduzindo um sem-número de práticas improvisadas e sem racionalidade, denominadas como «gestão democrática» (p. 137). Foi uma fase difícil para o nosso país, com grandes convulsões políticas.

Ainda assim, procedeu-se à expansão da rede de escolas de ensino secundário, criando mais de 100 estabelecimentos desse nível, difundindo-o geograficamente, mas diminuindo a qualidade da formação dos professores e alunos e extinguindo o ensino técnico (institutos comerciais, industriais e escolas de regentes agrícolas), privando o país, por décadas, de mão-de-obra com qualificação média, essencial para diversas atividades económicas, o que também explica a dificuldade em atrair investimento estrangeiro.

Marçal Grilo descreve igualmente o mandato de Mário Sottomayor Cardia (Ministro da Educação entre 1976 e 1978), foi Diretor Geral do Ensino Superior a seu pedido. Neste, procurou-se a despartidirização das estruturas de ensino superior, a criação das Comissões interuniversitárias (para analisar as estruturas curriculares e as habilitações docentes); abordaram-se questões relativas ao ensino da Medicina (destacando-se a importância de Jaime Celestino da Costa) e a criação da Universidade Nova de Lisboa, organizada de forma interdepartamental (e funcionando assim até 1977), para fomentar a interdisciplinaridade, num modelo das universidades anglo-saxónicas, apadrinhada por Veiga Simão.

O Autor vivia entre a Academia Militar, o Instituto Superior Técnico e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, tendo, portanto, uma observação da sociedade da época a partir de vários ângulos. Lembremo-nos que um dos resultados da anarquia durante o PREC, foram as passagens administrativas, o «passar sem saber», a negação daquilo que deve ser a Educação. Todavia, é por essa época que nasce o Serviço Cívico. Rapidamente abandonado por razões políticas, equivaleria ao que é hoje o gap year em alguns meios socioeconómicos: permite conhecer outras realidades, o alargar de horizontes, a inserção na vida adulta e um contributo para a Sociedade, retribuindo a juventude a formação recebida gratuitamente.

Estes dois livros completam-se, devendo ser lidos conhecendo a admiração de Marçal Grilo por Veiga Simão e a pertença à sua família política. Além disso, existem falhas na revisão do livro que desmerecem o Autor. «Memórias pesquisadas», escritas por um observador atento, têm valor pelas recordações de personalidades (o segundo volume possui um útil índice onomástico a consultar) e por testemunharem a importância da criação de Escolas Superiores de Educação e Institutos Politécnicos e universidades recentes, o seu papel para o desenvolvimento regional e a democratização social e espacial da educação. Podem ser lidos com proveito por qualquer pessoa que se interesse por educação, especialmente estudantes e professores de qualquer grau de ensino, pois devemos conhecer o passado para compreender o presente e planear o futuro.