Crítica: Groundhog Day (Harold Ramis e Danny Rubin, 1993)

Groundhog Day foi concebido como uma comédia com alguns elementos místico-religiosos associados, alicerçada numa premissa do género fantástico, onde um homem de constituição moral perversa é forçado, por razões desconhecidas, a viver o mesmo dia repetidamente, optando então por um progressivo melhoramento moral que leva à quebra desse ciclo e ao regresso à continuidade da vida. Mas os elementos narrativos que constituem o filme resultam num produto final que os ultrapassa e que tem vindo a ser reconhecido enquanto parábola moral enormemente sólida construída sobre um fundo alegórico de conteúdo indeterminado, algo que tentarei explicitar melhor nesta recensão.

Se o virmos como simples parábola, o filme é muito próximo de It’s a Wonderful Life (Frank Capra, 1946), tanto pelo recurso ao sobrenatural como pela adaptação contrariada e ridícula dos protagonistas à circunstância extraordinária em que se encontram, adaptação essa que consiste numa performatividade cómica que encobre um ethos forte, seja ele inerentemente bom no caso de James Stewart ou corrompido no caso de Bill Murray. Ambos os filmes se passam no Inverno, e a situação de alteridade dos protagonistas é acompanhada por cenários exíguos e sufocantes. As localizações chave de Groundhog Day são fechadas e ligeiramente soturnas, assumindo a função de pano de fundo para a transformação moral que é acentuada pela repetição destas localizações, como o ponto de reportagem, em que o protagonista e a multidão se encontram de costas voltadas, ou o bar e o café do hotel de província, de aspecto sadio mas que aparentam indiferença face à situação do protagonista e à reacção do espectador a essa situação. A transitoriedade do hotel é aqui usada como substrato da repetição, dado que é onde o protagonista acorda sempre e onde tem de passar mais tempo. A fotografia do filme, em tons sépia, castanho e acinzentado, acompanhada do céu encoberto de um clima invernal, encerram o protagonista nessa ambiência, e os planos de Ramis, usados de modo inteligente, nunca tentam ultrapassar essa exiguidade.

Estes são apenas alguns dos elementos da narrativa e da cinematografia que criam condições para que o filme ultrapasse a comédia ligeira e se aproxime da parábola e da alegoria. O argumento de Danny Rubin foi elaborado inicialmente como uma viagem pelo melhoramento ético individual, e foi através do trabalho de Murray e Ramis, ainda na fase de desenvolvimento do argumento, que se estabeleceu a estrutura de uma comédia romântica como base do filme. Murray, com problemas maritais na altura da rodagem, empurrou o filme para o drama, enquanto Ramis o puxou para a comédia e Rubin insistiu em manter a premissa inicial removendo quaisquer referências históricas.[1] Se o filme se mantém fundamentalmente como uma comédia ligeira, apesar de a interpretação de Murray a tornar também uma comédia negra, consegue simultaneamente um paralelo perfeito com um drama profundo e filosófico de forma quase desintencional. Como Stanley Fish sublinha, as duas dimensões acompanham-se na perfeição sem se estorvarem, e muitos aspectos do drama filosófico emergem de artifícios e dispositivos cómicos e não de uma premeditação que procurasse a construção de uma narrativa ética que subsumisse inteiramente a comédia ligeira. É nessa base que o filme consegue dispor as condições para a construção de uma estrutura alegórica e figurar, com a distância própria das alegorias, uma ética poderosa que se mantém sempre alicerçada no veículo telúrico da comédia.

Mas esta construção consuma o filme como um produto em que aquilo que mais toca o espectador é um efeito obscuro e de difícil determinação. Nem o aperfeiçoamento moral nem a premissa fantasiosa da repetição do mesmo dia são suficientes para transcender a simplicidade da parábola e colocar o filme no terreno da alegoria. Será necessário então analisar como é constituído esse mecanismo alegórico de que o filme se serve. As primeiras hipóteses, mais frequentemente referidas, vêem Groundhog Day como uma viagem budista através de reencarnações, ilustrando o aperfeiçoamento do protagonista através da aprendizagem, em que este vai evoluindo para o estado seguinte, terminando por libertar-se do ciclo em que se encontra. Numa outra leitura, usando terminologia cristã, já sem o conceito de reencarnação, o protagonista estaria preso num purgatório e precisaria de encontrar um melhoramento através do confronto com a perversidade, evoluindo para o seu reconhecimento e para o perdão, ascendendo assim a um céu que neste caso é telúrico. Estas hipóteses são interessantes e não contraditórias entre si, mas nenhuma delas justifica o efeito tão marcante do filme. Muitas obras de comédia ligeira contêm exactamente o mesmo processo de melhoramento moral sem que com isso atinjam o poder alegórico de Groundhog Day, e não é claro como é que o artifício fantasioso consegue exactamente transcender essa parábola tão comum. Mas talvez a alegoria enunciada em Groundhog Day nos pareça tão poderosa por ser uma alegoria dos nossos próprios dias, da nossa própria vida constituída por repetições, uma leitura que não é contraditória com o processo de melhoramento moral também descrito pelo filme.

Esta hipótese, de que Rubin parece também aproximar-se, surge como a mais universalmente identificável, estabelecendo como chave do filme a habituação do protagonista à própria vida, a que assistimos através do cinismo e da tragicomédia de Murray, algo que constitui um paralelo com a repetição das nossas vidas, já que os nossos dias são também em grande medida idênticos. Assim, mais do que uma jornada ética, a viagem de Murray pode ser lida como um aperfeiçoamento moral por força do costume, uma vez que a única saída ou interpretação possíveis dos eventos idênticos passa pela sua aceitação e pela imersão no ciclo, a ponto de o sujeito ser incólume tanto à passagem como à não passagem do tempo. Mas esta dimensão alegórica e o nível específico em que opera não invalida a leitura moralista tipicamente feita do filme. O protagonista passa efectivamente por um melhoramento ético, existe uma aprendizagem e um progresso, mas estes são processos telúricos incluídos na esfera alegórica, onde não existe qualquer progresso moral, apenas um processo de habituação que modifica o empírico e a reacção do protagonista à sua repetição. Deste modo, o facto de a origem ou razão da repetição dos dias nunca ser explicada pode dever-se a esta não ser a repetição de uma norma variável mas simplesmente a extensão alegórica da repetição diária da vida. A opção de nunca explicar a causa da repetição temporal equivale a dissolvê-la no conjunto das outras causas não explicadas que encontramos na decorrência da vida, o que é, aliás, um artifício recorrente na ficção, onde mistérios non sequitur desaparecem na normalidade. Assim, o inexplicável da premissa funciona como uma peça do mecanismo alegórico que permite reforçar, logo de início, a identificação entre a vida e a repetição que encontramos no filme.

Virá aqui a propósito referir o conceito kierkegardiano da repetição e a teoria humeana da sucessão empírica e do estabelecimento da moral através do costume, já que o protagonista acaba por encontrar nas situações repetidas que vai vivendo uma habituação que o leva ao encontro da solução moralmente correcta como a mais funcional. Porém, o paralelo entre a repetição em Groundhog Day e em Kierkegaard pode ser imperfeito, já que neste último a repetição é involuntária. No filme, é Murray que irá procurá-la voluntariamente, depois de inicialmente a rejeitar. Se a repetição do quotidiano e a repetição do dispositivo fantástico do dia cíclico começam por provocar uma náusea no protagonista, a força do hábito irá empurrá-lo para a aceitação voluntária de ambas. Irá encontrar essa aceitação quando ainda se encontra dentro do ciclo e usa a repetição para atingir um melhoramento individual, transformando a repetição das situações que vive em unidades sempre novas e auto-suficientes, e também mais tarde quando consuma a repetição, emergindo do ciclo para a aparência de um dia novo. Assim, nesta leitura, aquele elemento efusivo e poderoso que constitui a chave do filme é identificado como uma alegoria da habituação à vida pelo costume e pela repetição, que não contradiz mas se sobrepõe às leituras de melhoramento moral. Estas são decorrentes de um processo natural de habituação e dissolução suficiente da individualidade do sujeito no mundo e na vida. Quando Murray emerge, emerge com um pouco menos de Murray e um pouco mais de mundo, desfocando assim a imagem anterior, em que o seu ego, reagindo à experiência da contrariedade, tornava essas reacções demasiadamente insufladas, sendo por isso visível a sua repetição. Ao acostumar-se e adequar as reacções para aceitar as experiências sem contradição violenta, dissolve-as e estas deixam de ter aquela individualidade repetida e irritante, tornando-se parte de um todo mais informe.

Deste modo, torna-se imediatamente compreensível a primeira coisa que o protagonista diz quando emerge do ciclo, sugerindo que fiquem a viver naquela pequena cidade, acrescentando por graça que talvez começassem apenas por alugar casa. O dia tem a aparência de um dia novo, mas a novidade não ultrapassa a repetição e a mesmidade intensificadas pela localização provinciana, e objectivamente as semelhanças ultrapassam as diferenças. Assim, é para o mesmo dia que Murray emerge, já acostumado à repetição, o mesmo dia com pequenas diferenças. Se o ciclo de repetições em que se encontrava fosse de facto um purgatório, ao ter escapado dele poderia dirigir-se ao mundo telúrico em plena capacidade. Mas, ao invés disso, manifesta vontade de prosseguir com a repetição por sua própria iniciativa. Murray emerge para um mundo em que aceitou a repetição, e é apenas para o espectador que o ciclo do tempo suspenso parece ter sido quebrado, surgindo como face visível desta alegoria a aparente quebra desse ciclo e a inauguração de um dia novo. Para Murray, a aceitação da repetição é anterior a esse momento, e existe pouca diferença material ou emocional que sinta quando emerge para essa aparência de um dia novo. Aquilo de que depende esse dia novo é precisamente a derrota de Murray, cujo ego insuflado colapsa na aceitação da repetição sem fim, mascarando essa aceitação com um bem-estar voluntário que transforma o ciclo da vida. Este ciclo, que para o seu ego insatisfeito era horroroso, é suficiente para satisfazer o pequeno homem moralmente purificado que emerge, completando-o como um prato de ovos e bacon completa o estômago de um hick no pequeno-almoço de província americana.

Groundhog Day é, assim, um filme que sobrepõe várias substâncias narrativas não numa dissolução uniforme mas numa hierarquia. É a força inclusiva da sua estrutura alegórica que permite que o filme acolha a comédia negra, em que se alicerça e de que nunca se afasta; a parábola moral de melhoramento individual, afastando a contrariedade inviável em que o ego de Murray se encontra; e a comédia romântica que ilustra a procura da disposição para o amor. Este cruzamento de géneros advém dos encontros estabelecidos no desenvolvimento do argumento e na produção do filme entre a sensibilidade cínica de Murray, o argumento místico-religioso de Rubin, que subtrai todas as referências históricas do filme, e a realização inteligente de Ramis, cujas escolhas de câmara nunca pretendem figurar directamente transcendências mas manter o filme no terreno da comédia de família, uma estrutura de base acessível a diferentes sensibilidades. É apenas a partir desse plano telúrico que é possível construir um produto como Groundhog Day, que beneficia do terreno estável do género em que se alicerça para construir uma dimensão alegórica cujas leituras esta recensão não esgota e cuja universalidade tem sido amplamente reconhecida desde a sua estreia há mais de vinte anos.

 

[1] Vd. Gilbey, Ryan, Groundhog Day, British Film Institute, 2004.

REFERÊNCIA:

 Ramis, Harold, director. Groundhog Day. Written by Harold Ramis and Danny Rubin. Columbia Pictures, 1993. 1 hr.,41 min.