Crítica: «O modelo de Pickman», O Gabinete das Curiosidades, Guillermo del Toro (2022)

Texto de Guilherme Berjano Valente. Revisão de Ricardo Fortunato. Imagens: fotogramas da obra.

É sabido que os monstros são ficção; que os nossos pesadelos se limitam à nossa imaginação; que o folclore-aterrorizante contém filosofias, exposições morais, mas não são reproduções da própria realidade. No entanto, como reagiríamos caso as gárgulas na catedral de Notre-Dame fossem retratos de algo que não vemos com frequência? E se as representações artísticas de onirismo-aterrorizante (pesadelos), na literatura, pintura, ou escultura, forem retratos e não obras cuja figuração provém da imaginação? Como é que podemos dizer aos que nos são próximos que os monstros existem?

O episódio «O modelo de Pickman», realizado por Keith Thomas, da série antológica O Gabinete das Curiosidades (2022), de Guillermo del Toro, tenta responder a estas perguntas. A adaptação de um conto de H. P. Lovecraft narra-nos a seguinte trama: dois jovens pintores (Richard Pickman e William) conhecem-se numa aula; William fica impressionado pelas figuras grotescas/mórbidas (e.g., corpos em decomposição, ghouls[1]) que Pickman pinta, considerando-os obras de elevada qualidade imaginativa; com o estreitar da sua relação, Richard apresenta a William uma pintura no qual uma familiar sua (de Pickaman) comanda um banquete satânico, em que o seu esposo é o prato principal, tendo sido sacrificado; a obra artística deturpa a visão de William, afetando-o de modo a que este visse/alucinasse coisas horrorosas e, supostamente, inumanas; William crê que a obra de Pickman possui a capacidade de deturpar a mente do indivíduo, cessando, assim, a relação entre as duas personagens; passam-se vários anos e William volta a observar os quadros de Pickman; depois de uma curta discussão entre os dois pintores, William aceita ver as suas pinturas mais recentes, desde que Richard aceitasse incinerá-las caso ele não as apreciasse; durante a visita ao ateliê de Pickman, este admite que nada do que pinta é imaginado, mas sim retratos; enquanto entram no ateliê de Richard, William mata-o, crendo que estaria a proteger o mundo das obras «maléficas» de Pickman – como se fosse uma espécie de censura pelo bem da humanidade –; quando Richard é morto aparece-nos a figura que dá o título da narrativa, isto é: o modelo de Pickman, um monstro que se assemelha a um ghoul, enorme, aparentando ser familiar de Dickie (Richard) Pickman, devido ao cuidado com que o monstro cuida do corpo morto. Assim se revela o verdadeiro pesadelo: William não tem alucinações, ou seja, a obra de Richard Pickman salientou verdades a que William não tinha acesso – o mundo das trevas. Tendo em conta a morte de Richard pelas mãos de William, podemos supor que o que se segue para terminar o episódio seja consequência do assassinato: quando William mata Richard, incinera as suas obras por completo; contudo, no dia seguinte, na sua galeria, as obras de Pickman estavam expostas, influenciando todos os que as observaram a replicar os acontecimentos pintados; sendo a sua esposa e o seu filho uma das pessoas expostas, esta acaba por replicar o banquete satânico produzido num dos quadros, servindo o seu filho como prato principal.

Esta curta narrativa vai ao encontro da teoria wildiana da arte. Em «The Decay of Lying»[2], Oscar Wilde defende que a arte precede a vida, i.e., a arte é o que permite que um observador ganhe novas perspetivas sobre a realidade, destacando-se coisas que até ao momento do registo artístico não tinham sido notadas:

For what is Nature? Nature is no great mother who has borne us. She is our creation. It is in our brain that she quickens to life. Things are because we see them, and what we see, and how we see it, depends on the Arts that have influenced us.[3]

Assim, tudo o que vemos no quotidiano depende da arte que apreciamos e observamos; esta questão é apresentada pelo episódio quando William começa a, supostamente, alucinar, depois de ser fecundado (impregnado pelas novas verdades destacadas pela obra) pelos quadros de Pickman. O que se nos apresenta como uma verdade lógica e intrínseca à história – o medo causado em William fá-lo alucinar – é desmentido no final do episódio, quando o ser representado por Pickman, nas suas pinturas, nos é apresentado como coisa material e real. William não tem alucinações, mas possui, sim, novos graus de perceção da realidade, devido à obra de Pickman: as obras do segundo permitem que o observador veja verdades que não sabia existirem.

O episódio introduz-nos a um sistema dualístico através das duas personagens: se William crê que a obra artística se faz através do sujeito, que é a imaginação deste que eleva um objeto artístico, Richard Pickman acredita que uma obra de arte se limita à representação de coisas que não são conhecidas por todos, introduzindo novos modos de visão ao observador. Reparemos como estas duas opiniões discutem os três níveis da linguagem apresentados por Northrop Frye, no capítulo «O motivo para a metáfora»[4] de O Elogio da Literatura: o primeiro grau tem um propósito identificativo, no qual o sujeito se separa do meio envolvente, denominando os objetos que o circundam, enquanto está num ato de contemplação; o segundo grau é uma linguagem prática, em que se atua para com o meio envolvente, descrevendo movimentos e ações; o terceiro nível é a junção dos dois primeiros graus, no qual o ser humano é capaz de contemplar o mundo e de o descrever não apenas de acordo com a realidade, mas de acordo com a sua vontade imaginativa, alterando a nossa descrição para que vá ao encontro da nossa imaginação. William falha ao compreender que as obras de Pickman não são trabalhos imaginativos – coisa que ele elogia e recomenda aos seus outros colegas –, mas sim retratos de algo com que Richard Pickman convive. Se William crê no terceiro grau da linguagem como o mais elevado, Pickman considera esse terceiro grau como uma perpetuação do primeiro e do segundo, sem que seja necessário alterar-se algo na realidade, ou seja, sem que a imaginação trabalhe como estamos habituados: a própria realidade possui em si mesma todos os mistérios que a imaginação pode produzir; logo, pintar a realidade é simplesmente destacar o ainda não imaginado.

Regressando às perguntas iniciais, compreendemos que o episódio argumenta a favor da ideia de que a arte precede a vida, fecundando os apreciadores com novas perspetivas e destacando objetos da realidade que passavam despercebidos; isto, por sua vez, não faz com que as gárgulas sejam reais, mas levanta a seguinte problemática: de que forma é que alguém que tenha recebido esta informação (que os monstros/trevas existem) pode comunicar tal coisa aos seus pares. Como vemos através do episódio, a família de William e aqueles que lhe são próximos são influenciados a um nível superior pelas obras de Pickman, não se limitando a ter novas perspetivas sobre a realidade, mas replicando o que é representado nas suas pinturas, e.g., a esposa de William, ao ver os quadros de Pickman, replica o banquete satânico, utilizando o filho, ao invés do marido, como prato principal. Isto só acontece porque William é incapaz de expressar os efeitos que as obras de Pickman têm; com isto, perguntamos de que forma é que falamos de arte. A resposta é concisa: da mesma forma que discutimos a realidade — várias são as vezes em que falamos dos sentimentos de personagens ficcionais, ou de que forma é que a morte de uma personagem nos afetou, ou como esperamos que a vida corra bem à personagem X, Y ou Z; não há um botão de «conversa sobre ficção», onde a nossa linguagem é especial e aquilo que dizemos é tomado como semiverdade; aquilo que discutimos, aquilo de que falamos não possui dois graus de linguagem – linguagem da ficção e linguagem da realidade –. Isto é o problema de William, condenando a sua família à replicação de um culto satânico: William apresenta-se reticente em falar com a esposa sobre os efeitos dos quadros como se fossem reais, pois fá-lo-iam destacar-se como uma «pessoa maluca» que «alucina» coisas; assim, esta incapacidade de utilizar a linguagem corrente para expressar os efeitos obscuros dos quadros de Pickman leva à morte do seu filho, e à transformação da sua esposa numa espécie de bruxa.

A questão central do episódio deixa de ser a capacidade que a arte tem de preceder a vida, mas a incapacidade que certos artistas e críticos têm em aceitar que as suas produções ou opiniões afetam emocionalmente o observador/leitor. A arte é-nos perfeitamente inútil, pois não altera nada material; por outro lado, a arte é perfeitamente útil para aquele que a aprecia, não por motivos morais, mas por servir, por vezes, de catalisadora a novos modos de ver, destacando coisas que passavam despercebidas, e provocando emoções que não são falsas; a sua utilidade prende-se ao indivíduo e não ao grupo. Podemos ler em grupo, mas a reflexão é um ato de solipsismo. Só quando organizamos as nossas ideias e as expomos aos que nos rodeiam é que a reflexão deixa de ser solitária, para se formular numa discussão; aquilo que é requerido é que as pessoas que discutem aceitem, tacitamente, a arte e a literatura como algo com efeitos; é esta proposição última que falta a William, condenando a sua família.

Desta forma, o episódio discute uma questão de descrição artística, e uma opinião sobre a produção artística: os argumentos do lado de William serão a produção imaginativa que supera a realidade e a discussão sobre a arte como algo sem efeito; no caso de Pickman a produção artística é representativa da realidade e a discussão sobre a arte faz-se com conceitos «quotidianos», sem que se tente distinguir entre arte e vida de forma que uma seja real e a outra «a brincar», respetivamente. Parece-nos, então, que a condenação de William transmite uma perspetiva em relação a esta discussão, quase que nos avisando: discutir arte deve ser feito sem amarras, respeitando o objeto artístico, e destacando o que está por «descobrir» na realidade.

Biblio-filmo-grafia:

Frye, Northrop. O Elogio da Literatura. Trad. Jorge Melícias. Coimbra: Almedina, 2022.

Thomas, Keith, director. «O modelo de Pickman». In O Gabinete das Curiosidades. Produced by Guillermo del Toro. Netflix, 2022. 62 min. https://www.netflix.com/browse?jbv=80209229

Wilde, Oscar. «The Decay of Lying». In Intentions. Project Gutenberg, Apr 1, 1997. https://www.gutenberg.org/ebooks/887

  1. Ser necrófago que se alimenta de carne humana.

  2. Oscar Wilde, «The Decay of Lying», in Intentions (Project Gutenberg, Apr 1, 1998), 1-57, https://www.gutenberg.org/cache/epub/887/pg887-images.html#page1

  3. Trad nossa.: «O que é a natureza? A natureza não é uma grande mãe que nos pariu. Ela é a nossa criação. É no nosso cérebro que ela ganha vida. As coisas são/existem porque nós as vemos, e aquilo que vemos e como vemos depende das Artes que nos influenciaram.» In Ibidem.

  4. Northrop Frye, O Elogia da Literatura, trad. Jorge Melícias, (Coimbra: Almedina, 2022).