Por esta altura já todos conhecemos os «tiques» de Quentin Tarantino e, de modo mais ou menos condescendente, aceitamo-los sem fazer grande caso. Sabemos do seu gosto auto-indulgente pelas referências e pelo pastiche (que por vezes chega ao ponto de nos dar a sensação de que ele está a fazer o equivalente a mostrar-nos a sua página do Mubi), e sabemos da imaturidade do seu sentido de humor (nem The Hateful Eight (2015), um dos filmes mais maduros do seu repertório, escapou a momentos juvenis como o do infame «warm black dingus»); mas também sabemos da qualidade inquestionável de um realizador que produz clássicos com regularidade e que a influência desses vícios particulares na sua arte nunca é problemática ao ponto de prejudicar o produto final (poder-se-ia mesmo dizer que, pelo contrário, é um dos ingredientes do seu estilo tão característico, precisamente o que estimamos nele). Porém, talvez tenhamos de repensar as nossas suposições após vermos Once Upon a Time in Hollywood, um filme onde as pulsões auto-gratificantes de Tarantino se manifestam de forma tão intrusiva que quase levam à ruína um dos projetos mais ambiciosos da sua carreira.
Com este filme, a obsessão do realizador pela referência gratuita atinge patamares inéditos. Once Upon a Time in Hollywood perde-se na preocupação de fazer alusões à cultura da Hollywood do final dos anos 60, a ponto de a maior parte do filme (que tem quase três horas de duração) consistir numa sucessão de segmentos de pastiche colados sem critério aparente. As personagens deambulam por estúdios, participam em filmagens de séries verídicas, dão entrevistas, interagem com hippies e com celebridades da época… mas raramente se tem a sensação de que tudo isso serve algum propósito narrativo, e de que não é incluído por mero capricho. Em certos momentos, apetece questionar se a ideia de basear a história no seio da indústria de Hollywood e ter um ator como protagonista não é apenas um pretexto para utilizar à vontade essas colagens.
No entanto, para lá da massa supérflua é possível encontrar um enredo sólido e original, que, num filme mais coeso e bem-focado, seria sem dúvida uma das melhores histórias de Tarantino. Once Upon a Time in Hollywood segue as façanhas de Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), um ator alcoólico com a carreira em declínio, e de Cliff Booth (Brad Pitt), oficialmente o duplo de Rick, mas que também desempenha as funções de assistente e motorista (Rick perdeu a carta, conta-nos Cliff, após ter tido um acidente enquanto conduzia embriagado). Ambas as personagens estão num momento delicado das suas vidas, confrontadas com a realidade cruel de que os anos dourados já ficaram para trás: Dalton, ainda pleno de orgulho e ambição, tem de lidar com o desespero resultante de já ter perdido o estatuto de cabeça de cartaz nas grandes produções, esforçando-se por manter a aparência de estrela enquanto procura formas de poder relançar a carreira; Booth, por seu lado, é o simples e pragmático do par, levando uma vida plácida numa roulotte na companhia de Brandy, a sua cadela, e aparentemente afeito ao papel de sombra de Dalton — mas essa tranquilidade não é desprovida de uma certa melancolia, derivada de nunca ter vingado no mundo do cinema. Os momentos centrados na relação entre os dois protagonistas são os melhores do filme: Dalton e Booth são ambos personagens complexas e carismáticas (manifestando aquela harmonia de uma superfície excêntrica e cartoonesca com um lado quotidiano humilde e empático, que só Tarantino sabe criar) e DiCaprio e Pitt brilham nos respetivos papéis.
Quando Dalton descobre que Roman Polanski (à altura um dos realizadores mais cotados no mundo) se mudou com a família para a casa do lado, vê aí uma oportunidade para dar a volta à sua situação. É assim que a narrativa de Dalton e Booth acaba por se cruzar com o caso dos Tate Murders, numa versão alternativa da história — recurso que Tarantino já havia experimentado em Inglorious Basterds (2009) — na qual os membros da família Manson, na noite do célebre crime, batem à porta errada. Em teoria, a ideia teria tudo para resultar num clássico. Porém, o filme nunca se concentra no desenvolvimento desta história, estando o realizador mais preocupado com a inserção de tantas referências, tantas sequências pastiche e tantos cameos quantos sejam necessários à satisfação do seu apetite. Como resultado, as cenas supérfluas retiram ritmo ao filme, e vários dos intervenientes mais importantes acabam por receber tanta atenção como qualquer personagem secundária. Um exemplo claro é a família Manson. Não há dúvidas de que Tarantino sabe criar um vilão memorável (basta pensarmos em Hans Landa ou Calvin Candie); contudo, não há nos Manson nenhuma personagem que se destaque, e nenhuma das cenas com a família é bem-sucedida na tentativa de criar a tensão necessária ao estabelecimento de um vilão forte. O próprio Charles Manson (Damon Herriman) é particularmente desapontante, aparecendo no filme apenas um par de vezes e sem qualquer momento digno de nota. Se não conhecêssemos a história real, não teríamos qualquer razão para lhe dar importância. E este é o outro problema de Once Upon a Time in Hollywood: o filme parte do princípio que já estamos familiarizados com a história e com os intervenientes, e portanto não se preocupa em dar a cada personagem uma introdução ponderada que a distinga enquanto elemento na narrativa que o filme está a tentar construir. Manson, Sharon Tate e Polanski, para referir apenas algumas, sofrem com esta decisão, reduzidos a aparições esporádicas e discretas.
Ainda neste ponto, não deixa de ser sintomático que a participação de vários dos nomes mais sonantes do elenco se resuma a papéis marginais. Um dos aspetos centrais na campanha de marketing do filme foi o elenco recheado de estrelas, com Margot Robbie no papel de Sharon Tate a constituir, depois de DiCaprio e Pitt, a atração maior. No entanto, a Sharon Tate de Once Upon a Time in Hollywood é uma personagem secundária, sem falas importantes, e as suas cenas, a maioria mostrando a jovem atriz a ir ao cinema ver os seus próprios filmes, não têm qualquer relevo (tirando, é claro, a referência gratuita aos filmes em exibição). De modo semelhante, Al Pacino, no papel do produtor Marvin Schwarz, tem uma cena inicial que é negligenciável, e Kurt Russell aparece uma única vez, enquanto coordenador de stunts num filme em que Cliff Booth pretende trabalhar. Perante isto, há que perguntar para que serviu o aparato em torno de todos esses grandes nomes, se não para inflacionar artificialmente a expectativa em torno do filme. Para mais, o episódio com Kurt Russell serve apenas para proporcionar ocasião para introduzir Bruce Lee no filme, numa tentativa de paródia do falecido artista marcial completamente despropositada e infantil.
Tudo isto faz com que o filme não transmita ao espectador um sentido de direção — alterna entre Dalton, Booth, a família Tate e a família Manson sem uma linha condutora bem definida, introduzindo personagens que desaparecem de modo tão rápido e discreto como aparecem, e criando ramos secundários no enredo para depois os deixar suspensos. Mesmo quando vários dos principais intervenientes se cruzam, o evento parece circunstancial — não há uma ideia de força maior a ligar estas personagens distintas e a puxá-las para o mesmo desfecho climático. Isto afeta sobretudo o confronto final, concebido nos mesmos moldes dos showdowns de Reservoir Dogs (1992) e Inglorious Basterds (2009), mas muito menos memorável devido à falta de tensão acumulada na antecipação da cena.
Percebe-se o efeito pretendido: na véspera de seguirem caminhos separados, em função de Dalton ter de despedir Booth por razões económicas, a invasão dos lacaios de Manson serve de pretexto a uma descarga catártica, onde a violência desmesurada funciona como um grito de afirmação pessoal e uma transcendência momentânea da crise em que os dois protagonistas se encontram. Ao combaterem os invasores, Dalton e Booth recuperam a sensação de estar em controlo das suas vidas (e nada simboliza isso melhor do que o momento em que Dalton utiliza o lança-chamas de um dos seus filmes antigos para incinerar um dos invasores, numa das cenas em que a atenção ao detalhe de Tarantino brilha). Contudo, a cena chega tarde de mais. Por essa altura o filme já se encontra estagnado, com o episódio precedente — a ida de Rick e Cliff para Itália para filmar um spaghetti western — a dissipar qualquer ímpeto que pudesse estar a ser acumulado na preparação de um clímax. Assim, a violência extrema e estilizada da cena final, pelo caráter tardio e abrupto, bem como pelo contraste vincado que estabelece com o que até então se tinha passado, parece fora de sítio e gratuita, e a sensação que provoca é menos de entusiasmo e mais de desconcerto. O cinema de Tarantino foi sempre alvo de críticas por alegadamente promover uma forma obscena de gratificação através de cenas de violência grotesca e gratuita; contudo, não obstante o caráter por vezes hiperbólico dessas cenas, a violência encontra-se sempre em harmonia com a tonalidade do filme e serve frequentemente um propósito narrativo bem vincado, seja o culminar de um arco narrativo ou a caraterização de uma dada personagem. Em contraste, Once Upon a Time in Hollywood é o primeiro filme do realizador em que essas críticas parecem realmente justificadas.
Apesar de todas as suas falhas, Once Upon a Time in Hollywood não deixa de ter algumas qualidades redentoras: as prestações de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt são excelentes, e há traços do génio de Tarantino em quantidade suficiente para o tornar numa experiência cinematográfica interessante. Mas é impossível não sair do cinema com um sabor amargo na boca, derivado não só da constatação daquilo que o filme poderia ter sido, se realizado com um pouco mais de disciplina, mas também do facto de nos fazer aperceber que, de certa forma, já esperávamos algo de semelhante. Talvez a principal razão do vazio com que ficamos após ver Once Upon a Time in Hollywood seja a ideia de que, de agora em diante, já não poderemos continuar a consumir o cinema de Tarantino e ignorar o elefante do narcisismo adolescente sentado à nossa frente.