I am the Third Revelation!
Daniel Plainview, interpretado por Daniel Day-Lewis, em There Will Be Blood
Christopher Nolan ficou conhecido pelos seus filmes longos, extremamente informativos, e com um desenvolvimento temporal da narrativa difícil de se compreender (tendo isto sido levado às últimas consequências em Tenet [2020]).
Oppenheimer (2023) escapa a esta gaiola. Claro que há imensa informação e um sistema temporal que divide o filme em duas perspetivas (não sendo uma narrativa linear) – as cenas a cores são a perspetiva de J. Robert Oppenheimer (maravilhosamente interpretado por Cillian Murphy), tituladas de narrativa de Fissura (referente aos apoiantes de uma bomba de fissura), e as cenas a preto e branco referem-se à perspetiva do Almirante Lewis Strauss (também magnificamente interpretado por Robert Downey Jr.), denominadas de narrativa de Fusão (referente aos apoiantes da bomba de fusão). Contudo, a narrativa pouco linear nunca é difícil de ser seguida. Para além disto, dizer que este filme é a história do «Pai da Bomba Atómica» é resumi-lo de forma ingrata.
Oppenheimer pode ser visto como a história de um culto de cientistas, situado em Los Alamos, onde Oppenheimer é visto como um profeta, ou seja, como alguém que trará uma boa nova. Esta boa nova é a arma que terminará com todas as guerras: parafraseando a personagem principal, a bomba atómica será o princípio das Nações Unidas, como previstas pelo Presidente Roosevelt, sendo ela uma arma suficientemente assustadora para que todos temam utilizá-la ou sofrer pela mesma. A epígrafe do filme torna Oppenheimer num Prometeus Moderno (indo ao encontro do título do livro de onde nasce esta adaptação: American Prometheus, 2006), sendo ele aquele que traz o fogo aos humanos, que lhes ilumina a noite e que, inversamente, lhes dá a arma para se matarem uns aos outros. Este paradoxo moral é central na narrativa do filme: por um lado, Oppenheimer é um cientista que produz algo, sendo apenas o criador e, por outro, a sua criação tem consequências mortais. Assim, a pergunta moral que nasce do filme é tão simples quanto: podemos acusar Prometeus de nos ter dado o fogo. Se sim, então, assim como Prometeus é culpado, também Oppenheimer o é. Se não, se o vemos como um herói injustamente castigado, também Oppenheimer é um cientista que é injustamente julgado.
O motivo pelo qual afirmo que este é um filme sobre um culto (mas não só) deve-se, primeiro, às denominações que outras personagens fazem de Oppenheimer, havendo uma idolatria para com o físico. No princípio do filme, Oppenheimer é denominado como um profeta, devido às ideias por ele apresentadas e devido à boa nova que traria: a bomba atómica. No final do filme, depois de um julgamento onde se questiona a sua possível afinidade com o Partido Comunista e com a U.R.S.S., a sua esposa pergunta-lhe se ele considera que por ser ofendido e vistoriado publicamente as pessoas o perdoarão pelas duas bombas lançadas no Japão. O perdão nasceria, assim sendo, da sua martirização: um cientista injustamente julgado, acusado de fornecer informações ao inimigo. Aqui, reformula-se a narrativa do pai da bomba atómica, surgida depois dos lançamentos sobre Hiroshima e Nagasaki: Oppenheimer não é já a morte, destruidora de mundos, mas o bezerro inocente que ambicionava uma paz eterna. Percebemos que o plano de martirização sucede quando, no final do filme, a acusação contra Oppenheimer é defendida publicamente como injusta e de má fé aos olhos de vários cientistas. Em segundo lugar, creio que os Los Alamos reafirmam a ideia de culto: esta pequena vila localiza-se num espaço desértico e fechado do mundo exterior, onde nada do que fosse de fora entrava e nada do que fosse de dentro saía. Assim, com um espaço circunscrito e uma idolatria para com uma figura que vai de profeta a mártir, pode-se começar a compreender esta história em comparação com outras histórias sobre cultos, que possuem um líder carismático. Esta posição acaba por corroborar, em parte, uma das ideias do Almirante Strauss, em relação ao Projeto Manhattan, parafraseando-o: «Em Los Alamos havia o culto do Oppenheimer. Tudo o que ele dissesse era lei. Foi líder, xerife (…)!»
A narrativa de profeta a mártir não pode ser, no entanto, simplificada na fórmula anterior: um profeta que se tornou num mártir. Ela tem de ser entendida através de um dos mecanismos principais do filme, i.e., os grandes planos das faces dos atores que atuam a dupla principal (Cillian Murphy e Robert Downey Jr.). Isto começa por indicar que eles são figuras antagónicas. De um lado, há o profeta, do outro, há o filisteu. O debate central entre os dois está na continuação do desenvolvimento de bombas nucleares. Nolan parece defender que Oppenheimer tenta terminar com a investigação de uma bomba de fusão, mais mortífera do que a de fissura, devido aos problemas morais que sente para com a sua criação. Assim, ao impossibilitar um desenvolvimento imoral do culto/projeto por ele primeiramente fundado, ele escaparia ao que um dos seus amigos próximos lhe disse: parafraseando-o, «Eu não desejo que trezentos anos de física se materializem numa arma de destruição em massa», ou seja, escaparia à materialização da física teórica numa arma. Por outro lado, o Almirante Strauss crê que o desenvolvimento da bomba de fusão é o caminho correto, podendo manter a segurança do país através da ameaça que a bomba seria para todos os outros.
A diferença entre Prometeus e Oppenheimer é que o primeiro foi castigado, enquanto o segundo não o foi. O segundo foi aplaudido, visto como um herói americano. Oppenheimer tentou justificar-se, moralmente, através de um argumento objetivo: o criador não é aquele que pratica o ato, logo, ao não ter morto ninguém, não pode ser imputado como ator no lançamento das bombas. Assim, Oppenheimer põe-se, por alguns momentos, nos sapatos de um ser criador: a pergunta que ocorre é se Deus, ou qualquer figura criadora, tem culpa do mal no mundo? Acontece que a nível humano, através da representação de Oppenheimer, a resposta terá de ser positiva, sendo que isto não se deve a que os outros o culpabilizem; deve-se, sim, ao facto de ele mesmo não conseguir suportar a sua culpa. Num movimento vertical, se o humano é uma réplica de Deus e se Oppenheimer vê na sua criação um mal por ele causado, também Deus sentirá culpa para com a sua criação defeituosa. No entanto, isto é apenas especulação. O que acontece no filme para expiar esta sua culpa é o processo de martirização, já referido. Este processo torna-o numa figura frágil, que justifica os seus atos através da narrativa da sua vida, tornando-o tanto num cientista curioso que deseja ver a materialização de uma investigação, como num ser que ambicionava uma paz eterna. A sua morte figurada, quando é julgado, expia parte da sua dor, nunca sendo totalmente ultrapassada e fornece mais peças para que esta narrativa de mártir seja assim compreendida.
Oppenheimer recupera algumas das questões que foram apresentadas em outros filmes de Nolan. A sua trilogia de Batman (The Dark Knight Trilogy) parece ter uma questão moral parecida com a de Oppenheimer: não é ele que, devido à sua existência, cria os vilões que atormentam Gotham; não é pela bomba existir que ela foi usada. Se pensarmos em Memento (2000), a personagem principal crê que tem um método objetivo de investigação, que se mostra defeituoso no fim, tal como o argumento objetivo de Oppenheimer se mostrou defeituoso para consigo mesmo. Por outro lado, em The Prestige (2006), a relação entre as duas personagens principais, em que uma tenta superar a outra, havendo uma fixação constante no outro por parte de cada um deles, é facilmente comparável à relação entre Strauss e Oppenheimer.
O facto de o filme ter três horas faz com que se tenha um sentimento agonizante para com a personagem principal: conhecemo-la e sentimos empatia para com ela, mas nunca nos é possível ignorar que foi ele quem criou um fogo que nunca mais será apagado. Oppenheimer é um excelente relato da primeira vez que se acende a tocha nesse fogo e, o visualizador, sentado no cinema, sem qualquer tipo de poder sobre aquilo que vê, reflete materialmente a impotência para com o fogo. O espetador mantém-se como mero espetador.