Crítica: Os Últimos Escritos (trad. António Pescada), Lev Tolstoi, 2018

Passa nestes dias o segundo Outono desde que foi dado a conhecer este volume português de prosas dispersas de Tolstoi, traduzidas do russo pelo reconhecido António Pescada. O título parece algo equívoco, visto que a selecção editada abrange um período de praticamente três dezenas de anos, dos 50 anos de vida do autor em diante até à data da sua morte (1882-1910).

O que pode então dar um tema a este volume de três centenas de páginas? Esta compilação de textos curtos pode justificar-se por serem vestígios da segunda vida de Tolstoi: são, de um ponto de vista unívoco, textos de renúncia. Isto acresce ao facto de se tratar da primeira tradução portuguesa dos mesmos, para que assim se considere espantosamente justificada esta edição, em particular atendendo à poética libertária, de resistência activa, muito significativa para aquela reclusão, e luminosa para este confinamento dos dias de hoje. De forma semelhante, os limites à liberdade são provocados por lutas sociais, e, por todas, a própria sobrevivência.

Estes textos políticos e religiosos, também textos de denúncia, servem a nova dimensão profética do exímio prosador: é possível que Tolstoi escreva agora para apaziguar a própria consciência. O abandono da arte em prol da emergência de um sujeito ético conhece ali a sua expressão acabada. Ilustra-o naturalmente que o livro comece com o registo confessional – a tremenda Confissão – e termine com um diário, que creio sem muito interesse. Ali se recolhe um exemplo daquela ideia geral, segundo a qual os textos finais de um escritor serão uma brecha, eivados de trivialidades por onde o leitor espiolhará o rosto demasiado humano de um mero defunto, mortal como os demais. 

Fica a nu o abandono da riqueza moral e textual: a complexidade dos retratos deu lugar a um quase abandono da forma; a auto-crítica de Tolstoi submeteu a obra a si própria, e formalizou o corte com as suas exposições demoradas e subliminares da sociedade. De forma impressiva, a noção abrangente de história subjectivou-se, e o russo, feito sujeito histórico, representa-se a si-mesmo como a Verdade

O que aqui se vai lavrando serve também para que possa sugerir que a edição mereceria talvez ser completada com um texto introdutório e uma outra maneira de arrumação dos excertos, dada a variedade de géneros que ali se encontram, entre três contos morais e uma fábula. Aliás, se é um facto que, à parte destes, se tratam de textos de não-ficção, talvez não se possa afirmar que existem ali frutos de excelência, como os houvera na primeira existência do russo. Isto ressalta evidentemente do caracter polémico e situado destes trechos. 

Deste ponto de vista, a retoma do fio biográfico-documental no último século, desde logo por alguns realistas norte-americanos, parece ser mais um prolongamento das primeiras guerras do que destas segundas batalhas. Se parece, lidos os estados de alma, que a juventude lhe tardou, a inspecção dos seus trabalhos não o revela: na primeira parte da vida, inovou; na segunda parte, conservou. Isto talvez se verifique, de resto, ao nível das influências; mas já não nas afluências. Seja como for, e sem embargo de outras apreciações, o testemunho (e o que há de poético nele) valerá seguramente a releitura!