Crítica: When Harry Met Sally (Rob Reiner, 1989) e as Dinâmicas do Masculino/Feminino

A película de comédia romântica, realizada em 1989 pelo bonacheirão e lendário actor de comédia Rob Reiner, When Harry Met Sally (que poderia ser estupidamente traduzido para português por Quando o Harry Mete na Sally, que foi precisamente o problema que deu origem ao pathos final do filme), parece, à primeira vista, mais um de muitos filmes menores, de encher salas, sem apreço da crítica inteligente, e até referido, muitas vezes, nas universidades — e não tanto pela crítica — com leviandade. Parece um pouco cópia do registo mais comum do cineasta Woody Allen, mas com um nível de neurose mais reduzido e mais tendente ao lirismo do que ao cinismo incorrigível desse realizador. O trabalho de Reiner, neste filme, assim como a montagem, são apenas ligeiramente interessantes, mas a grande força da película vem de apresentar uma história de amor primariamente como um processo adversarial, construído com base em conflitos insanáveis e não, como é mais comum na narrativa pós-romântica e contemporânea, em descrições de encontros e compatibilidades. É a história de dois amigos, um homem e uma mulher, que não conseguem ultrapassar o antagonismo fundamental das dinâmicas entre sexos opostos, dinâmicas essas que levam incontornável e necessariamente à união romântica.

Este tema está disfarçado de forma um pouco prosaica na grande questão do filme, enunciada como se fosse um brinquedo de mantra com que a narrativa de comédia se entretém: “será que o homem e a mulher conseguem ser apenas amigos”. Mas a ideia, na verdade, pressupõe um antagonismo a priori, em que um tratado de paz é celebrado apenas quando essa questão está resolvida, e a questão só consegue ser resolvida com o consumar de uma relação de amor ou com o apagamento da relação de amizade: não existe, ao que parece, meio-termo.

Para além disso, o filme inaugurou, em 1989, a era actual das comédias românticas, que dura até hoje, e que se sucede à anterior vaga dos anos trinta a cinquenta, na narrativa da grande indústria de Hollywood. O antagonismo entre homem e mulher sempre esteve presente no género, misturado muitas vezes com humor para diluir o mal-estar associado a essa enorme tensão — que pode levar até ao desastre —. Encontramos alguns exemplos dessas iterações da comédia romântica adversarial em Bringing Up Baby (1938), nalgumas comédias de Doris Day e Rock Hudson, e, mais tarde, em Annie Hall (1977), de Allen. When Harry Met Sally parece um pouco diferente dessas versões do antagonismo, por retratar este de forma mais crua, já que no aproximar de amizade dos protagonistas não existe necessidade da diluição com humor, o que traz à vista o problema de outra maneira. Retrata-o também de modo mais assumido, como se percebe na série de conversas abertamente filosóficas que os protagonistas têm sobre o tema. E, ainda, a abordagem chega até a ser um pouco meta-narrativa, como se entrevê nos segmentos mais abaixo descritos.

O humor existe, em termos de comédia dura, punchlines, situações, peripécias físicas, etc., mas não é servido em grandes quantidades: o antagonismo não é apresentado diluído numa massa de comédia coesa como acontece, por exemplo, em It Happened One Night. E, em certa medida, é também igualmente uma película que se insere na tradição de filmes sobre Nova Iorque — a que aliás o foco em relações humanas com exigências apressadas e neuróticas pertence inteiramente. Também inclui esta tradição uma série de entradas com a justaposição da cidade e do romance, como em Woody Allen e alguns filmes com Frank Sinatra, Marylin Monroe, e Audrey Hepburn. Existe também uma série de filmes contemporâneos com os quais talvez relações de proximidade possam ser estabelecidas: trata-se da série Before Sunrise, constituídos por enredos com diálogos muito prolongado entre um homem e uma mulher sobre precisamente os mesmos tópicos: o amor, as relações entre sexos, a vida.

Os nomes dos progagonistas, interpretados por Billy Crystal e Meg Ryan, são quase correspondências perfeitas. A criação da dualidade de Harry e Sally começa, ou passa um início muito marcado por um duplo encontro, um quarteto cuja disposição inicial acaba por se modificar, acabando por formar uma figura cruzada. O tema dos encontros e das conversas de Harry e Sally é o próprio amor, o que difere de uma associação por interesses exteriores comum, constituindo uma meta-associação. Quanto à técnica cinematográfica, pouco há a dizer, nada de muito mal e alguma coisa de bem. Alguns detalhes do trabalho: o plano da conversa do telefone, como um casal na cama, dois lados, mas dois espaços; os planos do outono nos jardins, de fotografia estrondosa, muito na tradição parcialmente lírica de Woody Allen e de outras películas de amor a Nova Iorque. Todo o ritmo do filme é lento, a montagem não se apressa, e há muita incidência do renascimento da comédia romântica, assim como algum experimentalismo.

Como tem sido correctamente apontado pela crítica, e como também os autores têm seguramente consciência, existe uma adequação total ao formato e à proposta do filme dos segmentos em que surgem casais mais velhos, em formato documental, intercalando a história de Harry e Sally, e descrevendo como se conheceram, tomando a função muito evidente de coro grego. Nota-se em particular, nessas sementes, como o evento particular da vida de cada um deles, o encontro da pessoa que permanece até à velhice, é como descrever um evento de uma guerra, de um nascimento, de uma crise, de um desordenamento imanente que através do tempo se vindica. Não é propriamente como descrever uma escolha, mas mais como descrever um acontecimento, uma efeméride de alguma espécie — e representa uma visão madura da ligação romântica, muito mais distante do individualismo heróico e muito mais próxima da tragédia e do pathos — porém em versão de amor fati. Aliás, toda a tipologia apresentada por essas histórias está muito mais próxima também da negociação, do mútuo acordo, e da antiga tradição do casamento combinado — seja pela família ou pelo acaso — do que propriamente pela agência prolongada e meditada do sujeito. Por exemplo, apesar de um dos casais que recorda o primeiro encontro relatar como o homem entrou no café, viu uma rapariga e disse vou casar com aquela rapariga, isto mais se assemelha a uma espécie de casamento combinado em que os negociantes são as próprias primeiras impressões e a determinação vinculativa a partir dessas, e não tanto um primado da emoção que, aliás, poderia perfeitamente tornar-se mais tarde volátil. Em resumo, o conflito, o antagonismo e a desordem estão evidentes tanto nos segmentos dos casais, que são súmulas de vidas em matrimónio, como na narrativa das personagens, e existe uma correspondência perfeita entre a narrativa e a meta-narrativa.

Famosamente o filme é muito bem conhecido por um excelente momento de humor, de algum vaudeville e desbraguez, em que Ryan, a protagonista, executa a simulação de um orgasmo feminino em pleno café, publicamente, para espanto de Crystal, e para provar-lhe que uma mulher consegue perfeitamente fingir tal expressão e enganar o homem. Mas a apresentação dessa tese, no corpus aqui presente e na ética de negociação enunciada ao longo do filme, é a de apresentar o orgasmo fingido como uma espécie de cumprimento ao anfitrião por ter sido bem servido, o que leva colocar a questão do que é fingimento. Expressar prazer sem que isso signifique uma reificação do clímax pode não ser necessariamente um fingimento e enquadra-se, mais uma vez, na disposição das relações amorosas como tendencialmente mais contratuais e menos espontaneamente agenciais.

Importa levantar aqui também, de modo mais claro, as diferenças entre o amor e a amizade que a mundivisão do filme propõe. A teoria, como já afirmámos, sustenta-se na ideia de que o amor é conflito, agonia, obstáculo, e a amizade acompanhamento, sociedade, parelha de mútuo interesse individual. Se, na amizade, uma parelha segue em sentidos semelhantes, na união erótica, o dualismo desaparece e dá lugar a uma outra coisa ainda não presente. Perante isso, o incómodo é severo, e entre homem e mulher constata-se uma distância insuperável. Pessoas juntam-se, psíquica e fisicamente, mas uma desejada união nunca acontece. O que acontece, um epifenómeno, é o filho. Mas o filho, mesmo assim, é apenas uma metáfora dessa união. Toda a problemática entre os dois protagonistas trabalha uma forma embrionária desses problemas, que se manifestam na união consumada. Efectivamente Ryan e Crystal passam todo o filme tentando manejar essa forma embrionária, chegando, finalmente, ao ponto de crise em que o ágon se resolve e se torna manifestação erótica efectiva.

É a esse ponto fulcral do enredo a que chegamos, quando o par de protagonistas, amigos e confidentes, acaba por sucumbir ao dualismo primário das dinâmicas homem/mulher e têm um envolvimento sexual. Após esse encontro decisivo, o homem e a mulher ali representados encontram-se na posição descrita por alguns autores dedicados à sexualidade: juntos na cama, abraçados, o primeiro quer fugir, com o medo freudiano de ser devorado; a segunda quer guardá-lo (devorá-lo?). O primeiro tem o olhar perturbado, a segunda o olhar pleno. Parte das reflexões do filme, consumadas neste momento torcionario, levam-nos também ao mote frequentemente citado entre conhecedores do tema da sexualidade: there is no guilt free sex. Esse enunciado curioso pode levantar a hipótese de os casais se juntarem em arranjos amorosos prolongados e comprometidos única e exclusivamente de forma derivada da culpa. E, de resto, a conclusão da película acabar por constituir um arranjo amoroso a longo prazo, em que ambos declaram, depois do pathos momentâneo, que não conseguem viver um sem o outro, e em comparação com um final alternativo em que se verificasse a admissão da impossibilidade do encontro nesses termos, constitui uma diferença irrelevante: se o final feliz que acabou por ser filmado foi forçado por exigências face ao público após primeiras exibições de películas de teste, juízo popular esse que não deve ser evitado, um alternativo final de características mais trágicas e meditativas, em que se encarasse a impossibilidade do amor nos termos da amizade, serviria o mesmo propósito. Não há aqui nenhum final feliz ou infeliz necessário, nem correspondência de um ou outro à substância da narrativa do filme, fundamentada na oposição entre masculino e feminino.

Por fim, observamos também, a partir das questões filosóficas levantadas pelo filme, a possibilidade de duas teorias conflituosas sobre interacção humana. Uma delas postularia a pessoa, no conceito humanista ou puramente anímico, como não tendo género de forma substancial: é-se primeiramente uma alma, uma personalidade, um ser. No campo oposto, temos uma teoria do género de tudo, em que todas as entidades conceptuais têm, de algum modo, género: a razão masculina, a emoção feminina, a lucidez masculina, o delírio feminino, o apolíneo e o dionisíaco, etc. Na tese dualista de alguns autores, como Nietzsche ou Camille Paglia, as coisas passam-se quase assim, na versão desta última teoria. Nesse caso, o princípio dominante que constitui a matéria ontologicamentr primária desta descrição do mundo, não é a coisa em si, a sua individuação, mas sim o dualismo. O princípio dominante é haver dois, que depois dá origem à materialização de um. A partir daí percebemos parte das tensões fundamentais do filme: quando o homem e a mulher se encontram — e nesta dualidade encontramos o pré-empírico, o pré-ser — a agonia é imanente, inevitável, reflexo desse binómio primário e, na manifestação dos seus fenómenos, a sua concretização em tensão resolvida ou irresolúvel na interação humana básica entre sexos, com união erótica ou não.