Saiu sem levantar ondas, e é provável que continue sem o fazer, mas a curta-metragem de duração generosa – quase 30 minutos – “A Febre de Maria João” (2023; produção da responsabilidade de Maria & Mayer, Lda.) aponta um caminho curioso para o cinema português: simultaneamente estranho e conhecido, desconfortável e cómodo. Revelador de uma ambição invulgar no panorama artístico nacional, suscita mais questões que respostas, e nesse jogo, tantas vezes perigoso ou, pelo menos, arriscado, encontra um medium para se fazer ver – tarefa central de qualquer peça fílmica, mas sistematicamente em falha nos produtos das últimas décadas.
“A Febre de Maria João” tem uma narrativa e, como tal, tem uma sinopse. Não a exporei aqui, por crer que o melhor é ver a curta desintoxicado de expectativas ou previsões – o primeiro passo para a desilusão, de resto, é esperar algo de um objecto que não está disposto a oferecê-lo.
(Diga-se, de passagem, que essa característica é transversal às grandes obras, sendo uma espécie de formulação que encontraram para resistir à usura do tempo)
Ora, mais interessante do que discutir o que o filme oferece, é pensar naquilo que ele NÃO oferece. Do mesmo modo que a personagem principal – Maria João – vai ansiando por que o seu pai conte a história que ela há muito quer ouvir, sendo obrigada a aguardar pelo momento que mais convier ao velho, também o espectador é feito esperar por uma revelação que talvez apareça… ou talvez não; essa definição depende da forma como “A Febre” for vista: se a expectativa pretender uma resolução definitiva, linear, então irá necessariamente desapontar. Isto porque a revelação, existindo, exige esforço ao espectador: ela é desenhada frame a frame, diálogo a diálogo, latir a latir; é um processo que se arrasta no tempo, diluindo-se ao invés de se intensificar, naturalizando, assim, a própria ideia de revelação ou de conclusão.
(“A Febre de Maria João” não oferece, assim, um desenlace; no máximo, oferece o sintoma de um desenlace)
Esse é, precisamente, o fundamento do misticismo (ou, de maneira mais lata, da experiência mística), tão profuso na tradição, artística e social, portuguesa: ele revela-se pedaço a pedaço, linha a linha – é feito, não de um instante de iluminação, de uma epifania, mas de pequenos momentos interligados. Os irmãos Afonso e Bernardo Rapazote, responsáveis pelo argumento e pela realização da curta-metragem, parecem compreender exemplarmente esse facto, munindo todas as cenas de uma simbologia pululante. Nisto, as personagens não funcionam só como personagens: também funcionam como adereços, retratos vivos de um Tempo histórico (o rescaldo da Guerra Civil entre liberais e miguelistas/absolutistas) que, aqui, se afirma como lugar a ocupar. Elas tanto pertencem à História, como a História lhes pertence; a tendência de esgotar as possibilidades na primeira dessas relações, felizmente, não é, neste caso, consumada.
Só pelo trailer, é desde logo impossível não pensar num género específico: o Western. Os jovens realizadores fazem questão de no-lo recordar: há armas de fogo, um forasteiro, um cão a latir. Há um passado por desvendar. Há histórias por contar. Contudo, nessa tela perfeitamente conhecida por todos, há uma voz dissonante – a língua portuguesa; uma voz que resulta, primariamente, pelos excelentes diálogos escritos pelos irmãos Rapazote, que por entre os naturais arcaísmos e ditados caídos em desuso, acrescentam apenas o suficiente para ir construindo, com vagar, a teia anteriormente referida.
(Uma teia tão transparente que quase não se nota.
Uma teia que, pensando bem, talvez nem exista mesmo.
No fim de contas, é essa a experiência mística)
Dito isto, o que fica d’”A Febre de Maria João”? Ficam imagens fortes (o trabalho de fotografia e de realização assim o propicia), actuações convincentes por parte dos actores e da actriz; fica a dúvida seminal sobre o que acontece às personagens após a palavra “Fim” surgir no ecrã. Acima de tudo, fica um potente sinal de que é possível um novo caminho para o cinema português, um caminho em que a ambição não é medida pela dimensão do orçamento ou pelo espalhafato audiovisual, mas pela força da visão dos autores; visão essa que não quer simplesmente mostrar – quer dar a ver.
E dar a ver é, de forma muito particular, revelar. Mesmo o que não se quer, de modo leviano, revelado.
(“A Febre de Maria João” foi nomeada para sete categorias nos Prémios Curtas 2024 incluindo para Melhor Curta-Metragem de Ficção. Por motivos que provavelmente nunca farão sentido, nem a realização, nem o argumento, estiveram nomeados nas respectivas categorias)