Edward Said: Democracia e Humanismo em Estado de Crítica Permanente

O presente texto tem como objetivo traçar um breve panorama das formas de acepção do conceito de humanismo na obra de Edward Said, intelectual palestino fora do lugar, autodenominado humanista pós-colonial e crítico do humanismo. Para isso, empreende esforço em investigar o conceito de “leitura em contraponto”, instrumento analítico proposto no interior de sua obra. Tal aspecto do pensamento de Said é extremamente complexo, pelo fato de tensionar aparentes contradições com a postura de enfrentamento da cultura imperialista ocidental, identificada em suas obras mais celebradas: Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente (1978) e Cultura e Imperialismo (1993). O artigo se propõe a discutir, ainda, o papel da democracia na crítica humanista proposta por Said. Palavras-chave: Edward Said; Humanismo crítico; Pós-colonialismo; Democracia. Texto de Francisco Chagas de Oliveira, Francisco Oliveira, Professor SGAS 906 – Conjunto F – W5 – Asa Sul, Brasília – DF, Brasil. Currículo aqui. Imagem: Painting of scholars in an Abbasid library by Yahya al-Wasiti, 1237.

INTRODUÇÃO

A produção acadêmica de Edward Said está situada sob o signo de uma originalidade ímpar nos quadros da Teoria Social. Essa singularidade manifesta-se, sobretudo, em seu entendimento de que as dimensões da cultura e da política constituem espaços nos quais as identidades se estruturam a partir de uma lógica dialética. Ou seja, ao estarem inevitavelmente interconectadas, as identidades apresentam-se como realidades que podem revelar-se simultaneamente de afirmação ou negação de unidades interpretativas, essenciais à continuidade das distinções presentes na paisagem do discurso conflituoso entre Oriente e Ocidente.

Nascido na cidade de Jerusalém, em 1935, contexto da hegemonia britânica sobre os territórios do Oriente Médio por intermédio da Liga das Nações, Edward Said possui uma trajetória intelectual indistinta de sua biografia. Sua família é formada no âmago de uma dinâmica de desterro ocasionada, principalmente, pelas tensões diplomáticas europeias pós-I Guerra Mundial, da incessante crise política nos Balcãs no período Entreguerras e da I Guerra árabe-israelense (1948-1949). Ao transferir-se do Cairo para os Estados Unidos em 1948, Said desenvolveu uma carreira acadêmica de ascensão impressionante, passando por universidades americanas de grande renome internacional tais como, Princeton, Harvard, John Hopkins, Yale e Columbia, essa última onde inicia sua carreira de professor de literatura em 1963.(BASSI, 2016, p. 31).

Destarte, feitas estas considerações iniciais, sobre as quais é necessária uma reflexão atenta para uma melhor compreensão da montagem e estrutura assumidas pelas ideias do autor em evidência, cabe destacar que é extremamente difícil, quando não, impossível, compreender a profundidade do projeto intelectual de Said. O autor faz uma projeção bastante peculiar sobre a realidade e ancora sua gênese no desenraizamento físico e geográfico e no exílio intelectual, para se autonomear como “fora do lugar”, sem considerar sua própria biografia e ativismo político atrelado à questão palestina.

Ao remontar as ideias do intelectual italiano marxista Antonio Gramsci, presentes no escrito Cadernos do Cárcere, Said indica que sua atitude perante o mundo advém da concepção gramsciniana de que são os intelectuais, e não as classes sociais, que representam o núcleo fundamental do funcionamento da sociedade moderna, tanto que são convertidos ao longo do século XX em objeto de estudo. Nas palavras de Said, os intelectuais têm sido os pais e as mães dos movimentos, pois:

Além dos milhares de diferentes estudos históricos e sociológicos de intelectuais, há também intermináveis relatos sobre os intelectuais e o nacionalismo, e o poder, e a tradição, e a revolução, e por aí afora. Cada região do mundo produziu seus intelectuais, e cada uma dessas formações é debatida e argumentada com uma paixão ardente. Não houve nenhuma grande revolução na história moderna sem intelectuais; de modo inverso, não houve nenhum grande movimento contrarrevolucionário sem intelectuais. (SAID, 2005, p. 25)

Nesse sentido, ao considerar o pressuposto de que Edward Said enxerga sua produção e atitude como possíveis fontes de transformação real para o mundo, tento trazer a lume em que termos, e sob quais circunstâncias, a crítica elaborada pelo pensamento exilado de Said ao discurso ocidental sobre o Oriente, assume perspectiva humanista a partir do questionamento do humanismo europeu tradicional. Crítica essa que encontraria possibilidades reais de aplicação através da utilização da ferramenta analítica designada como contrapontual reading (leitura em contraponto). A ferramenta lança um novo olhar sobre mundo literário por meio da elaboração e reelaboração contínua de um novo humanismo que tentar desconstruir estereótipos, preconceitos e a xenofobia difundidos no imaginário ocidental em relação ao mundo oriental.

Para efeito de análise, considero neste escrito, em consonância com Marcos Costa Lima (2021), que o núcleo do pensamento de Edward Said, encontra-se proeminentemente em suas obras mais celebradas: Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente (1978) e Cultura e Imperialismo (1993), publicações nas quais, talvez, esteja mais evidente sua orientação para o questionamento das concepções científicas e filosóficas de caráter dogmático. Nestas obras Said também tenta desvelar os modelos normativos que controlam suas formulações, ao partir de uma postura de enfrentamento do que, segundo ele, seria a cultura imperialista ocidental.

A partir deste trabalho procuro demonstrar qual o papel desempenhado pelo conceito de democracia no interior da crítica humanista de Said. Tento responder de forma breve – sem a pretensão de exaurir o tema e atendendo ao espaço e limitações impostas pela extensão da qual disponho – a questionamentos e angústias surgidas ao longo da leitura da bibliografia aqui referenciada.

Este escrito constitui também minha primeira tentativa de compreender a produção acadêmica e a militância política de Edward Said como elementos carregados de um simbolismo extremamente significativo para o campo dos estudos fora das categorias de análises eurocêntricas, dado que Said ainda é o crítico palestino alinhado ao pensamento pós-colonial de maior projeção e reconhecimento no mercado acadêmico internacional. Ele foi responsável pela audaciosa sugestão de que a reinterpretação do mundo oriental por parte do Ocidente não é uma questão meramente circunscrita aos muros das universidades e à ruminação intelectual fria, mas está também ligada às formas de dominação cultural e política que são exercidas pelas comunidades imaginadas do Oeste às comunidades imaginadas do Leste.

Do Combate ao essencialismo à crítica humanista permanente: Exílio e leitura em contraponto

Norbert Elias, em sua clássica obra O Processo civilizador (1990), nos revela a ideia de que o conceito de civilização trata-se de uma construção discursiva que se traduz também em práticas cotidianas cuja função seria a de expressar a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Essa consciência, construída por intermédio de ficções semânticas calcadas em tradições inventadas no seio das comunidades nacionais, seria capaz de sintetizar um sentimento de superioridade cultural. Na concepção de Elias, a palavra civilização procura descrever, para a sociedade ocidental, “o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulhar; o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo e muito mais”. (p. 23)

Karl Mannhein, ao refletir sobre a existência e modos de pensamento particulares, entende que, enquanto permanecerem obscuras as origens sociais destas categorias interpretativas e visões de mundo estruturadas a partir de relações calcadas no mundo real e não forem consideradas as formas históricas concretas pelas quais esse universo foi formado, esse pensamento continuará obscuro. Mannhein parte da tese de que:

Os indivíduos reunidos em grupos forcejam, segundo o caráter e a posição dos grupos a que pertencem, por modificar o mundo circundante da natureza e da sociedade, ou procuram perpetuá-lo em uma dada condição. É a direção dessa vontade de mudar ou conservar, dessa atividade coletiva que fornece o fio orientador ligado ao aparecimento de seus problemas, conceitos e suas formas de pensamento. (FERNANDES, 1989, p. 98)

Ao remontar as ideias de Elias e Mannheim no que concerne, respectivamente, ao conceito de civilização e aos postulados da Sociologia do Conhecimento, procuro esclarecer o fato de que a teoria de Said sobre a estruturação do imaginário ocidental sobre o Oriente não representa um trabalho ausente de rigor científico, como sugerem alguns de seus críticos mais ríspidos, tais como Bernard Lewis, William Montgomery Watt e Clive Dewey. (BASSI, 2021, p. 145)

Said, em sua crítica literária, parte do pressuposto de que o Oriente não é um fato da natureza por si só. Assim como o Ocidente, constitui aquilo que, segundo Vico, simboliza a teatralização do movimento histórico que os agentes sociais elaboram ao longo de sua formação enquanto povo. Logo na introdução de sua obra Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente (1978), o autor deixa claro que culturas e histórias não podem ser estudadas sem que sua capacidade de influenciar leituras e releituras sobre o mundo -, ou mais precisamente a sua configuração de poder simbólico, que adentra com força de dominação o mundo concreto- seja também analisada (SAID, 1990, p. 17). A essa ideologia disseminada por intermédio das interpretações elaboradas sobre as categorias que existem como fontes de conhecimento sobre o Oriente, Said chama de Orientalismo.

Yumna Siddiqi sugere que Edward Said identifica uma estrutura de referência que se trata, na verdade, de uma estrutura de self-referential (autoreferência), na qual autores ocidentais, que imaginam conhecer o Oriente, expressam esse conhecimento por intermédio da reprodução de ideias de outros ocidentalistas que não tiveram experiência empírica suficientemente sólida com a cultura dos povos do Leste do globo. Esse fenômeno, ignorado por boa parte da intelectualidade ocidental, foi responsável, segundo Said, pela montagem e continuidade do provimento de força motriz de um discurso de “verdade” sobre o Oriente, fundamentado em uma autoridade discursiva reivindicada de forma unilateral por escritores, intelectuais e artistas do Ocidente. Siddiqi (2005, p. 66), então, vai além em sua análise e corrobora com as ideias de Said ao afirmar que essa produção orientalista de conhecimento não foi meramente um exercício conceitual; teve efeitos materiais de longo alcance e profundos porque se tornou a base da política imperial”. (tradução nossa).

Nesse ponto, faz-se necessária uma relfexão sobre as bases da crítica elaborada por Edward Said para que possamos, de fato, apreender o seu pensamento em sua raiz. Ao defender a ideia de que

Em nossa época, o colonialismo direto se extinguiu em boa medida; o imperialismo […] sobrevive onde sempre existiu, numa espécie de esfera cultural geral, bem como em determinadas práticas políticas, ideológicas, econômicas e sociais. (SAID, 2012, p.40)

Quando Said defende esta ideia, está alinhado a uma vertente analítica pós-colonial que pressupõe existir uma dominação concreta exercida pelas comunidades imaginadas do Oeste sobre o Oriente. Essa dominação se inicia no plano do discurso, mas não constitui uma simples estrutura de mentiras ou mitos criados sobre estes povos. Ou seja, Said reafirma sua tese de que há uma força nua e sólida do discurso orientalista, que é, antes de tudo, um sistema de ideias que conseguiu, ao longo da história moderna, permanecer inalterado em sua essência. Tal discurso orientalista forjado pelo ocidente perpassou a literatura do século XVIII-XIX, a academia “especializada” europeia e norte-americana, as artes plásticas e as artes visuais produzidas “do lado de cá” e percorreu os meios de comunicação de massa que ascenderam como força proeminente no campo da disseminação da informação, etc. Toda essa rede de produção discursiva não engendra unicamente fantasias tendo em vista a dinâmica de relações internacionais, culturais e simbólicas do jogo “nós-eles”. É preciso considerar que, baseado em Michel Foucault, Said enxerga nessa teia discursiva unívoca a brecha para desenvolver a ideia de que a realidade é formada a partir de um imaginário atrelado a um determinado vocabulário que confere ao mundo sua presença como tal e lhe atribui suas noções de poder e autoridade. As realidades que tornam os textos possíveis tal como se apresentam, e suas devidas interpretações corretas, são gerados por relações de poder. (CARVALHO, 2013, p. 469)

Para Said é indispensável perceber como o discurso orientalista, que supõe sua primazia elaboradora no Ocidente, é uma forma de dominação que cumpre uma missão de calar o “outro” presente em “minha” narrativa, ao deixá-lo expressar-se unicamente por meio do meu próprio imaginário. Isso ocorre mesmo quando a narrativa inclui, absorve e consolida uma imagem precedente. O discurso orientalista amputa, dessa maneira, as expressões reais do espírito da cultura oriental. (SAID, 2012, p. 58)

Said então compreende que o essencialismo criador de arquétipos estereotipados, presente na cultura ocidental quando ela refere-se ao Oriente, é produto da posse sine qua non do poder de narrar e disseminar essa narrativa como verdadeira. Tal conclusão faz que o autor se identifique, de forma aberta e consciente, com as noções de poder e saber presentes na teoria de Michel Foucault. No entanto, Said distancia-se de Foucault no tocante às condições inevitáveis de esgotamento da experiência sociais, sobretudo por considerar que o filósofo francês encara as formas de estruturação dos discursos hegemônicos como forças totalizantes, as quais não deixam espaço para ascensão de um pensamento crítico, capaz de ameaçar de maneira substancial o establishment.

Ao negar a possibilidade de exaustão da experiência de enfrentamento de uma determinada narrativa hegemônica, Said propõe então a “leitura em contraponto” como ferramenta analítica para a crítica literária. Na esteira dessa ferramenta, o autor adota um humanismo crítico que tem por característica básica o rechaço ao humanismo eurocêntrico tradicional, responsável, em boa medida, pela elevação das visões distorcidas do Oriente ao status de interpretações reais. A noção de necessidade de “exílio intelectual”, para se atingir uma interpretação não falseada sobre uma determinada realidade, também está presente em seu pensamento. A seguir, discuto brevemente cada um destes elementos.

Ao propor uma contrapontual reading, Said parte de uma analogia pertencente ao universo da música, na qual um tipo de composição pode ser elaborada sem necessariamente ser dirigida por nenhum princípio formal rigoroso fora da obra. Segundo Siddiqi, Said teria afirmado em diversas oportunidades que guardava reservas sobre o domínio da teoria na interpretação literária.

Em textos literários como em contraponto, coexistem diferentes temas; o crítico pode revelar toda a complexidade da cultura imperial explorando a interação da experiência metropolitana e a experiência do “Outro” que pode ser discernida nos interstícios dos textos da era colonial. (SIDDIQI, 2005, p. 67, tradução nossa) [1]

Nesse sentido, aproximando-se de Bakhtin, Said percebe as interpretações sobre a realidade como construções dialógicas. Ambos estão alinhados com a ideia de que o trabalho do crítico literário consiste em criar pontes de interação entre diferentes vozes. Seria necessário, dessa maneira, interpretar as ideias constantes em um texto de forma a considerar o que está expresso naquilo que foi excluído, a partir do conhecimento sobre a cosmovisão empregada por aquele que escreve.

No que diz respeito aos ideais humanistas de Said, adentramos um terreno extremamente complexo, pois o autor concebe o humanismo como uma espécie de postura secular desvinculada do nacionalismo, o que constitui uma negação das acepções clássicas do humanismo. Do ponto de vista de Said, o humanismo pode apresentar uma dupla dimensão: tanto pode ser uma corrente epistemológica que gera terreno firme o bastante para dar sentido à busca humana por autoconhecimento; como pode, nas palavras de do norte-americano William John Thomas Mitchell (2005, p. 463), ser também “um antiquarianismo abafado e estéril, uma piedade sentimental e vazia sobre o humano, um desenvolvimento que, por sua vez, produziu vários anti-humanismos e pós-humanismos rasos” (tradução nossa)[2]. Segundo esta concepção é necessário ser crítico do humanismo, em nome do humanismo. Aqui está inserido o postulado da crítica permanente da qual Said trata em sua obra. A “leitura em contraponto” seria uma espécie de desdobramento desta postura de reafirmação e enfrentamento do humanismo, intelectualmente exilada permanentemente, em nome dos valores humanistas antinacionalistas, de orientação internacionalista.

Seguindo a lógica propositiva do intelectual palestino, podemos então, com auxílio de Bruno Sciberras de Carvalho (2013), chegar ao pressuposto de que o Novo Humanismo ao qual Said se vincula, é

[…] baseado nas potencialidades da reflexividade e liberdade modernas [que] superem circunstâncias particulares em benefício de uma compreensão cosmopolita, já que seria possível ser crítico ao humanismo em nome do humanismo […] desde que estivéssemos atentos aos abusos da experiência do eurocentrismo e do imperialismo. (p.466)

Desse modo, resta explanar de que se trata a noção de “exílio” criada por Said. Esse aspecto da teoria do autor está ligado a uma postura declaradamente antagônica ao nacionalismo e a representações intelectuais que empreendem reduções mesquinhas da realidade. Essa condição de exílio intelectual seria, segundo Said, capaz de engendrar nos diversos espaços de debate valores verdadeiramente multiculturais ao criar novos tipos de conexões que não atendam a interesses de afirmações de identidades específicas.

A condição do exílio constitui, então, uma alternativa ao legado negativo do imperialismo em difundir crenças exclusivistas e inertes. Além disso, a condição cognitiva do exilado seria exemplar para o rompimento de cadeias representativas que geram um alter ego concorrente, baseado no estabelecimento e reprodução de identidades opostas, os “outros”, que seriam inexoravelmente díspares. (CARVALHO, 2013, p. 466)

Dessa forma, o exílio seria uma condição cognitiva assumida pelo intelectual que ultrapassa sua situação geográfica, seus precedentes identitários e referências intelectuais, situando o indivíduo em um espaço transnacional de produção discursiva articulada a partir de um âmbito estritamente secular. Baseado em uma ética de valores contra hegemônico, o exílio seria então a expressão de um pensamento pós-colonial capaz de implodir as unidades de coesão que perpassam os ideais da nação e as representações de identidade de grupos e classes, representando uma crítica ferrenha aos padrões esquematizados que são impostos aos indivíduos. Assim, a prática intelectual exilada deve resistir a reprodução do imaginário nacional e à imposição da ideia de pertencimento vazia de humanismo crítico. No sentido intelectual, Said talvez possa ser encarado como um tipo de “anarquista pós-colonial”.

Independente de qualquer conjectura, o fato que salta aos olhos, ao explorarmos o mundo das ideias de Edward Said, é que se trata de um universo inegavelmente interessantíssimo e extremamente engajado, impregnado de vontade de transformar o mundo sobre o qual tece reflexões. Suas contribuições para o campo da crítica literária, da teoria das relações internacionais e das Ciências Sociais como um todo é, portanto, inestimável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Edward Said

Ao longo da escrita deste trabalho tentei expor alguns dos principais elementos do pensamento do intelectual e ativista político palestino Edward Said. Autodeclarado intelectual exilado ou “fora do lugar”, tanto por sua condição desterrada referente à sua história de vida, quanto ao que depois veio a transformar no conceito de “exílio intelectual”. Percorri ainda o conceito de “leitura em contraponto”, ferramenta analítica utilizada como arma de combate à estruturação das visões pré-concebidas do Ocidente em relação ao Oriente, bem como sua acepção herética relativa ao humanismo. A “leitura em contraponto” coloca a filosofia clássica ocidental sobre uma crítica permanente em nome da preservação de seus aspectos que são, para Said, inegavelmente detentores de potencial para uma crítica incisiva da realidade repleta de antagonismos preconceituosos entre as sociedade do Ocidente e do Oriente.

Ao ponderarmos as afirmações de Said, no que tange aquilo que também salienta Ella Shohat, a condição histórica que coloca o controle colonial sob uma lente de continuidade, por intermédio do imperialismo neocolonial expresso em um controle agressivo anteriormente bélico, e que agora se propaga de maneira abstrata, indireta, que invade a esfera econômica, mas que toca também nas extensões simbólicas das relações entre as sociedades, podemos efetivamente mensurar o tamanho de sua contribuição. (SHOHAT, 2006)

Assim, dada a extensão da contribuição, complexidade e vulto da obra de Said, é necessário também pensarmos – como ele próprio demonstrou, em sua postura de militância política ao longo de sua vida -, a forma pela qual Said conceberia a práxis da democracia dentro do seu quadro teórico.

Segundo Mitchell, Said sempre teve plena consciência de que o discurso pretensamente humanista que cerca a democracia ocidental, foi largamente utilizado ao longo da História, sobretudo na segunda metade do século XX e início do século XXI, como uma máscara legitimadora de incursões imperialistas (casos como os do Iraque e do Afeganistão são emblemáticos). Os valores inegociáveis da democracia, tais como a ideia de igualdade, fracionamento do poder, acesso à justiça e o ideal da autonomia por intermédio do autogoverno secular, deveriam estar fora do alcance, protegidos de qualquer cooptação de ideólogos que trabalham para inverter estes valores. Em Said, o resgate dos valores reais da democracia é urgente. (MITCHELL, 2005).

Nas palavras do ativista palestino,

[…] se, como acredito, está em andamento em nossa sociedade um ataque ao próprio pensamento, sem falar no assalto à democracia, à igualdade e ao meio ambiente, pelas forças desumanizadoras da globalização, valores neoliberais, ganância econômica (eufemisticamente chamada de livre mercado), bem como ambição imperialista, o humanista deve oferecer alternativas agora silenciadas ou indisponíveis pelos canais de comunicação controlados por um pequeno número de organizações de notícias. (SAID, 2007, p. 36)

É possível perceber, portanto, que a crítica humanista de Said possui uma preocupação não apenas com a continuidade das visões distorcidas sobre a realidade. O autor julga haver, entre o final do século XX e o início do século XXI, um ataque que mira o próprio pensamento crítico. Said dirige a atenção, sobretudo, ao esfacelamento gradual ao qual a democracia está sendo submetida. Opõe-se claramente ao neoliberalismo e ao monopólio midiático de grandes corporações, assim como também indica que, neste contexto de ataque sistemático, empreendido pelo regime neoliberal, o papel do humanista é disponibilizar, de alguma forma, alternativas que estão obscurecidas pela lógica da imposição do silêncio sobre aqueles que lutam pela democracia.

REFERÊNCIAS

BASSI, Danilo Martins Guiral. Edward Said: um perfil intelectual. Malala, São Paulo, v. 4 n. 6, 2016, p. 130-151. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/malala/article/view/122169. Acesso em: 03 out. 2021.

CARVALHO, B.S. Entre o universalismo e a condição contextual: concepções e limites do humanismo secular de Edward Said. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, Vol. 03, n. 06, nov. 2013, p. 465-488.

ELIAS, Norbert. Sociogênese da diferença entre “Kultur e Zivilisation” no emprego alemão. In: O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro, Zahar, 1990.

FERNANDES, Florestan. Karl Mannheim. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1989.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere,. volume 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

LIMA, Marcos Costa. O humanismo crítico de Edward W. Said. In: TOLEDO, Aureo (org.). Perspectivas pós-coloniais e decoloniais em relações internacionais. Salvador: Ed. UFBA, 2021. p. 83-104.

MITCHELL, W.J.T. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SAID, Edward W. Fora do Lugar: Memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 In: BASSI, Danilo Martins Guiral. Edward Said: um perfil intelectual. Malala, São Paulo, v. 4 n. 6, 2016, p. 131. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/malala/article/view/122169. Acesso em: 03 de out. 2021.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

MITCHELL, W.J.T. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Companhia das Letra, 2007.

MITCHELL, W.J.T. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

MITCHELL, W.J.T. Secular Divination: Edward Said’s Humanism. Critical Inquiry, Winter vol. 31, n. 2, p. 462-471, 2005. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/430975. Acesso em: 22 out. 2021.

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

SIDDIQI, Yumna. Edward Said, Humanism, and Secular Criticism. Alif: Journal of Comparative Poetics, n. 25, 2005, p. 65-88. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/4047452. Acesso em: 20 out. 2021.

  1. No original: “(….) in literary texts as in counterpoint, different themes coexist; the critic can reveal the full complexity of imperial culture by exploring the interplay of metropolitan experience and the experience of the “Other” that can be discerned in the interstices of texts of the colonial era”.

  2. No original: “A stuffy, sterile antiquarianism, a sentimental, hollowpiety about the human, a development that has in turn produced various shallow antihumanisms and posthumanisms”.