Estudo de Caso: O Estádio do Restelo

Trabalho elaborado no Seminário de Gestão e Proteção do Património Arqueológico para o docente Professor Doutor Santiago Macias na Nova FCSH.

Introdução:

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Figura.1 – Estádio do Restelo
Fonte: Observador

Serve o presente documento, desenvolvido mediante o Seminário de Gestão e Proteção do Património Arqueológico, enquanto uma iniciativa de estudar e apoiar a conservação do Património Desportivo, temática esta que se encontra ainda subdesenvolvida no panorama nacional, na medida em que é muitas das vezes remetida a uma condição de invisibilidade[1].

Deste modo, disponho-me a realizar uma monografia em torno do Estádio do Restelo, com a intenção de demonstrar a importância deste espaço enquanto um verdadeiro repositório da identidade coletiva de Belém. Para isso, contei com o apoio do Clube de Futebol “Os Belenenses” cuja direção se disponibilizou prontamente não apenas com a cedência de material bibliográfico, bem como com a realização de uma visita guiada ao espaço no qual residem as suas memórias: o museu Manuel Boullousa, onde pude aprender imenso sobre a história deste clube, que nos dias de hoje é uma Instituição de Utilidade Pública[2].

Com a realização deste trabalho, vou procurar abordar não apenas a materialidade e imobilidade inerente ao meu objeto de estudo, mas também busco fazer referência à sua imaterialidade, na medida em que este pode ser visto como mais do que uma simples instalação destinada à prática ou exibição desportiva, defendendo a ideia Pierre Nora, que servirá para caracterizar estádios, pavilhões e outros recintos, enquanto potenciais “lugares de memória”[3], nos quais convergem as suas dimensões funcionais e simbólicas.

Assim sendo, este ensaio escrito vai seguir as seguintes metodologias: vou começar por reunir as informações existentes em torno do Estádio do Restelo, referenciando a sua História em termos bibliográficos, e de modo a conseguir obter um contexto alargado sobre a instituição que é o Clube de Futebol “Os Belenenses”; de seguida, tenho o intuito de estabelecer a relação entre a História do espaço, de modo a demonstrar a importância que este tem para os seus visitantes, especialmente os aqueles que são naturais de Belém; e finalmente tentarei demonstrar a necessidade de patrimonializar este edifício, através da sua importância desportiva e afetiva.

O Estádio do Restelo – Contextualização Geográfica:

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Figura.2 – Vista aérea de Lisboa
Fonte: Google Maps

O Estádio do Restelo, também conhecido como a “casa” do Clube de Futebol “Os Belenenses”, encontra-se situado na freguesia de Belém, concelho e distrito de Lisboa sob a seguinte morada: Avenida do Restelo, 1449-015, Lisboa. Este é apresentado na folha número 431-Lisboa da Carta Militar Portuguesa[4], e situado nas coordenadas X38° 42′ 5.99″ e Y-9.207900166511536. Trata-se de um Complexo Desportivo construído no século XX, cuja inauguração se deu a 23 de setembro de 1956, e que é propriedade do Belenenses. É considerado por muitos o estádio mais belo de Portugal[5], uma vez que se encontra numa área privilegiada, com vista para a zona histórica de Belém, para o Tejo, e para boa parte da Almada ribeirinha (fig.1).

O Belenenses e Estádio do Restelo – Uma História:

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Figura.3 – Banco instalado na praça Afonso de Albuquerque
Fonte: Mensagem de Lisboa

Antes de abordar o Estádio do Restelo enquanto objeto a ser estudado, é preciso situar historicamente quando, e em que circunstâncias, foi fundado o Clube de Futebol “Os Belenenses”. Foi através da iniciativa de Artur José Pereira[6], que depois de abandonar o Sporting Clube de Portugal, no final da época futebolística de 1918/1919, tinha como intuito formar um clube com o nome da sua terra, que era Belém. A sua ideia acabou por ganhar o apoio de alguns nomes como Francisco Pereira (seu irmão), Henrique Costa, Carlos Sobral, Joaquim Dias, Júlio Teixeira Gomes, Manuel Veloso e Romualdo Bogalho[7]. De entre tantos, alguns acabaram por abandonar também o Sport Lisboa e Benfica, levando à formação do Belenenses, que passados muitos anos de História se configura enquanto uma Instituição de Utilidade Publica. A fundação deste importante clube encontra-se eternizada através da presença de um banco de jardim, situado na Praça Afonso de Albuquerque, em Belém (fig.3), no qual pode ser lida a seguinte inscrição: “Aqui nasceu o C.F. “Os Belenenses”, 23-9-1919”.

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Figura.4 – Campo das Salésias (2019)
Fonte: AirCourts

Aquando da sua formação, o Belenenses jogava perto da Praça Afonso de Albuquerque, no Campo do Pau de Fio, mudando-se para o Campo das Salésias, o qual foi construído em terrenos cedidos pelo Estado a “título precário”, e foi o primeiro campo em território nacional a proporcionar um estádio com campo relvado e bancadas com cobertura para proteger da chuva, estabelecendo-se, por isso, enquanto o principal palco para os jogos da Seleção Nacional[8]. Foi no Estádio das Salésias que o Clube de Futebol “Os Belenenses” viveu os seus anos dourados, uma vez que este protagonizou a conquista do Campeonato Nacional da Época 1945/46, estabelecendo deste modo o nome do clube de Belém enquanto um dos quatro grandes do futebol português. No final desse mesmo ano, a Câmara Municipal de Lisboa comunicou ao Belenenses o prazo de seis anos para abandonar as Salésias, prazo esse que foi alargado, mas que se conformou em 1956, com a efetiva expulsão do clube deste local que lhe trouxe tantas alegrias. Todavia, em 2014, e devido ao esforço financeiro do Belenenses em recuperar este local tão querido pelos adeptos, o terreno que estava destinado a grandes projetos urbanísticos, mas que se encontrava ao abandono, foi comprado e recuperado. Aqui, em 2016, foi inaugurado o novo Campo das Salésias (fig.4), que serve atualmente não apenas enquanto um local para a prática desportiva dos escalões de formação, mas também enquanto um espaço de preservação de antigas memórias[9].

O abandono das Salésias levou o Belenenses ao Restelo, e essa “troca de ares” possibilitou uma evolução no caminho para a modernidade tanto da cidade de Belém, quanto do clube que a representa. Quando o Estádio do Restelo foi inaugurado, funcionava praticamente como um marco geográfico que delimitava a cidade, sendo desse modo, uma peça-chave para o crescimento da área que o engloba, estabelecendo-se enquanto um bem inestimável ao serviço da cidade de Lisboa[10]. Construído sobre uma antiga pedreira, em terrenos cedidos pela Câmara Municipal de Lisboa, é da autoria dos arquitetos Carlos Manuel Oliveira Ramos e Jorge Manuel Teixeira Viana, os quais o desenharam seguindo um “sistema misto de alvenaria e betão armado, aproveitando a pedra arrancada do local”[11]. Aqui, o Belenenses construiu não apenas aquele que foi o primeiro estádio nacional pensado especificamente para acolher transmissões televisivas, mas também o palco para a construção e armazenamento as memórias do clube, que por sua vez conta com o reconhecimento de milhares de associados de todas as classes, e dos mais vários cantos do mundo[12]. Mais recentemente, o complexo do Restelo, que viu o Belenenses sair triunfante de importantes conquistas para a sua história, como é o caso da Taça de Portugal da época 1988/89, foi alvo de um projeto de requalificação, em parceria com o Lidl, no ano de 2016. Este teve como principal enfoque cobrir a bancada do Topo Norte, e a adaptar a infraestrutura do clube de modo que esta coincidisse com os padrões modernos[13], construindo desse modo o palco perfeito para a realização de concertos e festivais, para além das já existentes atividades desportivas.

Resumidamente, e segundo Acácio Costa, o Estádio do Restelo é: (…) “Um sonho belo que se transforma em realidade… Francamente, às vezes parece-me um sonho ainda!…”[14].

O Estádio do Restelo, Património Material e Imaterial – Um “Lugar de Memória”:

Segundo a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, desenvolvida pela UNESCO, o património imaterial está interligado com: (…) “práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões — bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados — que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”[15]. Deste modo, é importante e necessário fazer referência à importância que o património material exibe para que seja possível conservar o património imaterial, na medida em que os objetos e espaços podem transportar em si inúmeras memórias[16]. Assim sendo, vou optar por entender o espaço cultural, que é o Estádio do Restelo, enquanto um “lugar de memória”[17], uma vez que este se apresenta enquanto um elemento importantíssimo para a compreensão do meu objeto de estudo, uma vez que envolve um significado especial para uma comunidade, trabalhando enquanto um ponto de referência para a memória coletiva deste espaço[18].

Uma imagem com estátua, escultura, Busto, Artefacto

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Figura.5 – Bustos de Vicente e Matateu
Fonte: Duarte Formiga

Ao visitar presencialmente o meu objeto de estudo, foi-me possível concluir que este se estabelece enquanto um autêntico repositório de memórias, isto porque à entrada do complexo dei de caras com os bustos de Vicente e Matateu (fig.5) e o relevo de José Manuel Soares “Pepe” (fig.6), que servem enquanto eternas homenagens estas antigas glórias do clube, e que fomentam um verdadeiro depósito de memórias, neste espaço. Estas figuras transportam-nos à imaterialidade patrimonial, na medida em que contam e eternizam memórias acerca destes importantes fenómenos, que por sua vez proporcionaram um legado histórico ao Belenenses. Deste modo, é possível transmitir a ideia de que os espaços desportivos são, de facto, verdadeiros repositórios de memórias, associando o património material e imóvel, neste caso, o Estádio do Restelo, à nostalgia e ao afeto, que preservam o património imaterial, neste caso a memória das antigas memórias do clube.

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Figura.6 – Relevo de “Pepe”
Fonte: Duarte Formiga

Assim sendo, e através das figuras homenageantes, referidas acima, é-me possível afirmar que o espaço desportivo do Clube de Futebol “Os Belenenses” caracteriza-se enquanto um “lugar de memória” uma vez que é utilizado tanto pelas suas dimensões materiais, através das referências físicas ao seu passado; quanto pelas suas dimensões simbólicas, através das suas estórias, do afeto e da nostalgia associados ao espaço; e também pela sua dimensão funcional, na medida em que este é visitado e frequentado para prática desportiva e para a observação da mesma.

Práticas de Transmissão e Salvaguarda Patrimonial – O Caso “Belenenses”:

A construção identitária de comunidades inteiras, neste caso, das massas adeptas relacionadas com o Clube de Futebol “Os Belenenses”, está associada ao Estádio do Restelo, uma vez que o reconhecimento de uma “casa”, no contexto, desportivo, oferece à comunidade que a engloba não apenas um ponto de orgulho cívico, mas também um destino para as gerações futuras, que aí a irão preservar através do seu gosto pelo desporto[19]. Este envolvimento é também aquilo que vai salvaguardar o património existente em torno do espaço desportivo, na medida em que este se estabelece através dos contactos entre familiares e/ou amigos, de geração e, geração[20]. Nesta medida, é possível afirmar que a partilha de histórias acerca dos tempos áureos do Belenenses, através da utilização de referências orais, e da construção de monumentos em torno de figuras importantes para o clube, é tida enquanto uma das principais práticas de transmissão e salvaguarda deste património. Estas partilhas podem ser realizadas tanto através do relato oral, com os avôs a transmitirem aos netos os feitos desportivos do passado, como é o caso das recordações de partidas às quais assistiram, bem como através da visita ao espaço desportivo. Ainda assim, outro fator que irá, com certeza, manter estas “lendas” vivas é a venda de merchandising (fig.7) que contenha alusões ao passado da instituição, uma vez que, a nostalgia, o afeto e a empatia são fatores preponderantes para a preservação patrimonial[21].

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Figura.7 – Exemplo de Merchandising
Fonte: Loja Oficial “Os Belenenses”

Apesar da importância das massas adeptas para a transmissão e salvaguarda do património, o Belenenses também procura estabelecer-se enquanto um agente patrimonializador. Assim sendo, o clube criou o Museu Manuel Boullosa, de modo a melhor comunicar e conservar o seu acervo patrimonial. Este espaço, que se encontra inserido no próprio Estádio do Restelo, respira paixão e pretende divulgar, através uma impressionante coleção, a trajetória gloriosa de uma das associações desportivas mais tradicionais do país. Através de algumas visitas que realizei ao espaço, pude constatar a exibição orgulhosa de taças e medalhas acumuladas em quase um século de disputas; equipamentos usados pelos heróis e antigas memórias, que marcaram gerações; painéis fotográficos que imortalizam lances decisivos, e celebrações que evidenciam a paixão pelo Belenenses. Quem por lá passa tem a oportunidade de sentir de perto o espírito de uma instituição que ajudou a moldar o desporto português, e é convidado pela responsável Argentina Matateu a reviver importantes momentos, que nos fazem refletir sobre a identidade não só do clube, mas também da comunidade que o rodeia. Deste modo, é possível afirmar que o Museu Manuel Boullosa, para além de se estabelecer enquanto um ponto de encontro para turistas interessados na história e cultura desportiva portuguesa, é também um espaço importante para a formação de fortes ligações entre o clube e a própria área de Belém. Assim sendo, e devido o diálogo ativo que se estabelece entre a massa adepta e o património da instituição, é possível concluir que “(…) o principal património de um Clube são os seus associados (…)”[22], na medida em que, como referido anteriormente, são estes que o vão melhor preservar e comunicar, devido ao afeto e à nostalgia.

O Problema na Patrimonialização do Estádio do Restelo:

Como referido anteriormente, o Estádio do Restelo tem sido palco de momentos marcantes, que ficaram registados na memória dos adeptos e da comunidade englobante, transformando-o num verdadeiro arquivo vivo da história não apenas do clube, mas também da região. Assim sendo, podemos afirmar que os espaços desportivos são territórios construídos com base na comunidade, socialmente, e que vão acumular significados culturais ao longo do tempo[23].

Apesar da sua rica e gloriosa história, o Belenenses também já viveu momentos em que não se encontrava na mó de cima, o que por sua vez transmite o perigo que o mesmo enfrenta para a conservação do seu património. A crise institucional, marcada pela separação entre o clube e a Sociedade Anónima Desportiva (SAD)[24], no ano de 2018, representou um momento crítico não apenas para a instituição, mas também para o próprio estádio enquanto bem patrimonial. Este conflito teve origem quando a administração da Belenenses SAD, entidade que geria o futebol profissional, decidiu romper ligações com o clube fundador, e mudar-se para o Estádio Nacional, no Jamor, deixando o histórico Clube de Futebol “Os Belenenses” sem uma equipa de futebol profissional, tendo sido obrigado a recomeçar nas divisões distritais, com uma equipa amadora, enquanto a SAD continuava a utilizar o nome e os símbolos do clube nos principais escalões do campeonato português. Apesar desta separação institucional, o Estádio do Restelo foi sempre mantido enquanto património do clube. No entanto, podemos afirmar que, do ponto de vista patrimonial, a identidade clubística deste clube centenário estava a ser perdida, uma vez em que, ao não deterem uma equipa profissional, seria difícil a comunidade visitar o estádio, e continuar a utilizá-lo enquanto um “lugar de memória”. Para que isso não acontecesse, o Belenenses foi obrigado a focar os seus esforços na vivência continuada, individual e coletiva, transformando aquela que seria a fase mais negra da história do clube, numa iniciativa que visou desenvolver a comunidade e o associativismo[25].

Paralelamente à crise institucional, o Estádio do Restelo enfrentou mais uma ameaça gravíssima, uma vez que durante quase uma década o mesmo passou a incorporar o nome “Municipal” (fig.8), enquanto o Belenenses se encontrava na triste circunstância de pagar a renda do espaço que projetou, construiu e melhorou, e que por sua vez funciona enquanto um suporte para as práticas sociais que mantêm viva a sua identidade[26]. Refiro-me ao “resgate” conduzido em sessão pública, pela autarquia de Lisboa, a 29 de junho de 1961. Esta medida deveu-se à frágil situação financeira em que o clube se encontrava, bem como com uma dívida que este dispunha face à Câmara Municipal de Lisboa, e transformou o Estádio do Restelo numa infraestrutura municipal, colocando-o “no mesmo patamar de uma piscina municipal ou de um parque de campismo público”[27], fator esse que obrigou o clube de Belém a disputar alguns jogos caseiros nos estádios da Tapadinha, Pina Manique, Alvalade e Luz, o que por sua vez colocou em perigo aquele que é o seu rico e histórico património identitário. Esta situação só ficou plenamente resolvida quando foi aprovada uma prorrogação da conceção e direito de superfície do Belenenses sobre os terrenos do Restelo, celebrada no 50.º Aniversário da instituição, a julho de 1982, e a subsequente obtenção total da propriedade dos terrenos, a janeiro de 1990, dando aso à preservação deste importante estádio enquanto um elemento de preservação e construção de memórias.

A Necessidade de Preservação Patrimonial do Estádio do Restelo:

Apesar do trabalho desenvolvido no Museu Manuel Boullosa, que funciona enquanto um importante dispositivo que catalisa a memória, e eleva o valor patrimonial do Belenenses, é necessário levar em consideração as problemáticas expostas acima, uma vez que estas evidenciam a necessidade da existência de uma patrimonialização formal do Estádio do Restelo, na medida em que esta não pode ser apenas um reconhecimento de valor, mas também um mecanismo de proteção contra ameaças futuras[28].

O reconhecimento oficial do estádio enquanto património cultural iria garantir não apenas a sua proteção legal contra eventuais ameaças de descaracterização ou demolição, mas também serviria enquanto uma ferramenta de divulgação à comunidade, contribuindo para a democratização do acesso ao património, permitindo que um conjunto mais amplo da sociedade reconheça e valorize o Restelo enquanto um bem cultural. Neste caso específico, a patrimonialização institucional poderia assumir a forma de classificação enquanto um Imóvel de Interesse Municipal, devido aos seus valores históricos, arquitetónicos e sociais.

Ainda assim, seria importante também, com a realização desta classificação, não impedir a utilização funcional do estádio enquanto um equipamento desportivo, de modo a não se perder a essência do “lugar de memória”, ou seja, há que garantir o reconhecimento oficial do estádio enquanto património cultural, mas sem perder a utilização do espaço pelas suas dimensões materiais, simbólicas e funcionais.

Reflexão:

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Figura.8 – “Estádio Municipal do Restelo
Fonte: Museu Manuel Boullosa

A análise desenvolvida em torno do Estádio do Restelo revela a complexidade inerente à preservação do património desportivo contemporâneo, evidenciando a maneira como estes espaços transcendem a sua função primária, de modo a estabelecerem-se enquanto verdadeiros repositórios da memória coletiva. O conceito de “lugar de memória” de Pierre Nora mostrou-se particularmente apropriado para compreender esta dualidade, na medida em que o Restelo incorpora simultaneamente as dimensões material, simbólica e funcional que caracterizam estes espaços de significado especial.

A trajetória histórica do Clube de Futebol “Os Belenenses” e do seu estádio ilustra exemplarmente os desafios enfrentados pelo património desportivo nacional. A crise institucional de 2018, e o período de “municipalização” forçada do estádio (1961-1990) demonstram de que modo a fragilidade institucional pode colocar em risco não apenas a preservação física dos espaços, mas também a continuidade das práticas culturais que lhes conferem significado. Estes episódios sublinham a vulnerabilidade do património desportivo face a pressões económicas e políticas, demonstrando a urgência de mecanismos de proteção mais robustos.

É também particularmente relevante constatar que o valor patrimonial destes espaços reside não apenas na sua materialidade arquitetónica, mas fundamentalmente nas práticas sociais e nas narrativas identitárias que neles se desenvolvem. O papel das massas adeptas enquanto agentes de transmissão patrimonial revela-se crucial, operando através de mecanismos informais de preservação da memória, que depois complementam as iniciativas institucionais formais, como é o caso do Museu Manuel Boullosa.

O texto desenvolvido evidenciou ainda a necessidade de uma abordagem integrada à patrimonialização, que vise reconhecer a especificidade dos espaços desportivos enquanto património vivo. Ao contrário de outros bens culturais, os estádios exigem uma gestão patrimonial que preserve simultaneamente a sua autenticidade histórica e a sua funcionalidade contemporânea, transformando-se num desafio que requer instrumentos de proteção adaptados às suas características peculiares.

Conclusão:

O presente estudo demonstrou que o Estádio do Restelo constitui um caso exemplar da riqueza patrimonial dos espaços desportivos portugueses, revelando a maneira como estes lugares operam enquanto âncoras identitárias para as comunidades que os habitam. A sua importância transcende largamente a dimensão desportiva, estabelecendo-se enquanto um elemento estruturante da identidade coletiva de Belém e um testemunho material da evolução urbanística de Lisboa.

A análise desenvolvida confirma a pertinência do enquadramento teórico dos “lugares de memória” para a compreensão do património desportivo, evidenciando como estes espaços operam enquanto verdadeiras interfaces entre o material e o imaterial, entre o individual e o coletivo, entre o passado e o presente. O Restelo emerge assim como um laboratório privilegiado para pensar estratégias de preservação patrimonial, que por sua vez respeitem esta complexidade multidimensional.

As ameaças identificadas ao longo da história do estádio, desde a instabilidade financeira à crise institucional recente, sublinham a urgência de desenvolver políticas públicas específicas para o património desportivo, algo que até aos dias de hoje ainda não se verifica, em território nacional. A proposta de classificação enquanto Imóvel de Interesse Municipal apresenta-se, portanto, como um primeiro passo necessário, mas insuficiente, se não for acompanhada por medidas que garantam a sustentabilidade económica e social destes espaços.

O caso do Belenenses revela ainda o potencial transformador da adversidade, demonstrando como as crises podem catalisar processos de revalorização patrimonial e renovação comunitária. A resposta do clube à separação da SAD, privilegiando o desenvolvimento associativo e comunitário, oferece um modelo inspirador na maneira como tratar o seu património, para outras instituições que se encontrem em situações similares.

Finalmente, serve o presente texto para procurar colmatar uma lacuna significativa nos estudos patrimoniais portugueses, propondo uma metodologia de análise aplicável a outros espaços desportivos nacionais. O património desportivo emerge assim não como uma categoria menor ou secundária, mas como um campo de estudo fundamental para a compreensão das dinâmicas identitárias e territoriais da sociedade contemporânea.

Deste modo, a preservação do Estádio do Restelo afigura-se enquanto algo imperativo, não apenas para os adeptos do Belenenses, mas para todos aqueles que reconhecem no desporto um veículo privilegiado de construção e transmissão da memória coletiva. Assim sendo, futuro dependerá da capacidade de articular proteção patrimonial e a vitalidade funcional, desafio esse que se estende a todo o universo do património desportivo nacional, e que exige uma resposta concertada entre instituições públicas, clubes e comunidades.

 

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  1. (PEREIRA, 2024).

  2. (ROSA, 1984).

  3. (NORA, 2008).

  4. Infelizmente, não consegui obter o acesso à C.M.P. 431-Lisboa. Ainda assim, e através da observação da figura.2, é possível perceber onde está situado o Estádio do Restelo geograficamente. O símbolo da bola de futebol representa o objeto de estudo.

  5. (SILVA, 2021).

  6. (ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA, 2025).

  7. (RTP, 2015).

  8. (AMARAL, 2016).

  9. (OS BELENENSES, 2025).

  10. (SILVA, 2021).

  11. (Ibidem, 2021, p.6).

  12. (ROSA, 1984)

  13. Esta revitalização levou à pintura do complexo, e à substituição de assentos que se encontravam em péssimo estado de conservação. No entanto, um aspeto interessante foi a construção de um supermercado Lidl, na estrutura do Estádio.

  14. (SILVA, 2021, p.20).

  15. (UNESCO, 2003, p.3).

  16. Neste caso, é importante fazer uma correspondência entre a religião e o desporto. Quando abordamos festividades religiosas, é natural que se associem conceitos e memórias aos edifícios religiosos, por exemplo. No caso do desporto, é natural que também se associem momentos, memórias e histórias aos espaços desportivos. Existe, deste modo, uma conexão entre o material e o imaterial através dos elementos da nostalgia e do afeto.

  17. Segundo Pierre Nora, um “lugar de memória” é um espaço que é utilizado tanto pelas suas dimensões materiais, simbólicas e funcionais.

  18. (IBER MUSEOS, 2015).

  19. (RAMSHAW, 2005).

  20. (RAMSHAW, 2021).

  21. (FONTAL, 2020).

  22. (SILVA, 2021).

  23. (GIULIANOTTI, 2002, p.85).

  24. Uma SAD é uma sociedade comercial que permite aos clubes funcionarem como empresas. É um conceito que foi introduzido de maneira a trazer mais transparência e profissionalização na gestão clubística, permitindo o acesso a novas fontes de financiamento através da abertura do capital do clube a acionistas.

  25. (SILVA, 2021, p.84).

  26. (CONNERTON, 1989).

  27. (SILVA, 2021, p.54).

  28. (Harrison, 2013, p.14).