1. A génese do Fluxus
Tão dispersivo quanto idiossincrático, o Fluxus, um dos mais complexos fenómenos artísticos surgidos na década de sessenta do século passado, apresenta-se-nos hoje capaz ainda de resistir às mais (e menos) exigentes tentativas de interpretação e categorização. Comum aos artistas que se identificaram com este movimento era a noção de que o domínio ao qual pertencia a arte não devia nem podia ser distinto daquele a que a vida quotidiana convencionalmente sempre pertencera. A realidade deveria então ser interpretada como o lugar-mesmo no qual vida e arte acabariam por ser uma e a mesma coisa, e sobre a qual poderiam atuar de um mesmo e igual modo. Assim, era declarado o fim da cisão entre artístico e não artístico, artista e não artista, vida e arte, sob o instigante ditame “everything is art and everyone can do it”[1]. Tais posições resultaram numa original redefinição e criação de sentidos no que à génese, à apresentação e à distribuição da arte diz respeito. Entre os exemplos mais relevantes encontram-se os conceitos de festival, performance e event[2] explorados pelo Fluxus – casos estes em que o espectador, ao contrário do que até então acontecia, se tornava parte integrante da obra a que assistia, sendo até, por vezes, um agente imprescindível na sua execução e conclusão. Não obstante, não devem estas noções ser bruscamente isoladas dos contextos vanguardistas nos quais (e muitas vezes contra os quais) surgiram – nomeadamente o do Expressionismo Abstracto, o da Pop Art, o do Minimalismo e o do Nouveau Réalisme – assim como dos legados mais específicos a partir dos quais se desenvolveram e foram atualizando, sendo destes os melhores exemplos o do artista dadaísta Marcel Duchamp e o do músico e compositor John Cage.
2. A tríplice histórica do Fluxus
George Maciunas (1931-1978), imigrante lituano nos Estados Unidos da América, e fundador do movimento que se afirmaria como Fluxus, partindo das inéditas possibilidades demonstradas pela ironia crítica dos ready-made de Duchamp e pelas indeterminações e contingências das chance operations de Cage (herdadas do estudo deste sobre o pensamento oriental Zen) começou por explorar a possibilidade de novos modos de hibridismo mediados por aspetos e processos que, provenientes tanto das vanguardas históricas quanto das suas contemporâneas, entendia serem os mais antagónicos ao formalismo estético tradicional.
Tendo isto como escopo, e depois de numa primeira fase ter tentado, em 1960, fundar em Nova Iorque, mas sem sucesso, a revista Fluxus (destinada a um grupo cultural lituano da mesma cidade) conseguiu porém, já no ano seguinte, organizar na AG Gallery, na mesma cidade, o primeiro evento relacionado com o que se viria a tornar o Fluxus, intitulado, neste primeiro momento, Bread & AG. Finalmente, depois deste evento, Maciunas empreendeu todo um programa centrado numa série de festivais e concertos, que, começado em Wiesbaden, em 1962, passou depois por Düsseldorf, Wuppertal, Copenhagen, Paris, tendo terminado em Nice em 1963. Programa que, muito afim aos festivais de música e cultura atuais, ao ter contado com a colaboração de artistas provenientes de todos os cantos do mundo e das mais diversas áreas, logrou colocar definitiva e internacionalmente o Fluxus entre as novas correntes vanguardistas do período do pós-guerra.
Regressado a Nova Iorque em 1963, Maciunas organiza no ano seguinte um conjunto de performances de grupo. O primeiro, em abril e maio, que designou por Fluxus Concerts. O segundo, em junho, a que chamou Fluxus Symphony Orchestra. E, finalmente, um último, ainda no outono do mesmo ano, que teve lugar na Washington Square Gallery. Este primeiro momento, que comummente se considera a primeira fase do Fluxus, terminaria no final do mesmo ano, devido a profundas divergências entre vários membros constituintes, marcadas, inclusivamente, pela saída, sem retorno, dos mesmos artistas.
De 1964 a 1970 desenvolve-se o que se pode notar como a segunda fase do Fluxus, pontuada essencialmente por publicações antológicas como a Flux 1 e Flux Yearbox 2, de cujo total conjunto são estas os mais relevantes exemplos.
Durante os oito anos seguintes, que terminam com a morte de Maciunas em 1978, e que muitas vezes são mencionados como a terceira e última fase do Fluxus, este regressara à sua dimensão mormente performativa, segundo modos que exigiam do público uma maior e, por vezes, indispensável participação e atividade, como se verificou por exemplo em Flux Mass, Flux Divorce, Flux Tours e Flux Games.
Figura 1 – Year Box 2, George Maciunas, 1972.
Fonte: Museum of Modern Art (MoMA).
Disponível em: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2011/fluxus_editions/works/year-box-2/index.html. Acesso em: 12 jun. 2025.
3. Fluxus enquanto teoria estética
George Maciunas, até mesmo antes do estabelecimento do Fluxus como tal, foi sempre refletindo e teorizando sobre a sua sensibilidade e posição artísticas. Nesta sequência começou por defender no seu ensaio Neo-Dada in Music, Theatre, Poetry, Art, apresentado em 1962 no Fluxus concert Après John Cage, em Wuppertal, uma mudança do paradigma artístico que passaria pela criação de uma anti-art[3], a qual, por meio de um maior concretismo e de uma menor artificialidade, antecederia o contexto de total indiferenciação entre o objeto comum e o objeto artístico. No mesmo texto, substancia esta posição, argumentando que “rainfall is anti-art, a babble of a crowd is anti-art, a sneeze is anti-art, a flight of a butterfly, or movements of microbes are anti-art. They are as beatiful and as worth to be aware of as art itself.”[4]
Mais tarde, já em 1963, e depois de terminado o festival em Wiesbaden, Maciunas redige o seu Fluxus Manifesto, onde os conceitos de fusão entre arte e vida por meio da criação de uma anti-art são então explicitamente fundamentados e subsequentemente direcionados ao papel social e político que o Fluxus deveria desempenhar. Usando um método semelhante ao dos Dadaístas, recorre a um dicionário; e, a partir desse, fotografa e cola na folha do seu manifesto oito dos significados referentes à entrada lexical “fluxo”, tendo, desses, destacado termos como “corrente”, “processo” e “fusão”. Nesta senda, manuscreve e sublinha o termo purge, relevando assim a vertente profundamente catártica e renovadora que deveria ser inerente a todo o movimento. Movimento que promoveria, por conseguinte, uma “non art reality to be grasped by all peoples, not only critics, dilettants and professionals” e que, purgando o mundo do europanism, conseguisse “fuse the cadres of cultural, social & political revolutionaries into united front & action”.
Figura 2 – Adaptada de Fluxus, por Hendricks, J. and Phillpot, C., p. 2, 1988. New York, N.Y.: Museum of Modern Art.
Por fim, em 1965, definidos os derradeiros ideais do Fluxus, a sua teorização atinge o que se poderia chamar de estado de síntese, com o texto Fluxamusement, da autoria, também, de Maciunas. Neste texto, é declarado, para além do objetivo de estabelecer “the artist’s nonprofessional status in society”, que “this substitute art-amusement must be simple, amusing, unpretentious, concerned with insignificances, require no skill or countless rehearsals, have no commodity or institutional value”[5].
Esta assumida demanda antitética contra os convencionalismos e institucionalismos artísticos (europeus), designada por Maciunas de europanism, consagra, a par com a sua pretensa união entre arte e vida, uma das mais centrais e importantes características do Fluxus. Pois, simultaneamente à crítica direcionada ao hermetismo burguês de todas as posições (e imposições) artísticas europeias, é não só diferidamente retomado o que antes havia sido já identificado e criticado pelas vanguardas históricas dos anos vinte e trinta[6] – e.g., a presunção da originalidade, a correspondente crise autoral, a crítica à chamada indústria da cultura e obviamente o estatuto do objeto artístico – como são também, ainda que de um modo inegavelmente complexo, reunidas e ao mesmo tempo subvertidas as grandes problemáticas artísticas contemporâneas ao movimento, nomeadamente a crise (classicamente) modernista do médium artístico, a coletivização dos meios de produção cultural, a referida conceção holística da arte e a obsolescência do objeto artístico, bem como as tensões inerentes à sua dimensão enunciativa.
4. A performance enquanto médium artístico
É na senda de uma atitude profundamente ética em relação à arte, que, procurando cotejar ao máximo a crise do médium artístico, o Fluxus descobre e amplia o seu potencial máximo de atuação, por meio do então recém-chegado conceito de performance. A ambiguidade e a ambivalência por este possibilitadas deram origem a um modo de expressão híbrido, capaz de articular diversos elementos através de uma irónica dialogia que, tão corpórea quanto contextual, tão singular quanto interdisciplinar, permitiu criar e negociar fenomenológica e epistemologicamente um dinâmico e indeterminado conjunto de significados entre público e artista, audiência e performer.
Intimamente associados a este paradigma performativo, artistas do Fluxus como George Brecht, Robert Watts e Dick Higgins – partindo da reformulação das noções de simultaneidade de eventos de John Cage, da sagaz teoria arquivística presente na obra La Boîte-en-valise de Marcel Duchamp ou ainda da simplicidade enunciativa de Lighting Piece (1955) de Yoko Ono – conseguiram dar vazão às contingentes, e por isso sempre imprevisíveis, (ir)resoluções subsecutivas à performance, através de um registo performativo de cariz sobretudo linguístico-teatral, que George Brecht designou como event. Reconhecíveis na sua simplicidade e, em muitos casos, literalidade, ambas patentes não só no recurso a objetos mundanos (tais como utensílios de cozinha, peças de mobília, instrumentos musicais, aparelhos eletrónicos, etc.) ou na escrita concisa de instruções performativas, estes events incorporavam as mais desmedidas e inesperadas doses de absurdo, provocação, desconcerto, improvisação, surpresa e, muitas das vezes, humor; muito humor.
Figura 3 – Yoko Ono – Lighting Piece (1955)
(reprodução nossa)
De e entre toda esta heterogeneidade ético-artística foram surgindo as desafiantes estéticas associadas ao Fluxus. Desde a Piano Activities (1959), de Philip Corner, executada em Wiesbaden por George Maciunas, passando pelo Drip Music (1959) de George Brecht, só executado também por Maciunas em 1963, e chegando à Kuba TV (1963), de Nam June Paik, na qual este introduz o vídeo como médium integrante de uma performance musical, a também melófila odisseia do Fluxus não reconheceu limites, como tão bem ilustra a performance de Paik e Charlotte Moorman 26’1.1499 for a String Player de John Cage (1965).
Figura 4 – George Brecht – Drip Music (1962)
(reprodução nossa)
Figura 5 – Drip Music, de George Brecht, executado George Maciunas, 1963.
Fonte: Museum of Modern Art (MoMA). Disponível em: George Brecht. George Brecht’s Drip Music (1962), performed by George Maciunas during Festum Fluxorum/Fluxus/Musik und Antimusik/Das Instrumentale Theater, Staatliche Kunstakademie, Düsseldorf, February 2, 1963. 1963 | MoMA. Acesso em: 12 jun. 2025.
Muitíssimo recorrentes em exibições do grupo Fluxus, as performances e os events realizados a partir de contextos musicais não devem ser interpretados como totalmente arbitrários, pois (para além da clara influência de Cage em muitos dos artistas do grupo e, por conseguinte, a constante revisitação do seu objeto de investigação estética) o próprio conceito de música, os seus instrumentos, a sua hermética tradição erudita e o seu público tradicionalmente burguês constituíam um dos mais evidentes exemplos do elitismo denunciado em tantas ocasiões por Maciunas e outros artistas do Fluxus. Por esta razão, os objetos associáveis a essa mesma tradição eram, para além de alvo de deslocações ou destruições totais, também muitas vezes reutilizados quer em nome dessa nova estética, quer em nome de uma sua nova e atestada função.
5. A linguagem retórica do Fluxus
Com artistas como Ben Vautier, o Fluxus pôde também explorar outras vertentes e possibilidades. Dialogantes com dimensões essencialmente linguísticas, trabalhos como por exemplo Regardez moi cella suffit (1962) e Total Art Match-box (1965) pretenderam deslocar, num jogo de tensões conceptuais cujo âmago era a justaposição das linguagens verbal e visual, a atenção comummente concedida ao artista e à sua obra para o seu expectante público, até então considerado uma entidade mormente passiva e contemplativa. No primeiro dos trabalhos mencionados, essa sua mesma tensão era, como desde logo indicado pelo seu título, desencadeada por uma desconstrução da própria expetativa, a partir da qual se estabeleceria entre o próprio público e a sua função na performance o desarranjo gerado por essa mesma tensão, uma vez que seria apenas necessário que o público realizasse o que em primeira instância já havia realizado, de maneira a poder apreender o que a performance pretendera que de facto se realizasse. No caso do segundo trabalho, uma análoga tensão gerar-se-ia através do rearranjo e da redefinição do público não enquanto espectador da performance, mas antes como seu agente e veículo, visto que essa só verdadeiramente se cumpriria por meio da ação do seu público – que, em concreto, consistia em queimar tudo o que fosse considerado arte, a fim de queimar, em seguida, com o último fósforo da caixa, a própria caixa de fósforos que desencadeara, em primeira instância, todo o processo.
Figura 6 –Total Art Match-Box, de Ben Vautier, ca. 1965.
Fonte: Museum of Modern Art (MoMA).
Disponível em: https://www.moma.org/collection/works/127589.
Acesso em: 12 jun. 2025.
Em ambos os casos (e também no já referido Drip Music, de George Brecht) são facilmente identificáveis as fortes influências das teorias autodestrutivas da arte de Gustav Metzger, colaborador breve do Fluxus. Retórica que enquadrou no Fluxus o que se poderá entender como uma perspetiva recursiva ou até mesmo pleonástica relativamente às temáticas da efemeridade e da obsolescência do objeto artístico, mediante as quais se explorava o conceito de uma arte autodestrutiva enquanto nova e prolífera forma de criação artística.
Fluxus, um realojamento das instituições
Comum também às práticas vanguardistas contemporâneas ao Fluxus, o questionamento do papel das instituições artísticas, assim como a influência destas na organização dos padrões e panoramas estéticos e culturais, foram alvo de enormes críticas por parte do grupo Fluxus. Assumidamente demarcado de perceções realistas provenientes de uma cultura social centrada na indústria do espetáculo e do consumo (como as que eram valorizadas pelos artistas do Nouveau Réalisme) e algo duvidoso quanto às deliberadas posições cínicas que a Pop Art ostentava diante das influências que sofrera desse mesmo tipo de cultura, o Fluxus tudo fez para se autoexcluir dos circuitos pré-estabelecidos pelos museus, galerias e instituições culturais. Contrariamente a todos estes, e guardando mais próximos os ideais da politizada estética do Produtivismo Russo e da estética reificada dos Dadaístas, o Fluxus repensou-se a partir da criação de uma sua própria rede de distribuição e consumo.
Disso mesmo nasce, em 1963, a sua Fluxshop de Nova Iorque, cujo funcionamento seria em tudo comparável a qualquer uma das outras lojas existentes na mesma cidade, se Maciunas não tivesse depois afirmado que esta não vendera, durante todo o ano em que estivera em funcionamento, um único item – de entre os quais se podiam encontrar os mais diversos objetos relativos ao Fluxus: um jornal, como o V TRE, vários Fluxfilms, revistas, livros, as já mencionadas antologias, folhetos e, por fim, juntamente com os surpreendentes Fluxkits (onde se podiam encontrar todo o tipo de objetos), as memoráveis Yearboxes, que eram registos a partir dos quais Robert Morris criara ainda o literal Card File (1962), e que eram, essencialmente, compostas por compilações de events e descrições escritas de processos artísticos.
No entanto, parece ser indispensável a qualquer análise feita a esta, diga-se, institucionalização do Fluxus uma perspetiva que não deixe devidamente de assinalar a sua dimensão irónica, satírica até. Ou não fosse esta uma experiência absurdamente ambiciosa, sobretudo se se tiver conta que só se acabou por materializar em modestas escalas. Pois é de notar que de modo algum chegou sequer a representar um tipo de concorrência às históricas instituições e indústrias existentes, para além de não ter também possibilitado qualquer difusão das suas obras para meios ou públicos que não fossem eles mesmos constituídos, numa maioria de vezes, por elementos pertencentes ao próprio movimento.
Mas outras críticas foram sendo feitas pelo Fluxus ao comportamento das instituições. Robert Filliou, artista francês, com a sua Gallerie legitime (1962), partindo da portabilidade oferecida pelas Boîte-en-valise de Duchamp, recorre a um só objeto – um chapéu – e relocaliza-o conceptualmente através do que pode ser interpretado como uma profunda e cáustica alegoria. Aludindo a todo o conceito de uma galeria de arte num objeto de uso quotidiano que tanto poderia proteger o sítio do corpo onde normalmente se o coloca, como servir-lhe também de adereço, Filliou optou por dispor depois nesse mesmo objeto todo o tipo de anotações, fotografias e elementos outros, (re)agrupando-os numa só composição, resultante numa estrutura conceptual singela e singular, através da qual a tradicional ideia de galeria de arte era sarcasticamente atualizada, segundo uma reificação capaz de fundir os caracteres de um objeto artístico convencional, com os de um objeto convencional, de uso quotidiano, como é um chapéu.
Uma ideologia do corpo
Juntamente com o seu internacionalismo, o Fluxus representa indubitavelmente um dos grupos mais feministas de todo o século. Se comparado com o número exíguo de artistas femininas presentes nas precedentes enciclopédias de história de arte, o considerável número de trabalhos realizados por mulheres artistas como Alison Knowles, Charlotte Moorman, Yoko Ono, Shigeko Kubota, Mieko Shiomi ou Sara Seagull – e principalmente o facto de algumas destas corresponderem a alguns dos mais memoráveis artistas da história do grupo – é indesmentível que o Fluxus se tenha constituído como exemplo de um movimento deveras paritário. Nunca devendo, porém, esta dimensão feminista do Fluxus deixar de ser indagada, também, sob a ótica de um revolvimento do estatuto convencional do artista, a que deveriam ser indiferentes questões como justamente as de género; algo que, aliás, o grupo defendeu sempre de modo veemente, numa total recusa de conceções como a originalidade e a singularidade, a identidade e a autoria artísticas.
Concordantes com esta vertente inevitavelmente feminista são também as intenções e as posições sociopolíticas do Fluxus. Profundamente antitéticas, estas implicavam, como se já afirmou, uma contraposição em relação a qualquer sociedade sustentada nos então vigentes pré-conceitos identitários, de matriz reacionária. Neste sentido, trabalhos como Conversation Piece (1962) e Cut Piece (1964) da japonesa Yoko Ono ou Vagina Painting (1965) de Shigeko Kubota, não só significaram uma leitura crítica sobre a posição e condição sociais e sexuais da mulher como também inauguraram um novo conjunto de explícitas e dialogantes abordagens ao corpo enquanto objeto sexualizado, diferentes, em vários aspetos, das protagonizadas por artistas como, por exemplo, o americano Jackson Pollock (cujo processo de pintura fora sempre associado a uma mitologia masculina do gesto) ou o japonês, integrante do grupo Gutai, Kazuo Shiraga (cujas performances se baseavam sobretudo em processos indexativos, presentes depois também em trabalhos de artistas europeus, como por exemplo os do francês Yves Klein, artista do Nouveau Réalisme).
Igualmente corpóreo, ainda que sob nuances de cariz mais psicológico, Mirror (1963), de Mieko Shiomi, aborda as tensões entre a fisicalidade de um contexto e as perspetivas individuais que, desencadeadas por e nessa mesma situação, podem surgir mentalmente no corpo que nele se posiciona. Marcadamente autorreflexiva, esta performance remete para a experiência quotidiana feminina, que, enquanto observadora das suas realidades exteriores e interiores, acaba por se revelar a si mesma enquanto derradeira testemunha da sua própria pluralidade[7].
Figura 7 – Mieko Shiomi – Mirror Piece (1963)
(reprodução nossa)
Por sua vez, trabalhos como Glove to Be Worn While Examining (1960), de Alison Knowles, no qual a sugestão à típica situação passiva experimentada por um paciente aquando de uma ida a um centro hospitalar para que se proceda à realização de um exame que implique por parte do médico o uso de uma luva de borracha esterilizada, enfatizam mais uma vez a perspetiva holística desta anti-art do Fluxus, assim como a profunda ironia e o humor afiado que lhe devem ser inerentes, principalmente a propósito de referências a fenómenos ou processos biológicos do corpo humano. Alusões que se podem também encontrar noutros eventos de Knowles, ainda que, desta feita, mais tipicamente literais e mundanos como, por exemplo, Make a salad (1962) ou Identical Lunch (1967).
Mas não só artistas femininas Fluxus trataram, enquanto objeto (artístico), o corpo de forma provocadora. O artista norte-americano Benjamin Patterson, durante um Fluxus Concert em Nova Iorque, apresentou uma performance de carácter declaradamente erótico, a que chamou Whipped Cream Piece (Lick Piece) (1964), e que, como o título deixa sugerir, consistia em cobrir um corpo humano com chantili (a artista Lette Eisenhauer voluntariou-se nesta ocasião), solicitando que o mesmo fosse depois, e somente com recurso à língua, totalmente removido por quem do público o estivesse disposto a fazer. Performance que – pela permanente difusão dos conceitos de representação e representatividade e de realidade e realização – se pode ainda hoje considerar um jogos mais irreverentes alguma vez apresentados pelo Fluxus.
Fluxus, uma antítese
A viciosidade circular inerente à articulação entre uma dogmática teorização artística e um subversivo experimentalismo libertário, representa, a par com a atividade performativa exigida a todo um “pathos” passivamente tradicional e soturno, talvez a maior contribuição estética legada pelo Fluxus. A definição da sua ortodoxa teleologia artística, segundo a qual foi criada uma anti-art como processo intermedial de fusão entre vida humana e arte, vaticinara uma sociedade iminentemente revolucionária onde imperaria uma nova sensibilidade estética que, através da sua natureza holística e inclusiva, dispensaria a existência de uma experiência sumamente estética em arte, em nome do que talvez se pudesse designar por um (in)certo tipo de existencialismo estético.
Na realidade, o movimento Fluxus, na procura de fundar e estabelecer essa congregação sensível em que se tornariam indestrinçáveis o objeto quotidiano e o objeto artístico, acabou antes por criar como que uma reificada desordem, um materialismo caótico. Demovida da sua funcionalidade por meio de (re)composições, desconstruções e destruições, toda essa pluralidade de objetos resultou muitas vezes não num conjunto intentado de significados simples e despretensiosos, mas, na verdade, num agregado amorfo de alusões herméticas e referências ininteligíveis, cujo paroxismo se viu também espelhado na exclusividade do grupo e na inacessibilidade do público a grande parte dos seus trabalhos; transformando-se assim o que deveria ter sido uma atitude e um comportamento estéticos exigentes e transformadores numa contentável enunciação de pleonásticos sofismos e retoricismos diegéticos.
Todavia, não deve ser negada a pertinência e a subtileza do sarcasmo delator protagonizado pelo Fluxus. A argúcia do seu seriíssimo humor, com um desferir de lentos golpes na tão desejada esfera do burlesco, conseguiu por vezes devolver ao público cenários reconhecíveis e bastante comuns, ainda que na sua maioria apenas representativos da posição crítica do Fluxus à acomodação dos artistas e suas instituições tradicionais. Nesta senda, são também notáveis a sua dimensão internacional, desprovida das mórbidas mitologias nacionalistas de épocas históricas precedentes (ou, infelizmente, talvez não), e a sua dimensão identitária, que, de um modo provocador e inventivo, conseguiu também contribuir para novas reflexões de ordem política e social.
No entanto, e para concluir, cabe dizer que a criação de uma anti-art por parte do Fluxus não possibilitou – para além da quase institucionalização de um regime artístico essencialmente insurreto e disruptivo – nem a gradual fusão entre arte e vida, nem a prenunciada fundação de uma nova sensibilidade estética e social. Pois o paradoxo estabelecido entre a potencialidade artística inerente a quaisquer seres humanos e a posição contundente e ressentida em relação aos artistas que constituem toda a tradição artística foi responsável pela viciosa retórica circular que o Fluxus não conseguiu resolver e da qual nunca se conseguiu totalmente libertar.
Na complexa proposta artística que o Fluxus nos lega, e partindo da sua natureza profundamente antitética, pode concluir-se que a sua ambição de purgar a arte por meio da criação de uma anti-art pode antes ter implicado que, depois da criação desta, se tenha tornado mais significativa a afirmação da que se quis negar do que a negação que se não afirmou.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1 Foster, H., Krauss, R., Bois, Y., Buchloh, B. and Joselit, D. (2016). Art since 1900. 3ª ed. Londres: Thames & Hudson, p.456.
2 Brecht, G. (1966). Chance-imagery. 1ª ed. New York. p.111
3 Hendricks, J. and Phillpot, C. (1988). Fluxus. New York, N.Y.: Museum of Modern Art. p. 25-27
6 Foster, H. (1996). The return of the real. 1ª ed. Cambridge, Mass: MIT Press, p.28-29
7 Stiles, K. (1993). Between Water and Stone: Fluxus Performance, A Metaphysics of Acts, em In The Spirit of Fluxus. Minneapolis, Minnesota: Walker Art Center, p.79.
- Foster, H., Krauss, R., Bois, Y., Buchloh, B. and Joselit, D. (2016). Art since 1900. 3ª ed. Londres: Thames & Hudson, p.456. ↑
- Brecht, G. (1966). Chance-imagery. 1ª ed. New York. p.111. ↑
- Hendricks, J. and Phillpot, C. (1988). Fluxus. New York, N.Y.: Museum of Modern Art. p. 27. ↑
- Ibidem. ↑
- Ibid. – p. 13. ↑
- Foster, H. (1996). The return of the real. 1ª ed. Cambridge, Mass: MIT Press, p.28-29. ↑
- Stiles, K. (1993). Between Water and Stone: Fluxus Performance, A Metaphysics of Acts, em In The Spirit of Fluxus. Minneapolis, Minnesota: Walker Art Center, p.79. ↑