Primeira entrada de uma rubrica sobre itens literários exóticos, dedicada à obra O Piolho Viajante, de 1802. Texto de Gonçalo Fernandes. Revisão de João N.S. Almeida. Imagens da obra.
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A frase é límpida, contida, depurada, despojada e cristalina. A expressão seca e crua, livre de excrescências verbais, do mesmo modo que não admite uma palavra a menos, também assim não admite uma palavra a mais. Este discurso rude, tão austero na sua economia de meios, dispensa o artifício e os malabarismos da linguagem, e é dessa vigilância constante o triunfo da sua admirável precisão.
O parágrafo que se acaba de ler é o excerto de uma recensão crítica recente. A paráfrase é imaginária, mas não o aparato crítico em que se apoia para dar o seu parecer notoriamente favorável em relação à obra – também ela tão imaginária quanto plausível.
A propósito dos vitupérios habituais contra o recurso ao artifício literário, assim designado de forma bastante simplista, auscultemos rapidamente o significado de artifício no mundo físico. As escadas ou o elevador são artifícios muito engenhosos que nos permitem a deslocação na vertical sem recurso a uma corda, por exemplo; a própria corda é ainda um artifício – apenas mais rudimentar; o vidro é um artifício que nos permite observar a chuva sem nos molharmos; os próprios elementos são recriados artificialmente assim que fazemos fogo para nos aquecermos ou cozinhar alimentos. Poderia objectar-se que um artifício literário difere de um artifício físico pela natureza utilitária deste último em oposição à do primeiro. Mas um texto tem as suas necessidades, e cada um tem as suas. Acontece ainda que escrever é uma excrescência e qualquer texto é um artifício pela simples razão de ser um artifício a sua matéria-prima: a língua em que nos entendemos e desentendemos – a sua representação gráfica, mais especificamente (artifício sobre artifício), quanto mais o objecto engenhosíssimo que lhe costuma servir de suporte: o livro. Na I Jornada Internacional de Poesia Visual, realizada em Novembro do ano passado em https://www.jornadadepoesiavisual.com/, Paula Claire focou a sua comunicação na naturalidade da expressão humana, recordando os primeiros meses de vida do filho: «(…) vivenciar o modo como o nosso bebé apreendia a linguagem e o meu papel nesse processo – nunca tive de aprender nada tão depressa na minha vida! Habituada à linguagem formal do discurso intelectual, que choque tremendo! Uéééin! Uéééin! Uéééin! Uh tititititi, uh chuchuchuchuchu… Uaaah! Uaaah! Matututututu taua, bouba bouba bouba bou. Não é possível conversar com um bebé! A comunicação é pura poesia sonora. E nós, claro, fazemos-lhe cócegas, abraçamo-lo, damos-lhe pancadinhas… Eu não sabia que nós conhecíamos a linguagem dos bebés, mas ela está no nosso ADN. E eu observava a forma como ele mexia em mim, no que eu tinha vestido, sentindo as texturas e emitindo pequenos sons. E quando os seus olhos se concentravam na blusa de malha que eu estava a usar, ele reagia àqueles padrões. As rimas infantis, os versos absurdos, as canções de embalar, todos os programas infantis com padrões sonoros provenientes da fonte materna estão na base de toda a comunicação humana mais complexa e do impulso para a codificação escrita. Quando pomos um lápis na mão de uma criança, como ela adora deixar a sua marca! Os seus escritos estarão em todas as paredes se não estivermos atentos.» Parece certo que as necessidades de comunicação e expressão são naturais aos seres humanos. Porém nem a primeira, nem a segunda, nem a combinação de ambas são condições suficientes para a criação de uma obra de arte.
Do leque de virtudes literárias prescrito pela crítica especializada, uma prega há que se mostra sempre com grande regozijo quando a obra o justifique: a maturidade. E a maturidade é avisada, prudente, avessa ao risco e ao artifício, logo arisca a uma criação realmente livre, imune a infantilidades, razão pela qual se encontra expressamente proibida de rir e algo propensa ao enfadonho, ao já visto. O valor positivo atribuído à maturidade artística (literária ou não), relacionado com uma certa sobriedade solene do estilo, e o valor negativo atribuído à infantilidade, apesar da proveniência etimológica ser a infância, com o descompromisso, a espontaneidade e, amiúde, a inconsequência que lhe são característicos, parecem um tanto arbitrários – efeito, porventura, de uma noção de alta literatura interdita ao humor e, portanto, a salvo, não só de escritores latinos da Antiguidade, como Catulo, Marcial ou Luciano, mas de todos os tempos, de Francisco de Quevedo a Manuel de Lima, de Sebastião Belfort Cerqueira a Charles Dickens, de Mark Twain a Gil Vicente, de Tó Carlos a Lewis Carroll, passando por Issa Kobayashi, Fernando Pessoa, Kierkegaard, Ron Padgett, Fernão Mendes Pinto, Rabelais, Shakespeare, Eça de Queiroz, Gógol, Pierre Louÿs, Mário Cesariny, e por todos os cantores de escárnio e maldizer, e por todos os tributários da dita literatura obscena, despromovendo-os a todos para as melhores páginas da literatura de cordel. E uma noção de literatura a salvo do humor é uma noção de literatura a salvo de toda a crítica que não se limite à agressão directa, logo vácua, ineficaz, maldisposta e quase sempre aborrecida para todos.
À má-fama dos livros que não obedecem ao manual de boas práticas sumariamente descritas anteriormente, a resposta mais simples é a enumeração, acompanhada de uma breve descrição, ao sabor do caos das lembranças e nada exaustiva, de alguns artefactos mais singulares de entre as miríades de casos exemplares que não se lhe subordinam. Na tentativa de mitigar um pouco essa primeira desordem e organizar minimamente esta exposição, comecemos, de plural majestático aos ombros, pelas obras em que as personagens principais ou o narrador são os mais inusitados: de objectos que concebemos sem vida a bichos que suspeitamos não escrevam; de Noé a seres humanos muito simplesmente impossíveis. Livros que dispensem apresentações, como A Metamorfose, de Franz Kafka, não serão apresentados por esse mesmo motivo. Por mais inesgotáveis que sejam as possibilidades de aprofundamento de um objecto artístico, por infinitos os esconsos sobre que deitar luz, o intuito principal deste artigo é a divulgação de outros mais esquivos.
1. António Manuel Policarpo da Silva, O Piolho Viajante

De entre os poucos alunos do secundário que cumpriram a obrigação de ler Os Maias, decerto alguns (pelo menos um) terão sentido, a certa altura, o profano desejo de trocar a obra de Eça de Queiroz pela projectada por João da Ega, As Memórias de um Átomo, a qual, de resto, a personagem nunca viria a concretizar. Ao tempo da escrita e publicação de Os Maias, em virtude das importantes descobertas feitas ao longo de todo o séc. XIX, a começar pela formulação de uma teoria que estabelecia uma relação inequívoca entre o átomo e os elementos químicos, já o átomo começara a deixar de ser apenas um conceito. Eça de Queiroz não ficou, pois, indiferente à novidade e à frescura do assunto, não desperdiçando a ocasião para inocular no espírito de João da Ega as empolgantes fantasias que as digressões de um só átomo podem excitar. Até 1803, ano em que John Dalton, pioneiro da teoria atómica moderna, propôs que cada elemento químico fosse composto por átomos de um único tipo e que grupos de átomos diferentes formariam os compostos, talvez se possa admitir que, no imaginário humano, o antecessor equivalente para ilustrar o ínfimo possa ter sido, por exemplo, o piolho.



Com efeito, datam de 1802 os primeiros cinco folhetos de O Piolho Viajante, Divididas as Viagens em Mil e Uma Carapuças, de António Manuel Policarpo da Silva. O autor apresenta-se, sob anonimato, como mero tradutor da língua piolha para o português. As palavras são portanto as de um piolho que, ao longo de setenta e duas carapuças (assim são designadas as cabeças humanas onde o piolho se instala, correspondendo cada uma a um capítulo), relata e comenta os vícios e as manchas de carácter dos seus hospedeiros. Incumbir um piolho destes relatos, e especificamente um piolho, expõe de imediato, por si só e com absoluta fidelidade, a miséria de um Portugal onde a higiene, por exemplo, não era merecedora de grandes cuidados por parte de nenhuma das classes sociais. Não será ainda inocente a eleição do piolho pelo incómodo produzido no seu anfitrião, uma vez que se trata neste caso de um duplo incómodo: soma-se à tormenta mais trivial (a comichão na cabeça) o transtorno de ver denunciadas publicamente as suas máculas.



Ainda que não haja nunca um visado explícito e concreto, muitas foram as reacções adversas por parte de personalidades notáveis da vida lisboeta daquela época, que assim iam candidamente enfiando, uma atrás da outra, a carapuça que cabia a cada um dos inominados destratados nos textos – facto aliás registado pelo autor, que não terá denominado os capítulos de «carapuças» inocentemente, sem o prever. Apesar disso, em geral, estes folhetos viriam a gozar de um excelente acolhimento, tanto por parte das camadas populares como da classe burguesa, em Portugal como no Brasil, perfazendo a sua distribuição pelo menos os primeiros vinte anos do séc. XIX lisboeta, o que, logo à partida, faz do conjunto de que hoje dispomos uma sátira social e uma crítica de costumes do maior interesse, «e tanto mais», segundo João Palma-Ferreira, «quanto antecede as grandes alterações políticas e morais de meados do século e reflecte um curioso período de transição e crise».



Assim, as deformações morais observadas pelo piolho não variam muito e carecem das nuances que se pode encontrar na obra do supracitado Eça de Queiroz, por exemplo. Não são exclusivas, como é óbvio, nem de um país nem de uma época. «O povo que circula na obra de Policarpo da Silva (…) é um conjunto de gentes sórdidas, torpes e boçais. A miséria, a falta de higiene (…), a estupidez, a maldade, o vício, a brutalidade (…), a cupidez, a baixeza, o ciúme, a desonestidade, a esperteza, a tolice e a imbecilidade parecem ser, enfim, as únicas características das personagens». A vigarice dos médicos e boticários merece especial atenção da inteligentíssima acuidade do piolho, que equipara as suas mixórdias às patranhas da bruxaria. Na cabeça de uma criança, testemunha os excessos de zelo que lhe são dedicados e que acabam por lhe ser fatais. Mas os textos não se cingem ao comentário impessoal de um repórter, porquanto o piolho não se limita a partilhar as suas observações e os seus juízos, mas também a sua história e as suas emoções. Aliás, trata de se apresentar logo na Carapuça I, curiosamente a cabeça de um tinhoso que insistia em untá-la com uma enxúndia (muito do agrado do piolho) na tentativa de criar cabelo e que se gabava, orgulhoso, da quantidade de piolhos que tinha, chegando mesmo a exagerar a situação por pura bazófia. Começa o piolho por contar que nasceu na Ásia, do ajuntamento de uma piolha e um elefante, embora haja quem diga ter sido parido por uma tarântula. Prossegue com alguns detalhes da sua vida familiar na infância, como por exemplo não ter chegado a mamar vinte dias. Também a sua vida amorosa merece, pelo menos, duas referências: apaixona-se por uma lêndea e por uma rapariga indiana de quinze anos.



Não obstante a vasta audiência que ia catando cada novo folheto de O Piolho Viajante, os literatos e os críticos (alvo preferencial da verrina demolidora mas elegante dos prólogos) sempre relegaram a obra para a categoria de literatura de cordel, a qual, limitada a patentear a sociedade em que deveras se movia, não possui de todo nem semelhante alcance crítico nem igual requinte cómico, ainda quando de feição eminentemente popular. Ademais, não é comum encontrar formulações deste tipo na literatura de cordel: «Mas já tão tarde que os dois tinham resolvido fugir, e isto tanto às escondidas que o não sabiam senão aqueles que o sabiam»; ou: «O nosso amor-próprio sempre desculpa os nossos erros e o nosso amor-próprio é a mãe do crime, ainda que muitas vezes se precisa desse amor-próprio, porque é preciso ter mãe.» Perfeitamente imune às estúpidas tentações e encandeamentos da posteridade, abdicando uma vez mais da construção do seu próprio rosto literário, foi o abnegado justiceiro e admirável divulgador da mais obscura literatura portuguesa anterior ao séc. XX, João Palma-Ferreira, responsável também pela criação da Área de Espólios da Biblioteca Nacional, quem operou o resgate de O Piolho Viajante no início dos anos 70, quase cento e vinte anos depois da última edição em livro. Mal-grado os seus esforços, para prejuízo dos leitores mais curiosos, O Piolho Viajante reencontra-se hoje com o destino que lhe coubera aquando das revoluções de 1848: os alfarrabistas.
BIBLIOGRAFIA
António Manuel Policarpo da Silva, O Piolho Viajante, Divididas as Viagens em Mil e Uma Carapuças, Estúdios Cor, 1973.
LINK PARA A OBRA INTEGRAL
https://aeaveiro.pt/biblioteca/index.php?page=13&id=4133&db=