Texto de Ricardo Fortunato. Revisão de Ana Sérgio. Imagem: Projecto de Reconversão Urbana dos antigos Estaleiros da Lisnave, Manuel Graça Dias + Egas José Vieira, 1999.
A forma como se fala de habitação em Portugal não difere muito da forma como se fala de muitos outros bens materiais. Podem ser maçãs, pulseiras de ouro, ou casas, mas a concepção cultural prevalecente. Esta concepção, por razões de raiz histórica que desconhecemos mas que serão facilmente determináveis para os interessados, associa-os não aos processos concretos que trazem esses bens materiais à existência, mas antes à seguinte definição: um bem material é uma materialização do metafísico, proveniente de uma fonte inatingível, e que decorre através de vias obscuras, independente das nossas vontades e acções. Este é um fenómeno sublinhado pelos contornos da pior versão da moral judaico-cristã comum — a do miserabilismo e da comiseração erótica na pobreza e na escassez.
Foi assim que, na semana passada, se posicionaram não só as propostas governamentais para resolver problemas de preço (e só secundariamente de oferta) de bens de habitação familiar, ou seja, casas, mas também praticamente todas as reacções de praticamente todas as escolas de opinião e campos políticos da intelectualidade urbana, além de ramos da actividade prática em geral: na ideia de gerir o que existe, e não de interagir de forma abrangente com os processos que levam as coisas a existir concretamente. Assistimos assim a políticos de carreira, inteligências do direito interessadas em constitucionalismo, profissionais de gestão imobiliária, representantes de proprietários, empreiteiros, investidores, inquilinos, jovens, velhos, classes médias, classes baixas, tudo, emitirem muito balizadas opiniões. Todas essas se enquadravam mais ou menos dentro da mesma tonalidade: estavam tolhidas à partida por uma concepção castrada, cujo principal problema nem sequer reside na noção de direito nem na noção de propriedade, mas sim na noção do próprio bem material, de como ele existe, e o que o leva a existir.
Não é de admirar que, no plano material, cada um destes actores ou grupo de actores opine conforme a própria posição e o próprio interesse. Nada de espantar. Para os inquilinos, compradores e proprietários, são os próprios interesses vitais — de habitação primária, actividade profissional de revenda ou aluguer, e não só — que prevalecem, como é natural. Para os profissionais do imobiliário, os intermediários, tanto faz desde que a actividade se mantenha em curso e não soçobre — ou seja, são até uma parte desinteressada o suficiente para que a sua opinião tenha vigor e mereça atenção. Depois, entre a classe intelectual da burguesia urbana progressista, de modo geral, as opiniões são influenciadas pelos interesses que os opinantes têm na matéria, ou seja, se têm imóveis para arrendar e para vender. Mas para além disso, nota-se em particular nesta classe intelectual urbana o apetite para o reino das abstracções dos princípios universais, para o idealismo das proclamações e para uma concepção do bem terreno quase totalmente ignorante das condições que o permitem existir. É aqui que estas gentes alicerçam as suas convicções paroquiais sobre o que trata um “direito” e o que significa “propriedade”. O que é de admirar, assim, não é que opinem materialmente sobre o plano material em que acham que as suas opiniões vão desembocar, mas sim que criaturas como estas se alicercem tão radicalmente e tão provincianamente numa metafísica impalpável para depois passarem à idolatria das escassas manifestações dessa mesma metafísica — o culto da pobreza e da retribuição, mister dos homens primitivos.
Mas antes de abordar o ponto central dessa concepção metafísica de bem material, é bom notar como tantos destes excursos sobre habitação começam logo por enunciar a sua conversa, com ares de súbita iluminação evangélica, de que, afinal, “não há direitos absolutos”. É absolutamente correcto. Na verdade, a conversa dos direitos absolutos é inócua: não existe nenhum “direito” verdadeiramente absoluto, nem sequer o direito à vida, já que, como se sabe, as forças da autoridade, sob mando do estado, estão autorizadas a retirá-lo em casos que se justifique. O direito à propriedade privada é então um desses direitos (ou seja, todos) que não é “absoluto“ mas que é facilmente aferível na sua expressão concreta, ou seja, também assim tendencialmente absoluto.
Não vale a pena inventar muito neste aspecto: uma propriedade material é, em geral algo de validade facilmente determinável, regida por critérios muito simples e de longa tradição no direito ocidental, e para ser aplicada necessita apenas do aparelho legislativo e eventualmente policial que o garanta. Não é assim com outros “direitos” estabelecidos constitucionalmente não só em Portugal como noutros regimes europeus, como o da educação, por exemplo, que necessita em grande medida de extenso trabalho de terceiros para ser válido.
Nos termos concretos desta noção de “direitos” (sem entrarmos no debate entre direitos positivos e negativos, que não é absolutista), quantos ao “direito à habitação”, e à aplicação do mesmo e da sua conjugação com o da propriedade privada, entramos no reino das abstracções nebulosas que só convidam a uma coisa: ao poder político fazer delas a interpretação que mais der jeito conjuntural em período determinado.
Mas pensando melhor no famoso “direito à habitação“ consagrado constitucionalmente, trata de quê afinal? Alguém sabe? Nem os constitucionalistas: em sentido estrito, de certo modo está praticamente garantido pelas próprias contingências do território nacional, dado que se alguém quiser reclamar o seu “direito à habitação“ não terá grandes problemas em encontrar terrenos e casas minimamente habitáveis ou recuperáveis a preços módicos nas zonas mais remotas e desérticas do país. De facto sob esse prisma poderá ser tão absurdo pensar no “direito a viver no centro da cidade“ como no “direito a viver em boas zonas das áreas metropolitanas“. Mas essa é uma bota (o corrector ia escrevendo “b*sta”, não sem alguma razão) para os constitucionalistas descalçarem.
Porém, uma coisa que parece bem clara nesta selva de generosidades constitucionais é que a propriedade é um direito diferente desses mais abstractos. A propriedade existe com características muito concretas, facilmente aferível e é facilmente asegurável. Pode até haver quem pense, de forma gritantemente ignorante, que só pessoas abastadas, pessoas com muita “propriedade”, têm uma noção forte de propriedade privada, mas tal é absolutamente falso, pois a solidez de tal noção tem mais a ver com o quadro moral em que se existe e que é transversal a “classes económicas”. Outro ponto importante para a escola dos abstracionistas é a ideia de que a propriedade é um direito que pode ser facilmente posto de parte caso noções abstractas de “bem comum” se coloquem como prevalecentes. Este é um postulado absurdo e que encerra em si muitos dos defeitos das teorias “materialistas“ sobre atividade humana.
Muitas das raízes destas fantasias adultas têm raízes mais profundas, quer de momentos recentes quer mais antigos. A efabulação infantil em relação a monopólios oligárquicos relacionados com habitação é feita em relação a casas como poderia ser feita em relação a maçãs ou a arroz. Imagina-se o capitalista especulativo a arrecadar o bem em questão, acumulando-o num armazém qualquer — cheio de arroz ou de casas —, esperando com requintes de crueldade o momento certo para os vender e fazer o máximo de lucro possível. Esta visão de contos de fadas não tem absolutamente quase nada a ver com a maneira como a economia funciona. Tanto o arroz como as casas são um bem perecível, nascem da terra e não do ar, e necessitam de trabalho para serem obtidos. Quanto à fábula do arroz, poderia talvez argumentar-se que alguém compraria e monopolizaria todas as terras para cultivo, cenário improvável; mas o sujeito alarmista teria de alargar a sua imaginação “activista“ para pensar por que raio de razão ou teima é que alguém compraria todas as terras existentes para as ter paradas. Enfim, especulações disparatadas de “activistas“ refletem quase nada da realidade mas muito dos seus pesadelos com “exploradores“ imaginários.
O mais confuso, porém, nesta conversa toda especificamente sobre habitação, não é propriamente a noção nebulosa de “direito”, nem as concepções elásticas sobre “propriedade”: é precisamente algo que antecede e fundamenta na base dos preconceitos equivocados toda esta conversa e nos leva de volta ao ponto inicial: por que razão é que se está a falar de casas como se fossem um bem finito e limitado, quando é perfeitamente possível — existe, aliás, não só interesse mas também dinheiro para investimento nesse sentido — construir abundantemente e em altura habitação, não necessariamente “pública“, nas grandes cidades em Portugal? Receamos que a resposta a esta pergunta tenha a ver com a tendência portuguesa e miserabilista de pensar primeiro em redistribuir as migalhas e só depois em construir e criar, como se estivéssemos sempre circunscritos ao beneplácito da providência. Será esta a resposta correta? Veremos já a seguir como é provável que sim.
É este somatório de convicções pouco fundamentadas no reino terreno e muito devotas da metafísica das boas intenções, dos grandes princípios e da retórica geral, que leva a que num artigo de um constitucionalista, por exemplo, se chegue a propor que, citando, “inconstitucional é manter casas ao abandono“, o que só pode ser retórica barata — a menos que vivamos num estado em que a constituição seja ou uma coisa muito diferente dos estados de direito tradicionais, ou uma palhaçada.
De facto o postulado é absurdo, tanto por conceber que existe a mínima hipótese de inconstitucionalidade em “ter casas vazias“, já desmentido por outros constitucionalistas também — a menos que, como tantas vezes é comum na retórica poética portuguesa, o termo esteja a ser usado de forma meramente figurativa e sem qualquer ligação ao mundo real.
O autor opta também por sugerir, de forma primária e maniqueísta, típica dos ideólogos do direito ou da política, que existiriam dois “lados“ antagónicos na questão, cada um deles correspondente a uma posição moral, e esta é uma maneira tendencialmente errada de descrever relações económicas — um outro vício muito comum do pensamento provinciano à moda portuguesa, ignorante dos aspectos contra-intuitivos com que as ciências económicas descrevem as interações humanas a esse nível. Proporíamos aqui várias leituras para estes autores se acostumarem com as contradições do seu próprio pensamento, caso eles não já as conhecessem e simplesmente se recusassem a aprender.
Voltando ao artigo, é apesar de tudo um exercício bem documentado, claramente incidente sobre questões constitucionais abstratas (e bem sabemos como a frágil Constituição da República Portuguesa é dada a desvios abstracionistas pouco eficazes, redigida que foi num período de fraca ligação à realidade, preocupada mais com cercas ideológicas e menos com princípios perenes e independentes do tempo político que se vivia, entretanto já extinto). Mas o artigo, como tantos outros, e como as propostas enunciadas pelos governos recentes, e que no fundo se encontra no mesmo nível de preconceito que as “bocas” de café ou os disparates ou as coisas acertadas que se digam, tem a qualidade de participar numa discussão necessária, e é bem-vindo. Porém, queda-se na boa tradição portuguesa da cátedra ignorante e contém nada ou quase nada de argumentativamente robusto sobre a situação concreta do património imobiliário em Portugal, da procura e da oferta, e das soluções disponíveis.
Vejamos com um pouco mais de pormenor. Primeiramente, não se conhece a situação em concreto nem as causas a que correspondem as casas devolutas em Portugal. Comenta-se o assunto com o número redondo de “casas devolutas ao nível nacional” sem saber onde estão localizadas. Desconhece-se se serviriam as necessidades da população autóctone atual. Sem ter o mínimo dos mínimos de estatísticas sobre esta matéria, em nosso entender, faltando os dados necessários para constituir uma reflexão informada sobre a matéria, o artigo dedica-se a considerações abstratas sobre princípios constitucionais que já se parecem quase com brincadeira de tão relativos e multi-semânticos que são.
Fala-se assim, com tantas vezes se fala, do “direito à habitação”, da “justa medida”, etc.: isto pode parecer muito giro para professores ou juízes bem instalados, que não sabem exatamente como se constrói uma casa, como surge, qual a raiz do interesse que leva alguém a empreendê-la, onde e como se compra, etc.; ou seja, genericamente, de acordo com o que está escrito na Constituição, acham que existem umas coisas que são “a saúde“, “a habitação“, “a educação“, que são uma espécie de mana divino que brota das árvores, e a partir daí tudo o que os edifícios do direito dos homens ditam é que existe o dever das iluminadissimas e excelentíssimas consciências dos órgãos governamentais ou judiciais de decidirem como distribuírem esta generosidade que a providência nos atribuiu. Para quem conhece os tiques mentais do pensamento erudito português, nada disto é de espantar. Ou seja, entretém-se o órgão do idealismo sem se sair de casa. O exercício, enquanto abstração, é de facto prazeroso e fornece bom entretenimento, principalmente ao autor; mas faltando os tais dados essenciais à consideração sobre o assunto — e que são, sublinhamos, de absoluta necessidade para tecer opiniões substanciais sobre a matéria — vale apenas como brincadeira de miúdos.
No caso particular da situação actual do parque habitacional das grandes cidades em Portugal, onde a procura está a suplantar em larga medida a oferta, este apreço ternurento pela metafísica dos “direitos” conhece mais um exemplar caso de desgraça e desadequação. Assim, continua para muita gente a ser um caso espantoso e pertencente porventura ao capítulo da história das paragens cerebrais como é que numa situação em que existe claramente interesse de investimento, ainda mais estrangeiro, em construção imobiliária, que o grosso da questão seja passar quase todo o tempo a discutir a redistribuição do património existente. Isto é de doidos. Alguém tem explicação para tal bizarria?Nós podemos adiantar o seguinte: faz parte precisamente do costume português, periférico, provinciano, pobre, de achar que todos esses bens terrenos, enunciados muito pomposamente como direitos constitucionais, estão sujeitos à generosidade da providência divina,ao invés de serem moralmente coisas que antes de serem redistribuídas devem ser precisamente criadas. É esta a questão? A tendência para a redistribuição da miséria ao invés da criação de riqueza? Não é hipótese inédita, como todos sabem. É, aliás, a mais provável de todas.
A tendência para ver bens ou fenómenos ou até mesmo acontecimentos materiais como manifestações de uma metafísica insondável, sujeita à superstição dos santos pagãos, católicos ou políticos, não se aplica, como já sublinhámos, apenas aos itens já enunciados, mas até mesmo a instituições tão necessárias à existência humana como por exemplo a educação, a saúde e o trabalho — curiosamente todas mencionadas, com a mesma inclinação para a metafísica da providência, na constituição de Portugal. É uma espécie de pensamento periférico e rural português que se aplica também em relação a uma certa visão dominante sobre qualquer um destes tópicos. O que são estes princípios? São algo que parece que é de importância vital mas não sabe como é que é criado, para que é que serve, etc. O que é a educação? Vem das “escrituras”. O que é a saúde? É uma coisa que nos dizem que nos dão e nos garantem. O que é o trabalho? Não sabem: é uma coisa que se vai pedir a alguém e que nos dê para nos irmos aguentando na vida.
Assim, proveniente de ignorâncias com razões históricas, de inclinações supersticiosas, pagãs ou simplesmente adaptações das mesmas ao quadro mais miserável do judaico-cristianismo, a ideia do português intelectual e urbano médio em relação a, no plano concreto, maçãs, pulseiras de ouro ou casas ou, no plano provinciano-abstracto, quanto a educação, saúde, habitação, é a mesma: são semelhantes a concepções polinésias do mana, sinófilas do qi ou cinéfilas de a força. Estas entendem o bem material como emanação da providência divina, sujeito primeiro ao seu arbítrio e depois à sua generosidade, o que denota esse talento humano para a metafísica benigna que frequentemente resulta em esforços razoáveis de poesia de mediana qualidade e bom sentido de hospitalidade de modo geral, mas que se mostra uma desgraça em termos de quadro mental para lidar com fenómenos económicos — necessidade que tem sido de magna importância nos últimos dois ou três séculos. Não se antecipa nenhum tipo de melhora significativa desta situação nos próximos tempos.