I.
Algo me chamou atenção nos textos de Tolkien, os heróis. Acostumada com o herói grego, o arquétipo basilar da cultura do heroísmo, fico intrigada com os heróis de Tolkien. Não que ele fuja do arquétipo do herói grego, provido de habilidades, aptidões quase divinas, um senso moral ilibado e um profundo respeito por sua terra, sua cultura, seu lar, pois vemos heróis assim em Hobbit com Thorin,o Escudo de Carvalho e os filhos de Dúrin, também em Senhor dos Anéis com Legolas e Aragorn, ou os cavaleiros caçadores de dragão do Reino Pequeno. É possível achar semelhanças também entre Aquiles e Túrin em Os Filhos de Húrin. Túrin vem de uma família aristocrata e conhecida de Beren. Lúthien, tem habilidade com flecha e espada que provém dos ensinos élficos. Luta pela honra e pela família e sofre um episódio de loucura com a morte de Beleg.
Tolkien recorre ao herói grego, mas seu enfoque não está nele. Os heróis de Tolkien não são como Aquiles, ou Ajax. Eles são diferentes. São acomodados, rotineiros, ranzinzas, conformados com seu estilo de vida e cheios de pequenos vícios que por vezes são vistos como saudáveis. Eles não são heróis de berço ou apoiados por uma divindade, não são renomados. Desconhecidos, sem grandes feitos. São bons, caridosos como uma pessoa qualquer, mas tornam-se valorosos pelas escolhas que fazem em circunstâncias difíceis. Eles são dignos de serem heróis devido às situações em que são colocados ou levados como Bilbo Bolseiro e Samwise por Gandalf a viver. Heróis do cotidiano, que fazem pequenas escolhas e atos que os comprometem a um valor maior que eles mesmos.
Posteriormente, se encaixam no perfil de herói que conhecemos. São conhecidos por seus altos sacrifícios, grandes feitos e canções chegam a ser inventadas e cantadas por gerações. Adquirem habilidades, aptidões, a aretê, ou seja, alcançam a excelência.
Faremos uma análise do herói em duas grandes obras de Tolkien: A coleção do Senhor dos Anéis e o incrível Mestre Giles d’Aldeia. Visitaremos o conceito de herói na perspectiva grega, mais especificamente a homérica, para podermos compreender os contrastes e as semelhanças como dois heróis: Samwise e Giles d’Aldeia. Concluiremos com uma retrospectiva e reflexão sobre as possíveis lições desses heróis Tolkienianos.
II.
Primeiramente devemos definir alguns pontos. O primeiro deles é o herói grego, ou, a concepção de herói que herdamos dos gregos. A literatura grega está recheada de grandes heróis. O Homero nos proporciona uma vasta visão de alguns deles. Tanto na Ilíada como na Odisseia, podemos observar esse conceito de herói. O herói, normalmente, tem uma origem aristocrata, filho de um herói. Todos os heróis estão ligados de certa forma à aristocracia. Ele possui uma relação com os deuses, possui um aretê, ou seja, excelência.
Homero entende por aretê as qualidades morais ou espirituais’. Em geral, de acordo com a modalidade de pensamento dos tempos primitivos, designa por aretê a força e destreza dos guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação moral e separada da força, mas sim intimamente ligado a ela.
Não é verossímil que na época em que as duas epopéias nasceram a palavra arete tivesse, no uso vivo da linguagem, apenas o significado estreito dominante em Homero. A própria poesia épica reconhece já, ao lado da aretê, outras medidas de valor. Assim, a Odisséia exalta, sobretudo no seu herói principal, acima da valentia, que passa a lugar secundário, a prudência e a astúcia. Sob o conceito de aretê é necessário compreender outras excelências além da força intrépida, como nos é apresentada, sem contar as exceções citadas, pela poesia dos tempos mais antigos (JAEGER, p.27, 2003).
O herói devia respeitar os deuses, os suplicantes, o estrangeiro e o inimigo, padrões que norteiam a moralidade grega. O herói busca a kléos, a glória, o reconhecimento, alcançando a imortalidade ao ser lembrado pelo coletivo. Ser imortal é ser lembrado e inserido nas canções, como foi Ulisses, que entre Feácios ouve o aedo chamado Demódoco canta as história da Guerra de Tróia, desconhecendo a presença de Ulisses na audiência.
Aparentemente o herói grego pode parecer distante da realidade. Um padrão utópico demais para ser plausível ou até mesmo real. Mas a grande questão do herói não era somente sua formação, origem ou contexto, mas seu caminho, sua jornada. Grandes heróis, filhos de outros heróis, dotados de habilidade e abençoados por deuses, erram, enlouqueceram, se esqueceram de seu dever. Como bem resumiu Northrop Frye,:
Aquiles é mais do que qualquer homem poderia ser, mas é também o que qualquer homem desejaria ser, e faz, o que fariam quase todos se tanta força tivessem. Não é o retrato de um herói individual, mas a força ardente do desejo, da frustração e do descontentamento humanos, algo presente em cada um de nós, parte da humanidade inteira.( FRYE,p. 56, 2017).
Alguns advogam contra o ideal, pois acreditam que criar um ideal é fugir da realidade. Ter ideais tornou-se sinônimo de alienação. A verdade é que o ideal nos traz para realidade. Através da comparação do que seria melhor, vemos as dificuldades no presente. O perigo reside no ideal realista, pois o ideal realista torna o presente somente como uma mera extensão do ideal e faz com o indivíduo que idealiza se acomode com a realidade presente, acreditando que o ideal e o real são iguais, quando efetivamente não o são. O progresso só existe quando existe uma hierarquia, pois se não existirem coisas inferiores e coisas superiores como saberemos que estamos evoluindo, não existirá uma forma de comparar. Sendo assim, o ideal é essencial para o crescimento e desenvolvimento.
As pessoas que dizem que um ideal é uma coisa perigosa, que ilude e inebria, estão perfeitamente corretas. Contudo, o ideal que nos inebria mais é do tipo menos idealista de ideal. O ideal que nos inebria menos é o mais ideal propriamente ideal; que nos torna sóbrios repentinamente, como o fazem todas as alturas, precipícios e grandes distâncias (CHESTERTON, p. 242, 2012).
A primeira vista pode ser contraditório, defender o ideal de herói em Tolkien,se pode aparentar que ele parte em retirada. A questão não é que Tolkien está renegando o herói grego, o seu ideal de herói, mas o encontra em lugares improváveis. Tolkien extrai o ideal de algo que não tem aparência de ideal, pois pode ser altamente ordinário e comum, mas para Tolkien é precisamente no comum que o ideal está. O ideal se mostra em vários lugares. Dizer que o ideal está em outro lugar, não o negar, mas trazer uma nova face do prisma. Os heróis de Tolkien são ideais, porém não inicialmente. Tolkien nos convida a encontrar o ideal, a alcançá-lo independente de nossas raízes, histórias e aptidões. Porque no fim o que realmente importa não é quem o alcançou, mas se pode ser alcançado.
No capítulo intitulado Heroísmo, Birzer mostra os heróis de Tolkien. Ele descreve e mostra possíveis inspirações para Faramir, Aragorn, Gandalf, Frodo, Samwise e outros. Como resumiu Birzer,“ Frodo, Sam, Gandalf, Aragorn e Faramir— representa atos heroicos diferentes. Gandalf é o profeta, Aragorn é o rei “cristão”, Frodo é o sacerdote sacrificial, Sam, o homem comum e Faramir é o homem que conhece e respeita seu lugar na criação de Deus” (p.174, 2023). O foco do estudo não são aqueles heróis que estamos acostumados e que facilmente reconhecemos como heróis, mas sim aqueles que não esperávamos e que por preconceitos heroicos existentes em nossa mente, nós não os julgaríamos serem dignos de nenhuma forma de heroísmo.
Samwise, um hobbit comum. Tolkien nos apresenta Samwise de uma forma tão ordinária que sua primeira aparição é numa discussão no mínimo cafona e desnecessária com Ted Ruivão. Com tamanha inocência, alguns leitores podem até achar que Samwise era infantil, no sentido pejorativo da palavra. De fato, as primeiras impressões que temos de Samwise não são dignas de um herói, aparentemente. Desprovido de qualquer característica física, ou até mesmo de um passado, ou origem brilhante, Samwise parece ser mais um hobbit de qualquer do que um verdadeiro herói.
Durante a jornada de Samwise com seu melhor amigo Frodo para destruir o terrível anel. Samwise é descoberto. Aquele véu sobre o personagem parece cair gradualmente em cada passo até o Monte da Perdição. A lealdade de Samwise é tão clara e espetacular, que chega a ser comparada à de João Batista (BIRZER, p. 157, 2023) e também ao incrível Sir Gawain.
Diferente de muitos heróis, a lealdade de Samwise está firmada em algo mais puro, no caso a “obediência e o amor” como referiu Tolkien (p.14, 1923). Vimos que heróis do passado, buscavam grandes feitos pela kléos, pela imortalidade de seus nomes no coletivos, e por vezes, a raiz de tal anseio fosse o orgulho, a vanglória e até a “obstinação” (ibid.p.14).
Samwise, encontrou uma razão mais elevada para seus atos heróicos, assim como Wiglaf[1]. “ É por isso que o subordinado, especialmente o subordinado imediato, provou ser uma figura tão importante para Tolkien, seguia as ordens por amor e dever, não para ganho pessoal” (BIRZER, p. 158, 2023). É tão evidente, que se torna claro ao longo do texto que Sam preferia mil vezes estar em casa, desfrutando de sua vida comum, do que estar matando Shelob. Ele não estava em busca de glória, e muito menos de renome, não queria viver para sempre, mas viver a porção que havia lhe sido dada. Ele sabia que tinha um propósito e precisava vivê-lo.
O livro inicia contando-nos sobre o Mestre Giles d’Aldeia, uma abreviação de seu nome e o lugar onde a história ocorreu. Não revela o tempo especificamente, mas nos dá dicas. Talvez, estejamos falando do período da heptarquia Anglo-saxônica. Porém, não acredito que o foco seja no tempo decorrido, mas no ocorrido em si. Portanto, Tolkien começa nos contando:
Ægidius de Hammo foi um homem que viveu nas regiões centrais da ilha da Grã-Bretanha. Seu nome completo era Ægidius Ahenobarbus Julius Agricola de Hammo, pois as pessoas eram presenteadas com nomes abundantes naqueles dias, em tempos já bem distantes, quando, felizmente, esta ilha ainda era dividida em vários reinos ( TOLKIEN, p. 21, 2021).
Giles Barba-Vermelha Julius Fazendeiro de Ham, era fazendeiro e de barba ruiva, que faz jus ao seu nome. Tinha um cachorro chamado Ganido. A relação entre Giles e Ganido é marcada por momentos de ira, desprezo, amor e cuidado. Mestre Giles d’Aldeia estava muito confortável e bem-acostumado com a sua vida no campo, a rotina, os seus hábitos tinham um alto valor para ele. A impressão que Mestre Giles d’Aldeia nos passa é a de um senhor ranzinza, acomodado, murmurador e impaciente. Alguns dirão que ele é o velho chato que todos temos na vizinhança. O modo como trata o seu cachorro é constrangedor para o leitor. Como podemos ver no exemplo abaixo:
Socorro! Socorro! Socorro—- gritou o cachorro.
A cabeça de Giles apareceu de novo.
—- Acabo com você, se fizer só mais um barulho!—- ele disse. — O que foi que deu em você, seu idiota? ( TOLKIEN,p.28, 2021).
A forma de tratar de Mestre Giles d’Aldeia de tratar o seu cachorro parece muito distante de um herói. Os heróis apareciam seus companheiros animais, pois muitos deles foram de ajuda para alcançarem a vitória ou até mesmo para escaparem de um situação de morte. Apesar do Mestre Giles d’ Aldeia não aparentar ter nenhuma inclinação para o heroísmo e muito menos para aventura, ele acaba se tornando um herói em Reino Pequeno. Não foi ele quem procurou pela aventura, a aventura foi atrás dele.
O Gigante surge em seus belos campos arados e o Dragão, baseado em verdades mal-contadas, visita sua aldeia. O Rei e seus cavaleiros, que deveriam lutar com bravura e procurar a luta, apenas esperam e podem por vezes soarem como bem interesseiros. Como fica visível nas negociações entre o Crisofílax e o Reino, vejamos o seguinte trecho:
Mas o Rei queria dinheiro.
Ele se despediu de seus leais súditos, porém foi curto e grosso; e cancelou metade dos Títulos do Tesouro. Foi bastante frio com Giles e o dispensou com um aceno
No final do texto, Mestre Giles não somente era herói, mas também rei. Seus feitos serão lembrados. Despreparado, humilde fazendeiro, sem grandes ambições, Giles defende o seu lar, o seu modo de viver, a sua casa que foi ameaçada por um gigante e um dragão. Supostamente a trivialidade de Giles salvou todo o Reino Pequeno, visto que não foram suas incríveis habilidades com o bacamarte ou com a espada Mordedora-de-Caudas.
III.
Nós nos identificamos com os medos, a comodidade, o cotidiano, a falta de bom humor de Mestre Giles, o desejo de aproveitar coisas simples em paz de Samwise, ou de perder a paciência em um discussão frívola que não irá mudar nada. Somos em diversas situações como Mestre Giles e Samwise, e, portanto, temos as mesmas oportunidades que eles tiveram de alterar o curso de nossa história, fazer a coisa certa e lutar pelo nosso lar, pelo nosso pedaço de descanso e pelo nosso propósito. Sentimo-nos compungidos pelos personagens a descobrir o nosso propósito e lutarmos para completá-lo.
Assim o herói de Tolkien é aquele que entendeu o seu propósito e atendeu ao chamado, mesmo desprovido de habilidades heroicas, guarda divina ou berço de ouro. Aprendemos, por conseguinte, que para sermos heróis devemos compreender o nosso chamado e preencher seu objetivo com nossas vidas. É claro, que também outros heróis o fizeram, buscaram praticar o seu chamado, porém quando se esqueciam disso, caiam em desgraça profunda até que voltassem ao estado inicial, puro de más intenções e desejos desordenados de glória e grandeza, por isso alguns foram levados às profundas do Tártaro e do Inferno para serem reavivados como Gandalf foi.
Referências Bibliográficas
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BIRZER, Bradley J. O Mito Santificador de Tolkien: Interpretando a Terra Média. Tradução Márcia de Xavier de Brito. 2.ed. São Paulo: LVM Editora, 2023.
BERDIAEV, N. A verdade e a Revelação. Tradução de Bernardo Santos. Rio de Janeiro: Eleia Editora, 2021.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 10. ed. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2005.
CHESTERTON,G.K. Hereges. Tradução por Antônio Emílio Angueth de Araújo e Márcia Xavier de Brito. Campinas: Ecclesiae, 2012.
FRYE, Northrop. A imaginação educada. 1.ed. Campinas, SP: Vide Editorial, 2017.
GRAFF, Eric S. The Three Faces of Faërie in Tolkien’s Shorter Fiction: Niggle, Smith and Giles. Mythlore, vol. 18, no. 3 (69), 1992, pp. 15–19. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/26813051. Acesso em 22 de outubro de 2024.
HOMERO. Ilíada. Tradução e prefácio por Frederico Lourenço; introdução e apêndices de Peter Jones; introdução à edição 1950. E.V.Rieu.1.ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
JAEGER, Werner. PAIDEIA: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003
TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit. Tradução por Lenita Maria Rimoli Esteves; revisão técnica e consultoria Ronald Eduard Kyrmse; coordenação Luís Carlos Borges. 5.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
TOLKIEN, J.R.R. Senhor dos Anéis : Completa Edição. Martins Fontes, 2000.
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TOLKIEN, J.R.R. Beowulf. A translation and commentary together with sellic spell. Edited by Christopher Tolkien. London Bridge Street, HarperCollinsPublishers, 2016.
TOLKIEN, J.R.R. The homecoming of Beorhtnoth Beorhtelm’s son. Essay and Studies, 6, 1953.
- TOLKIEN. Beowulf. A translation and commentary together with sellic spell. Edited by Christopher Tolkien. London Bridge Street, HarperCollinsPublishers, 2016. ↑
