Hollywood em Linha: A Herança do Cinema Clássico e o Limiar do Milénio em You’ve Got Mail, de Nora Ephron

RESUMO: O presente texto procura reconhecer a postura pró-progresso tecnológico que a comédia romântica You’ve Got Mail (1998), da realizadora e argumentista norte-americana Nora Ephron assume. Sustentado por análise fílmica e contribuições bibliográficas dos estudos artísticos, culturais, filosofia e economia, este estudo tentará compreender o legado do cinema clássico nas formas do filme – uma adaptação de uma peça de teatro da década de 1930, por duas vezes levada ao cinema pela mão de Ernst Lubitsch e Robert Z. Leonard, na era clássica de Hollywood – como via para a construção de um discurso otimista que olha para o novo milénio como um lugar de prosperidade económica e de reabilitação das relações humanas pelos meios digitais.

INTRODUÇÃO

Numa cena do primeiro ato de You’ve Got Mail – longa-metragem de 1998 assinada por Nora Ephron – a protagonista Kathleen Kelly (Meg Ryan) contesta a compra feita por Frank (Greg Kinnear), o seu companheiro: uma terceira máquina de escrever. A discussão é breve e cómica, e funciona sobretudo como via de apresentação da personagem de Kinnear, um colunista autocentrado, e namorado unidimensional que, para o propósito máximo da narrativa, é, enfim, descartável. No subtexto do filme paira a ideia de um progresso tecnológico positivo, necessário e inevitável.

Este estudo preocupar-se-á com o texto que o filme da diretora estadunidense difunde, herdeiro de três produções distintas, duas das quais provindas da gesta (quase centenária) de Hollywood.

Como objeto que pertence à paisagem cultural (indiscutivelmente pop, para uma audiência maciça e plural) dos Estados Unidos no final do século XX, You’ve Got Mail espelha também a consciência dessa posição, no uso que faz de referências literárias, fílmicas e, sobretudo, por ter como base uma peça de teatro húngara do início do século, por duas vezes transferida para o cinema paradigmático de Hollywood, no seu período clássico. Ao reinterpretar uma popular comédia de equívocos e identidades desencontradas – seguindo uma tendência revivalista do cinema dos anos 1990 (Stringer, 2003) – usufrui de uma confortável familiaridade sobre a qual constrói um novo olhar, comprometido com as transformações tecnológicas que marcaram a chegada do novo milénio. Por introduzir a comunicação virtual como dispositivo de avanço da história – no lugar da correspondência por carta, presente grosso modo nos enredos de filmes antecessores, uma evolução coerente com os tempos – o filme parece distanciar-se significativamente das intenções do texto dramático original, preservado nas duas adaptações da década de 1940. You’ve Got Mail partilha o esqueleto de base das outras produções, mas desvia-se ideologicamente delas. Veremos como.

A análise fílmica é o princípio metodológico que dominará a discussão que pretendemos aqui cultivar – a que se acrescenta também a bibliografia de apoio, centrada na compreensão das alterações provocadas pelas tecnologia digitais, e em fundamentos transversais dos estudos culturais. Para darmos azo à descoberta do (sub)texto inerente ao filme em apreço, será essencial perceber as particularidades dramáticas e de forma da comédia romântica de Nora Ephron, e localizá-la no ecossistema da produção cinematográfica da viragem do milénio. Também, como forma de dar sentido ao presente dramático, os temas, as especificidades da mise-en-scène – reforce-se, o filme é um exemplo notável do típico medium subjugado ao domínio da narrativa e responde a todos os requisitos do cinema dito comercial, destinado a um público vasto – e o diálogo que é estabelecido com outros objetos culturais serão os eixos de orientação de um discurso que ultrapassa o filme e olha para um período de marcadas transições, pautado pelo savoir faire do tradicional cinema norte-americano, votado às massas, que ainda hoje domina os cinemas. Os anos que separam a produção de You’ve Got Mail deste estudo criam um espaço de reflexão que permite isolar práticas específicas e olhar com distanciamento para a atualidade que o filme sugere (recortada e extremamente parcial), que, de um ponto de vista vantajoso, pode ajudar a definir pontes com acontecimentos posteriores, a partir de uma lógica de progresso matricial.

O argumento de You’ve Got Mail possui algumas semelhanças, mas também diferenças, com a peça Parfumerie de Miklós László, posta em cena pela primeira vez na cidade de Budapeste em 1937. A história passa-se naquela metrópole e centra-se em torno de duas personagens que se antagonizam mutuamente e que trabalham na mesma loja, alheias ao facto de que trocam correspondências amorosas entre si. A base para a obra de 1998 é esta. Ela revela também notórias afinidades com outras duas produções, duas adaptações cinematográficas da época de ouro do cinema americano: The Shop Around the Corner (1940), de Ernst Lubitsch (com quem Nora Ephron partilha uma clara afinidade estilística) e In the Good Old Summertime (1949), de Robert Z. Leonard. Estas produções serão provavelmente devedoras do texto de base do poeta húngaro. Assim se pode dizer que o texto de László parece ter sido recuperado em dois períodos historicamente distintos: numa década onde a guerra (re)definiu contextos sociais e culturais e, meio século depois, num período de crescente globalização e progressivo crescimento económico. Apesar da distância temporal que separa estas produções, na base da reconstituição da obra do poeta húngaro poderá estar a mesma vontade (ainda que inconsciente) desta: de processar realidades, contrariando ou exacerbando estados de espírito coletivos através do cinema popular. Este cinema poderá ser capaz de construir o pensamento e a memória coletiva e de orientá-los a outros rumos.

No filme, podemos identificar um programa ideológico conivente com a ideia de um pró-progresso tecnológico, para cuja correcta averiguação são essenciais alguns elementos inerentes à composição cinematográfica, como a estrutura e a temporalidade, assim como a composição de planos, cenas e sequências em conformidade com as normas de coesão espacial, clareza narrativa e ponto de vista ideal que define o cinema de Hollywood.

Há autores contemporâneos (imiscuídos nos estudos culturais e fílmicos) cuja produção é fundamental para pensar o impacte político e social do avanço da tecnologia na vida diária. Num texto sobre a introdução da televisão no espaço doméstico, nos Estados Unidos na década de 1950, Lynn Spigel encontra difundido um sentimento de colectiva apreensão quanto às transformações sociais decorrentes dos avanços tecnológicos tidos como necessários na época do pós-guerra (2001/1992, p. 55). A premissa de Spigel poder-se-á ver reflectida no presente, como de seguida veremos. O que é mais, no mapeamento de uma imagem situacional, de uma conjuntura muito particular filtrada pelo aparelho cinematográfico, podem criar-se condições para a emergência de discursos que representam um contraponto à assimilação passiva das ideias do filme em apreço, como as obras de Naomi Klein ou, mais recentemente, de Shoshanna Zuboff.

Haverá também espaço para que Jane Austen, Martin Heidegger, Michel Foucault ou Francis Ford Coppola possam habitar o universo multifacetado de You’ve Got Mail, através de referências diretas em trechos do diálogo, em simples citações, etc. — talvez pensadas para irem ao encontro de um público mais intelectualizado.

CORRESPONDÊNCIA VIRTUAL

Obedecendo à linearidade que a narrativa de You’ve Got Mail preza – herança de um cinema apegado à inteligibilidade, contra a desagregação anárquica do ciberespaço – veja-se o segmento que antecede a primeira cena do filme. Os nomes que integram o genérico inicial surgem sobre uma Nova Iorque digital, fabricada por um qualquer software informático, por onde a câmara virtual deambula em movimentos precisos [Figs. 1 e 2]. Esta liberdade de movimentos de um tipo de câmara que facilmente se associa à dos jogos de vídeo, independente de gruas ou helicópteros, inaugura um plano de novas oportunidades cinematográficas. Neste excerto de cinema digital, para além de uma canção de 1969 na voz de Harry Nilsson, e dos créditos na tela, a palavra tem um peso diminuído. O texto que vai ganhando forma é exclusivamente visual e está fixado na possibilidade de acesso a um espaço totalizado (característica de uma nova visualidade, de estratégias de controlo e vigilância) e na harmonia entre um lugar físico (da carnalidade, da imagem fotográfica, das relações iconográficas e indiciais entre o que é representado e o que existe) e uma virtualidade que define o presente do filme e que põe em causa os limites do real.

Do ambiente cibernético, o filme transita para uma rua no Upper West Side de Manhattan, agora capturada pela câmara, em película de 35mm. O movimento de grua dá continuidade a uma câmara flexível que, num plano-sequência, entra pelo apartamento de Kathleen Kelly – indiciando já um subtexto a respeito da intromissão e quebra de barreiras de privacidade que a Internet comporta – e pousa no seu rosto adormecido. Kelly aguarda a saída do namorado e, como primeira atividade do dia, inicia sessão numa sala virtual da AOL[1] com o pseudónimo Shopgirl.

Do outro lado da linha, num apartamento igualmente ostentoso, está Joe Fox (Tom Hanks), que executa uma rotina semelhante: espera que Patricia (Parker Posey), a hiperativa companheira, saia de casa para cumprir as obrigações de mulher bem-sucedida na metrópole, e entra em linha com o nome fictício NY152. Hanks e Ryan dialogam mediados pelo ecrã dos computadores portáteis, alheios às respetivas identidades e com prazer evidente quanto à expectativa de resposta. Com estas duas cenas introdutórias, concretizadas num ritmo pujante, Ephron materializa os ensinamentos do cinema de Hollywood e da escrita de argumento fundada na clareza de exposição. Aqui, o vocabulário de base aristotélica predomina, tal como explicado nas lições axiomáticas de Robert Mckee (1997), quanto à primazia da narrativa no cinema. You’ve Got Mail passa com distinção nesta empresa, cumprindo todos os requisitos de um argumento estruturado em três atos narrativos, com eventos causadores de mudança que impulsionam a história, figuras arquetipais, arcos de desenvolvimento das personagens detalhadamente definidos e linearidade cronológica, concatenando-se com o progresso tecnológico e económico, onde não há oportunidade de estagnação ou retrocesso.

Os percursos da heroína e do herói do filme são feitos numa agradável manhã nova-iorquina, num filme que redireciona o protagonismo para a figura feminina, ao contrário da peça de László e das obras de Lubitsch e Leonard, e que atualiza o guião antigo para um horizonte cultural que abraça o gesto feminista, mesmo que problemático e mercantilizado. Ao som da banda irlandesa The Cranberries, a Nova Iorque que o filme reproduz é um lugar atrativo, dos comerciantes e dos executivos, do movimento permanente. Kathleen e Joe frequentam, desencontrados, o mesmo Starbucks (não há pudores quanto à exposição de franchises), símbolo do estilo de vida consumista, sem a mínima noção de que ambos percorrem os mesmos espaços à mesma hora, e seguem, cada qual, para os locais de trabalho: uma pequena livraria (Shop Around the Corner, como referência ao filme de Ernst Lubitsch) especializada em literatura infantil – pitoresca, caseira, “autêntica” e familiar [Fig. 3] – gerida pela personagem de Ryan, e um edifício, defronte daquela, em obras, em preparação para uma das livrarias da franquia Fox Books – impessoal, megalómana, superficial, dessensibilizada [Fig. 4] – no caso de Joe Fox.

Aqui, é conveniente interromper o fluxo narrativo para invocar tanto algum pensamento sobre definições de cultura e possíveis ramificações, como os objetos artísticos que antecederam o filme de 1998. A rivalidade Kelly/Fox ecoa o que autores como Hannah Arendt e Dwight Macdonald entenderam como a divisão entre a cultura erudita (high culture) e uma cultura de massas (mass culture), de produção industrial e consumo imediato, análoga a pastilhas elásticas (Macdonald, 1957, p. 59) ou apenas utilizada como entretenimento capaz de preencher tempos mortos (Arendt, 1961, p. 205). Kathleen Kelly e o seu modesto negócio representam a preservação da herança cultural e o atendimento personalizado com base no conhecimento acumulado em anos de experiência. Kelly cita Orgulho e Preconceito e deixa que as palavras de Jane Austen guiem as suas opiniões e comportamentos e, tal como a sua Shop Around the Corner, incorpora o lado feminino, conotado com sensibilidade, autenticidade e respeito pelo próximo, uma das fações em conflito na visão de Ephron (e de László, de Lubitsch e de Leonard). Joe Fox e a empresa imperialista da qual é herdeiro personificam a massificação e mercantilização de tudo. Para os Fox, os livros são uma mercadoria como outra qualquer, cujo único propósito é maximizar os lucros e permitir a expansão de bens. O filme faz um claro juízo moral ao ethos desta família desagregada, onde os divórcios e relacionamentos com mulheres mais novas são uma constante. A Fox Books apela a um consumo ininterrupto e é um agente da homogeneização que Macdonald sinaliza, própria da quebra de barreiras sociais que a cultura de massas promove (Macdonald, 1957, p. 62). Joe Fox faz referências a Coppola e ao universo de Star Wars, corporizando o lado masculino da equação, aparentemente frio e, ao contrário da protagonista, exibe comportamentos dissonantes quanto à sua presença virtual.

Argumentista experiente, é curioso e possivelmente expectável que Nora Ephron tenha optado por colocar livros onde a peça de teatro tinha perfumes, a comédia de Lubitsch carteiras e outros produtos de couro, e o musical de Robert Z. Leonard instrumentos musicais. O comércio é um dos eixos centrais e transversais a todos os textos, porém as especificidades de cada adaptação são sintomáticas da conjuntura em que se encontram. O livro, associado tanto à erudição como ao vazio intelectual, não tem tanto valor quanto objeto físico quanto conteúdo, sendo o dispositivo ideal para as negociações culturais que o filme espelha. Em nenhuma das obras anteriores há esta divisão, sendo que em todos, os protagonistas rivais trabalham no mesmo espaço, sob a orientação de um patrão. Por outro lado, Kelly e Fox são personagens emancipadas, patrões de si mesmos, em consonância com o modo de vida expectável de Nova Iorque, centro financeiro do “Ocidente” no fim do século.

A ubiquidade da televisão e a hegemonia consolidada de Hollywood podem justificar parcialmente as posições de Arendt e Macdonald, atendendo à data em que publicaram duras críticas às alterações de hábitos e ambientes culturais no seio da sociedade americana. Contudo, no mesmo período, Raymond Williams, num quadro teórico marcadamente marxista, contesta a atitude elitista que desacredita o acesso democrático à educação e aos meios de produção como gerador de uma cultura massificada e, portanto, desvirtuada (Williams, 1989/1958). Paradoxalmente, a ideia de uma cultura dessacralizada está próxima daquilo que o filme (que é uma manifestação de entretenimento de massas, na terminologia de Arendt) defende, pela banalização do livro e da escrita. As personagens de Greg Kinnear e Parker Posey, que não existem nos filmes anteriores, são ambas ligados ao meio literário nova-iorquino, ele como colunista de um jornal que conhece a filosofia de Foucault, ela como editora literária de sucesso. Num plano dos diálogos, em You’ve Got Mail, Heidegger convive com o Starbucks, a cultura é banal, define personalidades e modelos de negócio, está em todo o lado e é acessível por todos. E a crer que a intelectualidade de Frank se torna num elemento risível, isto tanto mais se reforça pela constante constatação de que ao longo do filme parece pairar uma certa simplificação ou generalização do conhecimento, e que a heterogeneidade de referências é apenas instrumental.

Fig. 5 | You’ve Got Mail (1998), de Nora Ephron. 00:53:06

Após a introdução do casal principal e dos seus objetivos na linha da história, os acontecimentos fluem como que automatizados, no óbvio encadeamento que as primeiras sequências determinam. O ponto de viragem que preconiza a transição do primeiro para o segundo ato ocorre precisamente aquando da inauguração da loja de Fox, no mesmo quarteirão que a Shop Around the Corner. A animosidade gerada (núcleo de Parfumerie e das adaptações clássicas) entre as personagens principais torna-se um fator decisivo para a resolução do filme e é, ao mesmo tempo, o principal motivo cómico. A partir daí, Kathleen reivindica a importância dos pequenos negócios familiares na paisagem económica e urbana, organiza ações de intervenção nas ruas de Manhattan, aparece em reportagens televisivas [Fig. 5][2] e pede conselhos ao seu correspondente virtual (sem saber que se trata do causador das suas inquietudes), movida não tanto pela questão de subsistência financeira, como pela preservação da memória da mãe, fundadora da livraria. Joe acaba por descobrir a identidade de Kathleen e aproveita-se dessa informação sem a revelar. Apesar de todos os esforços, a Fox Books erradica o negócio familiar de Kelly. Na senda da dissolução destas estruturas de base, os respectivos companheiros (Patricia e Frank) dos nossos protagonistas saem de cena, sem grandes aparatos ou revelações; de contrário seriam obstáculos à concretização do amor entre as personagens principais. Hollywood produz, assim, o desfecho necessário, previsível e obrigatório do final feliz. Depois de várias peripécias, Kathleen combina um encontro com o amigo virtual e recebe com alegria a confirmação da sua identidade como Joe Fox. Indiferente aos antagonismos que se haviam levantado entre ambos, decorrentes da competição gerada ao nível dos negócios, o filme desemboca num plot twist que denuncia a mentalidade do projeto capitalista, favorecendo quem tem poder financeiro, sem grande resistência (Merkle & Richardson, 2003, p. 108) da parte de Kathleen. Desta forma se deixa bem marcada a posição do filme (da realizadora ou da Warner Bros.) quanto à inevitabilidade da supremacia do sistema capitalista, num cenário cultural que é aparentemente plural.

Ora, é adequado assinalar outros pontos de encontro com os guiões que antecederam You’ve Got Mail, pautar os desvios, e circunscrevê-los a conceitos vitais como realidade e virtualidade. Ao concluir o seu estudo sobre a nostalgia, no contexto da transição de um milénio para o outro, Svetlana Boym relembra que “[a]s descobertas da Internet pediram emprestadas metáforas-chave aos discursos filosófico e literário – realidade virtual vem da teoria da consciência de Bergson.”[3] (2001, p. 348). Desta forma, as novas formas de pensamento acerca dos modelos virtuais e das novas tecnologias de informação e comunicação têm um referente (ou vários) que as precede. Ao assimilar a teoria de Henri Bergson, Gilles Deleuze formula o conceito de imagem-tempo, através do visionamento do cinema do pós-guerra e das suas formas e estratégias temporais. No pensamento destes dois filósofos franceses importa a ideia de circuitos que são estabelecidos a partir da dicotomia atual/virtual, que diz respeito a processos mentais e de visualidade óptica, sendo estas expressões hoje, para citar Boym, de uso quotidiano para discernir entre a presença e identidade no ciberespaço[4] e no mundo não mediado pela Internet. Em obras de Godard, Mankiewicz ou Orson Wells, Deleuze identifica planos temporais cuja organização e apresentação em linha cronológica (dos filmes) (2016/1985, pp. 110–113) revela constantes atualizações de imagens virtuais, recorrendo-se ao flashback, por exemplo. Na teoria sobre uma temporalidade própria do cinema, autores como Matilda Mroz (2012) propõem uma articulação do tempo fílmico (duração exata, expressa em minutos e segundos, que o filme tem) e do tempo diegético (dos acontecimentos narrativos) para a emergência de uma terceira camada, abstrata e sensorial, ligada a uma experiência individual e a uma dimensão ontológica do cinema.

Quanto ao filme em apreço, a oposição ou confluência entre atual e virtual (que, de certa forma engloba um movimento em direção ao presente, a que a memória coletiva não é alheia) são materializadas principalmente pela duplicidade na relação de Kathleen e Joe Fox, amigável no plano virtual, inóspita no confronto terreno. Tal dualidade não é própria dos meios tecnológicos. Porém, em ambos os filmes da década de quarenta do século passado e na peça de 1937, Parefumerie, o texto de base, utiliza-se o dispositivo da carta, que trabalha de forma semelhante para todos os casos uma dimensão de virtualidade. É justo pensar-se na correspondência digital como substituto lógico para a correspondência por carta, sem prejuízo para o significado que se tem atribuído às cartas ao longo da história. A tecnologia digital está, no filme, em consonância com o ar dos tempos; é reveladora da passividade com que a transformação tecnológica e sua subsequente assimilação na sociedade é feita, como se imiscui nos espaços domésticos, nas relações humanas, na reestruturação da definição da identidade dos cidadãos e das cidades.

Ainda, quanto às operações temporais, esta comédia romântica revela algumas posturas conservadoras. O tempo diegético percorre as estações do ano, do outono à primavera (o Natal é um ponto intermédio de relevância, até para as adaptações precedentes da história, aliás, uma vez que as lojas comerciais são espaços privilegiados) e, como anteriormente, a linearidade é uma regra, com uma única exceção. Um raro momento de retrospetiva mostra Kathleen, com a loja já despida de qualquer livro ou cliente, relembrando o passado com a mãe – a livraria é uma continuidade da mãe, um resto da sua existência –, a dançar ao som de violinos extradiegéticos, vindos diretamente do cinema clássico [Fig.6]. É um flashback, na medida em que é atualizada uma imagem que antecede o presente da narrativa, mas é também a transposição do pensamento da personagem, dentro da diegese atual, já que Kathleen vê uma memória passar diante de si. A câmara de Ephron oferece o contracampo [Fig. 7] e o aparelho narrativo nunca chega realmente a visitar o passado, que é apenas reverberado pela visualização de uma imagem mental da protagonista. Em You’ve Got Mail o passado é uma entidade abstrata (associada à mãe e à infância) que justifica a atitude persistente de Kathleen Kelly ao longo do filme.

Apesar de herdeira da história do cinema, a história em apreço pode ser considerada como mero recurso para uma intenção maior. O passado narrativo é brevemente referido e chega a ser visualizado e romantizado, mas o filme está ancorado no presente e projeta o seu olhar para um futuro que está muito próximo: o século XXI. Interpretações académicas de You’ve Got Mail distinguem uma atitude nostálgica quanto à recordação de um tempo de otimismo, gravado nos textos clássicos (Morrison, 2010, p. 54), que convive com uma visão utópica de um futuro digital. Esta leitura é válida, mas há outras visões igualmente relevantes, como a da reciclagem de um argumento que veicula eficazmente uma sensação de conforto, em sustentação de uma outra ideia menos profunda: Ephron reconhece o património que carrega, homenageia até o virtuosismo formal do texto, mas não tem necessariamente uma postura nostálgica, na medida em que não ativa uma reflexão sobre essa herança, para além do esqueleto narrativo.

Nos filmes de Lubitsch e Leonard, não há certamente um interesse marcado pela duração bergsoniana, sendo ambos também reféns de ritmos que advêm da découpage clássica, da decomposição do espaço em escalas de planos apropriados que geram um equilíbrio estilístico, durante a década de 1930 (Thompson & Bordwell, 1997, p. 62), e outras estratégias de atenção que resultam numa compressão ou distensão do tempo e proeminência da elipse.[5] Deve-se fazer notar, apesar de tudo, que a consciência de um futuro em “potência” (convivente com um projeto tecnológico de teor capitalista) é exclusivo do filme de 1998.

Considerando o sentido sintomático que qualquer objeto do cinema pode difundir, a respeito de fatores políticos e sociais que lhe são externos, (Bordwell & Thompson, 1993, p. 495), cada uma das versões cinematográficas de Parfumerie desvela (mesmo que involuntariamente) traços do ambiente do qual fazem parte. Em The Shop Around the Corner, as dificuldades económicas e urgência da empregabilidade definem as motivações das personagens, numa tentativa de aproximação ao naturalismo ou mesmo ao realismo social (McCormick, 2020, pp. 258–260), (Doherty, 2021, p. 62), por força de uma década de recessão económica e instabilidade dos anos que conduziram à segunda guerra. A versão musical da história de 1949, de Robert Z. Leonard, intitulada In the Good Old Summertime, exemplifica perfeitamente esta ligação entre a obra e o contexto social que a circunscreve; nela se pretende encobrir a realidade económica desfavorável, apesar de se conservar o valor do trabalho como necessidade incontornável do cidadão comum. Com as canções interpretadas por Judy Garland, uma das maiores celebridades dos estúdios da MGM, e a vivacidade do technicolor, o filme contorna os desígnios menos agradáveis do panorama social, entregando o tom e o foco ao humor e às situações inusitadas. Na versão de Ephron, as dificuldades económicas são praticamente excluídas do discurso. Todas as personagens têm facilidade em movimentar-se pela cidade e a batalha pela sobrevivência da livraria infantil tem como principal motor a memória da infância da protagonista, a preservação da identidade da mãe, e não um intuito capitalista. Como reflexo dos tempos, o filme é um sintoma do otimismo económico de uma parte da população do ocidente na viragem do século, crente no projeto capitalista aliado ao progresso tecnológico como capazes de manter ou fortalecer a prosperidade vivida no momento.

You’ve Got Mail articula de forma eficaz o legado do cinema do século XX – as convenções de género, o ritmo que define as políticas de atenção e visualidade, normas de iluminação e enquadramento que garantem o ponto de vista ideal para qualquer espectador, progressão temporal; a entrega do diálogo e as sequências palavrosas que corroboram os processos de avanço narrativo, a utilização de música extradiegética como forma de condução do estado de espírito e imposição de uma leitura condicionada, ou a distribuição escrupulosa da intervenção das (unidimensionais) personagens secundárias, cada uma com uma função narrativa estipulada – para, apropriando uma cómica e familiar história ficcional, discorrer sobre o estado das coisas no limiar do milénio, assumindo uma posição.

HOLLYWOOD EM LINHA COM O FUTURO

A chegada do novo milénio e a concomitante latência das tecnologias de informação e comunicação digitais geraram uma atmosfera fértil para a propagação de um estado geral de expectativa quanto ao futuro, e mesmo para a previsão de cenários catastrofistas, na passagem para o terceiro milénio. Sucintamente, ao nível das estruturas sociais, culturais e de pensamento, o ano 2000 (Y2K) surgiu acompanhado de preocupações afetivas – que mobilizaram políticas governamentais e empresariais, a níveis internacionais – fundadas na hipótese de os sistemas informáticos não conseguirem interpretar a abreviatura 00 como sequência lógica de 99 e assim poderem causar um colapso brutal ao nível das redes e de outras estruturas dependentes da informatização; assim se gerou paulatinamente a ideia fantasma de um cenário de Apocalipse pós-moderno. Jeremy Anderson, psiquiatra e membro do Conselho Editorial do British Medical Journal em 1999, sintetiza a reação social geral identificada na época, colhida a poucos meses da data :

A ambiguidade do fenómeno do ano 2000 torna-o o maior de qualquer teste de antevisão. A resposta dos indivíduos ao milénio reflete os seus medos inconscientes. A Internet providencia a gestalt. O modo como a nossa sociedade lidará com os próximos seis meses confere uma janela para a alma do século XXI.[6] (1999, p. 465)

É exatamente neste enquadramento que You’ve Got Mail aparece, como produto da sua era, mas também como agente na construção de uma ideia coletiva dos tempos. Como resposta à ansiedade do milénio, o filme mantém o otimismo e abraça a transformação como causa inexorável do ar dos tempos. O influente (e presciente) texto de Richard Barbrook e Andy Cameron, acerca do surgimento de uma “ideologia californiana”, com génese em Silicon Valley, explica o percurso feito desde os anos 1960 – detalhando o pensamento hippie caracterizado pelo liberalismo social, a favor de um sistema democrático e tolerante (Barbook & Cameron, 1995, p. 2) oposto às políticas de Ronald Reagan, e influenciado pela teoria de Marshall McLuhan – até ao crepúsculo do século XX, onde o espírito de resistência dera lugar à “híbrida ortodoxia da era da informação”[7] (p. 2). Segundo os autores, a década de 1990 carrega as ambiguidades do universo digital quanto às propostas de democracia e liberdade e aos impactes no mundo laboral, como um campo vantajoso para o capitalismo tardio.

Como anteriormente foi visto, em You’ve Got Mail os meios eletrónicos assumem um declarado desvio dos dispositivos mais tradicionais (como a carta) e estão circunscritos à comunicação interpessoal; são, no fundo, um complemento aos objetivos amorosos das personagens. No filme, a Internet é necessária, positiva ou, em último caso, inócua. Estes processos de exclusão – que negligenciam, por exemplo, questões de privacidade e segurança, ou o desequilíbrio de género que é evidentemente transferido para a virtualidade digital (Allen, 2000) – fazem parte da estratégia que, de acordo com a “ideologia californiana” que vimos atrás, confia na naturalidade de um futuro híbrido, propício à expansão das áreas de controlo económico. Estes gestos operam também na esfera da globalização e da diversidade demográfica. Quanto à primeira, é oportuno trazermos à colação a sistematização feita por Robert Holton, à época, quanto aos diferentes modelos de receção do impacte dos processos de globalização na identidade cultural (dos objetos, das cidades, das nações) em atenção à chegada do novo milénio. São colocadas três hipóteses: a homogeneização, segmento amplamente considerado que identifica a convergência de práticas e características, e resulta em fenómenos como a hegemonia cultural americana (a americanização, ou McDonaldização), (Holton, 2000, p. 142); a polarização, antítese da postura anterior, que assume as dificuldades para uma verdadeira globalização da cultura e assinala polos de resistência a relações de poder e opressão (pp. 145–147), com prevalência na produção literária, jornalística e artística no pós-11 de setembro; e a hibridez ou sincretismo, que o autor defende como modelo próximo da realidade de certos fenómenos como o jazz, a arte contemporânea e a vida espiritual (p. 149), apesar de notar que uma metodologia que acesse a escala e efetividade desta visão seja pouco exequível.

O cinema, como veículo de expressão artística e instituição cultural de grande amplitude, tem a capacidade de enunciar ou absorver estas três formulações, consoante a visão das estruturas criativas ou de produção. No filme de Ephron – que, como já menionámos, faz um duplo movimento nos contornos da diegese, como objeto cultural que pertence ao ecossistema da produção cinematográfica de Hollywood, o que, consequentemente, contribui para a disseminação de valores, experiências e marcas comerciais dos Estados Unidos da América – a globalização é uma entidade em potência, nas margens das peripécias do guião, que se manifesta silenciosamente, principalmente na vertente de homogeneização: o café Starbucks, o website AOL, a conquista das grandes empresas sobre o comércio tradicional. O extenso livro de protesto No Logo (2000), da escritora canadiana Naomi Klein – que referencia diretamente You’ve Got Mail quanto à representação dos fenómenos das super-livrarias (p. 119) e da cadeia Starbucks (p. 176), apresenta também uma crítica à imposição feroz de instrumentos de marketing em todas as vias de comunicação disponíveis – vê no cinema de Hollywood, dada a capacidade de projeção mundial, um palco para a difusão de identidades das marcas e crescimento dos seus impérios comerciais, pela subliminar intrusão destes elementos no consciente coletivo. Para Klein, os grandes conglomerados, que, no novo milénio, vieram definir a paisagem do entretenimento, são indiscutivelmente poderosos a nível mundial uma vez que integram estrategicamente os meios de comunicação analógicos e digitais directamente nos seus produtos (Schatz, 2009, p. 21); e, ao englobarem os estúdios de produção cinematográfica, transformam as produções cinematográficas em vias para a autopromoção, como se de objetos de troca se tratassem, em comunhão com as sinergias contratuais. A relação AOL/Warner Bros coloca o filme de Ephron no epicentro desta metodologia, própria de uma pretensão homogeneizante da globalização pós-moderna.

A respeito da pluralidade demográfica, numa cidade colossal descrita de forma coloquial como um melting pot (um “caldeirão” de encontros culturais que aponta para um movimento de homogeneização), é notória a ausência de personagens não caucasianas de modo geral em todo o filme e mesmo ao nível do diálogo. A excepção é, porém, Kevin (Dave Chapelle), um amigo de Joe Fox sem traços de personalidade discerníveis, que poderá ser uma tentativa (insuficiente) de representação dessa diversidade. Ainda, a classe social das figuras escolhidas para figurarem no plano é uniforme, mantendo uma certa continuidade com as versões clássicas de que o filme em apreço é herdeiro, não existindo dificuldades económicas assinaláveis para nenhuma das personagens.

Na década em estudo, a transição digital no cinema foi também um assunto premente e refletido nas práticas artísticas de cineastas ao longo de todo o espetro cinematográfico, principalmente no campo do documentário e em intervenções experimentais. Na diegese de You’ve Got Mail o cinema não atravessa um período de mudança. Kathleen e Frank vão a uma sala de cinema tradicional, um hábito cultural inscrito na rotina de qualquer cidadão urbano, também porque o filme, como produto a ser consumido em massa, depende da conservação das práticas de contacto com o cinema, em parte ameaçada com as possibilidades da pirataria digital. Teóricos dos meios de comunicação como Lev Manovich, procuraram entender as mudanças em curso na alvorada do milénio. A rutura com a linearidade imposta pelo movimento da película, que a digitalização permite, reorganiza a relação das obras com o tempo, podendo disto decorrer um certo dinamismo que torna o medium num produto maleável[8] (Manovich, 2001, p. 52) – também as práticas do cinema incorporaram os padrões organizacionais do digital, como por exemplo a perda de um referente na fabricação, através da montagem, de um espaço ou de um tempo contíguos e coerentes, aquilo que Steven Shaviro nomeou “pós-continuidade” (2016), que descura os princípios de coesão.

Excetuando o genérico de abertura, que espelha a revolução digital, o filme é um objeto de cinema tradicional, filmado em película de 35mm e distribuído e exibido pelas vias ainda predominantes em 1998. Visto tratar-se de uma indústria que lida com grandes orçamentos, sujeita a riscos financeiros, os estúdios de Hollywood exigem que as receitas de bilheteira – e a venda de outros produtos transversais aos meios de disseminação de conteúdos, apostados na criação de universos que transcendem os limites dos filmes como peças isoladas – ultrapassem o investimento feito, pelo que qualquer risco tende a ser muito bem ponderado. Desta forma, a digitalização do cinema é outro elemento omitido do mundo de You’ve Got Mail, por não ser relevante quanto à narrativa, nem interessar à gestão dos estúdios. Ainda assim, a aceitação acrítica da transição digital, pelo menos no campo das comunicações entre cidadãos, é o subtexto com o qual o filme está comprometido. Os anos seguintes obrigaram a indústria à adaptação digital, com a crescente difusão dos aparelhos tecnológicos e de outras formas de acesso a conteúdo (imaterial) nas casas:

[T]elevisões, cassetes de vídeo e discos digitais, leitores de vídeo e DVD, jogos eletrónicos, computadores pessoais com acesso à Internet, e dispositivos eletrónicos de bolso de toda a espécie formam um sistema abrangente de perceção e representação cujas várias formas “interagem” para constituir um mundo alternativo e absolutamente eletrónico de experiência imaterializada – mesmo que materialmente consequente.[9] (Sobchack, 2016, p. 19)

O estado da arte que Vivian Sobchack descreve na segunda década do novo milénio configura o estado de alta modernidade que o filme prenuncia. A portabilidade de alguns destes meios de difusão visual é precisamente reflectida na obra de Ephron de fora para dentro, a partir de uma sociedade hiper tecnocrata, pelo que tanto a realizadora quanto o estúdio (Warner Bros.) que acolheu a filmagem se podem isentar de responsabilidades associadas a uma eventual necessidade de denunciar as consequências materiais da utilização e dependência destes novos meios tecnológicos. Em última análise, You’ve Got Mail é também uma comédia romântica, um produto de entretenimento que junta duas das maiores celebridades norte-americanas da época inscritas num registo amoroso de boa disposição e conforto — depois do bem-sucedido Sleepless in Seattle (1993), esta é a segunda aparição da dupla Hanks e Ryan como casal sob a direção de Nora Ephron; pode-se supor que a opção de repetir atores que granjearam enorme sucesso num primeiro filme vem a propósito de uma estratégia de minimização de riscos financeiros para a máquina de produção.

Na verdade, o subtexto, um elemento periférico da metanarrativa, ou da metatextualização, inerente às produções cinematográficas, pode ser entendido como desprendido do controle das rígidas formas do cinema de Hollywood, devido à cumplicidade travada entre o progresso tecnológico e o próprio filme, sintoma daquele. A actualização de Parfumerie para o contexto de 1998 resulta num indiscutível sinal dos tempos, levada a cabo por estratégias de exclusão a partir do texto original ou exatamente pela escolha deliberada daquilo que é colocado de fora dos limites do enquadramento.

O real que se entrosa na artificialidade diegética – própria de qualquer cinematografia, já que todo o cinema pressupõe uma negociação do que é deixado de fora e o que se torna visível ou tácito – encontra vias para a sua auto-imposição.

A cena que dá passagem para o terceiro ato, em que Joe Fox é posto à prova, segundo as etapas de base mitológica de escrita de argumento (se se considerar que há um protagonismo partilhado, e dois percursos do herói), tem como espaço cénico o elevador do luxuoso prédio onde o protagonista mora ainda com Patricia. Já com a Shop Around the Corner fechada, por força do êxito da Fox Books, o casal dialoga à entrada do edifício. Ao ver que o elevador vai partir, e porque o tempo de espera é um tempo de improdutividade, Patricia corre e leva Joe consigo, pedindo às portas para que não se fechem. Enclausurados no minúsculo espaço, na companhia do concierge (Michael Badalucco) e de uma pomposa vizinha (Deborah Rush) que segura um pequeno cão, falam sobre a situação de Kathleen. Inesperadamente, o elevador pára, cenário de terror para as vidas dependentes da velocidade, do progresso; se este pára, assimila-se-lhe a estagnação dos fluxos do capital, esvaziada das possibilidade de contemplação e introspeção. Patricia exige irracionalmente aos serviços de emergência uma resposta imediata. O talento de Ephron, atenta às lições do cinema clássico, faz deste microcosmos um laboratório para o estudo da condição humana no centro do privilégio económico, e um dispositivo narrativo essencial para a saída de cena de Patricia. Na conceção teórica de uma “modernidade líquida” que Zygmunt Bauman aponta como consequência dos avanços do final do século, onde permanentes metamorfoses impedem a consolidação de formas e instituições, o autor afirma que a velocidade obstrui o pensamento, e que a pausa e o descanso são requisitos para pensar (2000, p. 209). O tempo passado dentro do elevador é um necessário tempo de pausa e reflexão, onde cada personagem chega a uma conclusão quanto às suas escolhas. Joe apercebe-se de que a relação com a personagem de Parker Posey não tem futuro; esta reflexão leva a uma tomada de decisão que possibilita, finalmente, a junção amorosa à sua correspondente virtual sem quaisquer impedimentos morais,.

Os gestos de retrospetiva abundam no fim de um século que Alain Badiou apelidou de século amaldiçoado (2007, p. 2), pelos horrores incompreensíveis das guerras, como se os produtores (artistas, escritores, filósofos, jornalistas, criadores de qualquer natureza) precisassem de olhar para trás e fazer um balanço antes de poderem transpor a fronteira do milénio. You’ve Got Mail, com tudo o que elide e tudo o que fabrica, partilha desse conjunto de reflexões que demonstram uma profunda consciência do passado e uma ideia concreta do caminho a seguir no futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aqui se impõe um balanço geral sobre as ideias principais. Pretendemos que a análise ao filme que aqui trouxemos possa contribuir para eventuais reflexões não só à década que viu nascer a obra de Ephron, mas também aos tempos posteriores que a receberam, inclusive aquele em que nos inscrevemos, duas décadas após a primeira exibição.

Devemos ter em conta que o cenário de Nova Iorque em que o filme foi rodado foi radicalmente desfigurado três anos depois, com a destruição de duas estruturas representativas da supremacia financeira da cidade americana. Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 designaram um ponto de ruptura quanto à postura adoptada pelo país em atenção às políticas internacionais e às questões culturais e de visualidade. Marita Sturkern e Lisa Cartwright, entre muitos outros, descrevem a sociedade americana como inseparável da memória dos ataques que, através da difusão televisiva global (2018, pp. 247–250), tendo acesso ininterrupto às imagens, pôde acompanhar um evento catastrófico convertido em sensação visual.

Num exercício especulativo, se, vinte e cinco anos passados, uma ou um cineasta com a mestria e conhecimentos de Nora Ephron tivesse intenção de refazer o texto de László, que preceitos serviriam de bússola nessa empreitada? Problemas quanto à representatividade e diversidade demográfica, como reflexo mais fidedigno de uma sociedade heterogénea, seriam certamente resolvidos. A correspondência quotidiana por e-mail ou em salas virtuais está obviamente em desuso, tal como as cartas em papel estariam em 1998 para travar uma ligação amorosa, hoje devido aos smartphones e mais concretamente às aplicações de encontros. As mensagens são enviadas por automatismo, quase. Assim como na transição para o terceiro milénio, também agora se vive um clima de iminentes transformações e de uma certa ansiedade pelo futuro próximo. O desenvolvimento exponencial da inteligência artificial em praticamente todos os domínios do conhecimento é hoje um tópico que merece ser debatido, contestado e processado (Metz, 2023).

Shoshanna Zuboff apresenta uma visão bem fundamentada das consequências das ações no ciberespaço contemporâneo (2019), o outro lado da inocência de You’ve Got Mail. A académica norte-americana traça este percurso desde o surgimento da Google até ao presente, onde a pegada digital – os dados de navegação, subprodutos da presença no espaço virtual – é acumulada em quantidades colossais e utilizada como mercadoria valiosa, através da qual se configura um sistema de capitalismo de vigilância que condiciona escolhas e, assim, o futuro dos indivíduos. Como poderá então o cinema comercial, de alcance mundial, movimentar-se neste panorama de imprevisibilidade quanto ao impacte da inteligência artificial nos próximos anos? E que dizer da transferência de poder das instituições tradicionais para as grandes empresas que operam no digital? Sem Meg Ryan nem Tom Hanks nos papéis principais e, hoje, não havendo possibilidade de trazer Nora Ephron para trás da câmara, o cinema popular poderia apoiar-se, com bastante probabilidade, na estética computadorizada dos filmes de super-heróis — como parece ser a tendência dos últimos anos. Talvez não seja descabido dizermos que Hollywood esteja hoje como ontem em acordo pleno com as novidades tecnológicas, tendo em vista um otimismo que é, à falta de vocabulário apropriado, unheimlich.

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  1. America Online. Não é irrelevante que, dois anos após a estreia de You’ve Got Mail, tenha havido uma fusão entre esta empresa de comunicações e a Time Warner, detentora dos estúdios da Warner Bros., que produziu o filme. Segundo Jerome Christensen, o sucesso do filme teve peso nesta aliança e Nora Ephron, citada pelo autor, não estaria de acordo com a presença do logótipo da AOL em vários planos, nem a par das negociações (2003, p. 215).

  2. O fotograma escolhido reconhece e antecipa a proliferação de ecrãs como norma da contemporaneidade. A televisão é ainda um dispositivo que predomina no final dos anos 1990 e tem importância narrativa, como principal ferramenta que Kathleen usa para ajudar a sua causa. Num revelador texto de 2001, Seth F. Kreimer constata a crescente influência da Inernet enquanto forma de protesto social democrática e economicamente acessível (pp. 121–125). Ephron remete o ativismo para os meios de comunicação tradicionais, não explorando de facto as possibilidades evidentes do ciberespaço, para além de impulsionador do romance de Tom Hanks e Meg Ryan.

  3. “The discoverers of the Internet borrowed key metaphors of philosophical and literary discourse—virtual reality comes from Bergson’s theory of consciousness.” Traduções do inglês feitas por mim.

  4. Sublinhe-se que o ciberespaço do estudo de Boym e de You’ve Got Mail tem características diferentes daquele que hoje predomina, de acessibilidade imediata dada a proliferação de ecrãs e dispositivos, quase como uma extensão do corpo humano.

  5. Uma análise aprofundada, tanto de The Shop Around the Corner como de In the Good Old Summertime, revelaria possivelmente gestos de subversão à homogeneização aparente do cinema clássico, fosse pela temporalidade ou pelos apontamentos de mise-en-scène. Contudo, avança-se aqui que, o que You’ve Got Mail absorve destes antecessores é o esqueleto formal e as ferramentas cinemáticas.

  6. “The ambiguity of the year 2000 phenomenon makes it the largest projective test of all. Individuals’ responses to the millennium reflect their unconscious fears. The internet provides the gestalt The way our society deals with the next six months will provide a window into the soul of the 21st century.”

  7. “[T]he hybrid orthodoxy of the information age”.

  8. Com um peso significativo não apenas nos modelos de visionamento como na própria análise fílmica e trabalhos de investigação da natureza deste.

  9. “[T]elevision, videocassettes and digital discs, VCR and DVD recorder/players, electronic games, personal computers with Internet access, and pocket electronics of all kinds form an encompassing perceptual and representational system whose various forms “interface” to constitute an alternative and absolute electronic world of immaterialized – if materially consequential – experience.”