O mundo, pela sua natureza decadente, depara-se com as mais variadas forças conflituantes, traduzam-se elas em guerras, pragas, grandes fomes ou, em geral, crises. É então que por vezes nos são enviados heróis –pessoas que, pelos seus feitos foram persistente e entusiasticamente celebrados como heroicos por todo o tipo de pessoas, razoáveis ou não- para nos lembrar que o Homem enfraqueceu, mas que a esperança permanece.
O mundo pagão clássico fundava-se numa moralidade empírica que celebrava a hábil e corajosa utilização da força. Ficaram imortalizados aqueles que assim foram capazes de empunhá-la. Quanto aqueles que não continham tal força, estes eram vistos com indiferença, se não mesmo com desprezo.
Diferente foi a tradição judaico-cristã. Embora os judeus fossem, por breves tempos, uma força a ser temida no Oeste da Asia, e o seu próprio rei, David, uma figura definidora no seu confronto com Golias, os judeus dificilmente foram capazes de fazer frente aos grandes impérios, acabando muitas vezes por serem malsucedidos nas questões que tinham em causa a sua sobrevivência literal, ou, pelo menos, cultural. Os próprios salmos podem ser considerados como a poesia dos fracos e desesperados, dos abandonados e esquecidos. A Israel dos Macabeus era uma resistência aos senhores da guerra gregos, herdeiros do legado de Alexandre o Grande, e os resistentes mortos por estes eram tratados como “santos”. Assim nasceu o conceito de mártir. Conceito este que fora tomado pelos primeiros cristãos, a começar por S. Stefano, que foi apedrejado até à morte, professando a sua fé em cristo até aos seus últimos momentos, abraçando calmamente o seu destino.
Todos os heróis do Igreja primitiva foram mártires. S. Pedro fora, a seu pedido, crucificado de pernas para o ar, de modo a não competir com cristo. S. Paulo, decapitado. S. Lourenço, queimado vivo. S. Sebastião sentenciado à morte por flechadas, mas acabando por não perecer, sendo então açoitado até a morte. Sta. Barbara, sequestrada numa torre e então morta. E em enquadramentos idênticos a lista poderia continuar.
Verdade é, o heroísmo cristão era, na sua fase primitiva, inocente, sofredor e pacífico. Na guerra para repelir o Islão, no entanto, o paradigma heroico cristão mudou. O conceito de cavalaria cristã nasceu e rapidamente chamou a si os seus santos, reais ou imaginários, a realizarem a sua vocação, com armadura, espada, escudo e triunfantes. Mas o herói cristão não era apenas uma pessoa de qualidades físicas; era de metafisicas também. Assim, as virtudes personificadas nos mártires de outrora foram transmitidos e renasceram na conduta cavaleiresca que era tão gentil como corajosa, delicada e reflexiva para como os outros, embora resoluta quanto aos conflitos justos.
Para muitos, Joana de Arc (Jeanne d’Arc) foi a maior heroína de França. Nascida em Domrémy, França – agora chamada de Domrémy-la-Pucelle em virtude do apelido da santa: “la pucelle d’Orleans” (a donzela de Orleães) – em plena Guerra dos Cem Anos. Joana acreditava ser a vontade de Deus a reversão do processo que culminara no Tratado de Troyes, e que era ela a escolhida para restaurar a coroa francesa ao seu legitimo herdeiro: o delfim, Carlos VII.
A vida de Joana foi, apesar da sua magnanimidade, terrivelmente curta. Começou por ver uma luz e a ouvir vozes em 1424, quanto tinha treze anos. Demorou-lhe quatro anos para ter acesso ao delfim. Por fim, este autorizou-a a testar as suas visões. Joana trajou-se de vestimentas masculinas, muniu-se de armadura branca e reuniu um grupo de combatentes para conseguir aliviar a cidade de Orleães do cerco inglês. Alcançou a cidade a 29 de Abril e a 8 de Maio o cerco foi levantado. Outros sucessos seguiram e Joana conseguiu que Carlos VII fosse coroado Rei na sacra catedral de Reims a 17 de Julho. Entre 1429 e 1430, viu-se constantemente envolvida em batalhas contra os ingleses. Em Maio de 1430 fora feita prisioneira em Compiègne, e vendida aos ingleses por 10.000 livres. Foi julgada em Rouen por bruxaria, heresia e, por fim, foi queimada na fogueira a 30 de Maio de 1431, tendo as suas cinzas sido lançadas para o Seine.
Um quarto de seculo após a sua morte, e após seis anos de investigação, Joana foi formalmente declarada inocente de todas as acusações, pelo Papa Calisto III, em 1456. Foi beatificada em 1909 e canonizada em 1920.
A santa tinha como suas origens um meio humilde. Eventualmente aprendeu a escrever o seu nome, mas nunca aprendeu a ler ou a escrever propriamente. Referia-se a ela mesma como “la pucelle”, um nome arcaico que sobreviveu unicamente em razão dela. Desde os treze anos, altura em que começou a ouvir as vozes, que estava certa do seu destino: dar à França o seu legitimo herdeiro e expulsar os ingleses. Manteve-se fiel à sua história original, nunca variou quanto a algum detalhe importante. Sempre identificara as vozes ouvidas como as de S. Miguel, Sta. Catarina, e Sta. Margarida. Era impossível movê-la de tal narrativa, fosse através de ameaças ou ardis.
La pucelle não tinha qualquer vaidade. Não existe qualquer imagem contemporânea sua, pois a mesma recusava-se a sentar-se para que lhe pintassem o retrato. Sabemos, contudo, que era seu costume trajar a típica saia vermelha utilizada pelas fazendeiras de Lorena até à Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, começou a utilizar elementos escarlates e verdes, as cores da casa de Orleães, para que fosse distinguida em batalha. Utilizava ainda uma armadura branca completa, sem brasão.
Os soldados admiravam-na pela sua modéstia, habilidade e discrição com que realizava as suas funções naturais. Durante o período em que permaneceu em batalha, nunca houve qualquer tentativa de sedução ou violação por parte de franceses ou ingleses, mesmo depois de capturada. Tal não se dava por, como alguns sugerem, Joana ter sido supostamente malparecida ou pouco atraente. Soldados em “necessidade” abusariam de qualquer mulher, independentemente de idade ou aparência. Havia, sim, uma certa aura sobre ela que fazia com que os soldados a respeitassem. Existem testemunhos de soldados a referir não sentirem qualquer tentação carnal quando perto dela. Contudo, não existem testemunhos ou sugestões de que Joana fosse pouco feminina. O seu pajem, Sieur Louis de Conte, que a tinha na mais alta estima, testemunhou muitas vezes vê-la em lagrimas. A sua voz era feminina. Após a batalha de Patay, a 8 de junho de 1429, deitou a cabeça de um soldado inglês mortalmente ferido nos seus joelhos; certificou-se que este se confessava e reconfortou-o até ao momento da sua morte.
Joana foi ferida duas vezes em batalha. Na primeira vez, cravara-se-lhe acima do peito esquerdo uma flecha; retirou-a com as próprias mãos e diligentemente voltou à ação. Na segunda, foi atingida na coxa por um arqueiro que gritava “Paillarde! Ribande!” (este, pelos vistos, não era inglês!). Quando sob custodia, fora torturada e maltratada, mas respondia sempre de forma estoica. Aquando na pira, chamava repetidamente por Jesus. Existe um testemunho confiável de que John Tressant, secretário de Henrique VI, exclamara enquanto Joana morria: “We are lost! We have burned a saint!”
Os franceses sempre culparam os ingleses pelo que aconteceu a Joana. Mas se o que aconteceu foi algum tipo de crime, este foi cometido pelos franceses. Os dois juízes foram Pierre Cauchon, bispo de Beauvais, e o prior dominicano de Rouen, Jean Lemaistre: ambos franceses. Hoje temos acesso à lista completa de todos os que participaram no julgamento: 1 cardial, 6 bispos, 32 doutores de teologia, 16 licenciados em teologia, 7 doutores de medicina, e outros 103. Destes todos, apenas 8 eram ingleses. O processo foi, de várias maneiras, uma encenação, uma vez que Joana não teve direito a conselho nem lhe foi permitida chamar testemunhas. Ademais, não lhe foi concedida a possibilidade de recorrer ao papa, possibilidade essa atribuída a qualquer condenado.
O trágico destino da Donzela de Orleães agraciou com um fino brilho de nobreza a última fase da Guerra de Cem Anos, que de outro modo teria sido apenas mais um episodio trágico e desprovido de alma na história europeia.
Vale, contudo, referir, que enquanto os ingleses imortalizaram os seus heróis, como fez Shakespeare com Henrique V, uma das figuras principais da Guerra do Cem Anos, os franceses falharam em fazer o mesmo com Joana.
Para começar, houve um fracasso por parte da realeza. Carlos VII, sempre demonstrou pouco interesse por Joana. Deu-lhe pouco apoio; nunca esteve presente nos campos de batalha; nunca agradeceu à santa por lhe ter restaurado a coroa; prestou pouco ou nenhum contributo para ajudá-la a restaurar Paris (algo que ele próprio não foi capaz de fazer); não se mexeu para a resgatar após a sua captura, nem tampouco protestou a sua condenação ou tentou reverter o seu veredito. A demora de mais de um quarto de século para reabilitar o processo foi, provavelmente, significante. O próprio veredito final foi tremido: não declarou Joana como mártir nem que a mesma se manteve fiel à fé católica; declarava apenas que os juízes tinham agido de maneira imprópria. No entanto, nenhum dos juízes foi condenado ou sofreu qualquer tipo de represálias. Os reis franceses, na altura, exerciam uma forte influência em Roma, onde eram chamados de “sua majestade mais cristã” (Rex Catholicissimus). Porem, nenhum pressionou para a consagração de Joana. Tal feito ficou reservado à Terceira República, que a declarou como a segunda patrona de França.
Se a França, desde o ingrato Carlos VII em frente, se mostrou indigna desta grande mártir patriótica, é algo que não nos cabe decidir, tanto que Portugal tem o seu quinhão de heróis desprezados, especialmente nos dias que correm. Mas verdade é: Joana de Arc habita e alimenta o coração de muitos, não só franceses, e o espírito de todos aqueles que acreditam em santos ou em heróis.