Justiça Social e IRS: Pela Progressividade Indireta

Progressividade ou proporcionalidade em sede de irs, no âmbito da justiça social? Um ensaio para uma Progressividade Indireta. Texto de MIGUEL FURTADO[1]. Palavras-Chave: IRS, Progressividade, Proporcionalidade, Estado Social, Justiça Social

“O poder de tributar envolve também o poder de destruir”

(John Marshall, Suprema Corte Americana, 1819, Mc Culloch v. Maryland)

A finalidade prioritária do Direito é a realização de um ideal de Justiça, constituindo esse um objeto para que esta seja efetivamente possivel de alcançar . Mas, num Estado de Direito de cariz social, como é o caso do verificado em território português, o ideal de justiça deverá necessariamente referir-se a um âmbito de natureza coletiva devendo estipular-se deste modo, um ideal de justiça social.

Contudo, num Estado de Direito de características democrátivas e enquadrado numa conjuntura europeia, cujos pressupostos provenientes da Revolução Francesa necessariamente implicam os princípios da liberdade e igualdade, como se deverá entender o significado de “justiça social”?

Esta “justiça social” deverá verdadeiramente ser alvo, de um modo livre e pragmático, de uma discussão científica em benefício de toda a sociedade em que nos encontramos integrados ou, “à contrario” e procedendo falsamente a um argumento democrático, encontrar-se à partida já inquinada de limitações aparentemente garantísticas de certas franjas da população, presumivelmente mais afetadas pelas dificuldades? Eventualmente até, em contrariedade com o princípio da universalidade, que também dispõe, à semelhança dos princípios da liberdade e igualdade, de força constitucional?

Assim, pretende-se na esfera deste ensaio, analisar a interpretação que deverá ser realizada, nos termos estatuídos pelas disposições normativas, relativamente ao conceito em causa.

Deverá, pois, possuir uma acepção de teor mais restrito, relacionada somente com quem possua uma menor capacidade de criação de riqueza e, portanto, com maiores dificuldades em manter condignamente um mínimo de qualidade de vida e bem-estar, ou, mais lata e de esfera mais abrangente, extensível igualmente aos outros segmentos populacionais da sociedade?

Interpretação esta que, na nossa opinião, deverá considerar, além dos vários princípios jurídicos como os da Dignidade Humana, da Universalidade ou da Igualdade, a análise apreciativa material de algumas noções de domínio jurídico-político como “sociedade”, “Estado” ou “cidadão” e a sua mais adequada percepção, em correlação com vários conceitos de vertente jurídico-económica casos das eficiência e equidade, dos trade-off, custo de oportunidade, crescimento económico ou do princípio do incentivo.

Mas, em consonância com a interpretação a implementar, constitui necessariamente referência primacial, na prossecução de uma “justiça social”, a existência de um Sistema Tributário apropriado, que permita a sua viabilização. Deste modo, num Estado de Direito com características de âmbito comunitário, que premissas devem ser cometidas a nível tributário, para que este propósito de justiça se considere executado?

Diga-se aliás, que a delimitação da estrutura tributária deverá ser o pilar essencial e indispensável da observância das várias tarefas fundamentais pertencentes ao Estado, inevitavelmente com uma função primacialmente social, quer a nível direto através do desenvolvimento dos seus fins de natureza financeira como os da estabilidade económica, redistribuição da riqueza ou crescimento económico, quer ainda de um modo indireto, com a satisfação conveniente das necessidades colectivas, através da disponibilização dos vários tipos de bens, públicos e semipúblicos.

Estrutura tributária esta que, adequadamente delineada, permitirá a concretização dos direitos, liberdades e garantias bem como dos direitos económicos, sociais e culturais estípulados na Constituição, que, em menor ou maior intensidade, respetivamente, estarão dependentes da sua eficiência e consequentemente, das receitas públicas arrecadadas pela mesma.

Nestes termos, qual a análise jurídica apreciativa de “justiça social” que deverá ser exercida? Deverá de imediato, contemplar destacadamente um propósito mais relacionado com a questão equitativa de redistribuição de riqueza e relativa às classes sociais mais desfavorecidas? O que proporcionará impreterivelmente, como efeito, uma decorrente secundarização estatal a quem consiga usufruir de maior capacidade de criação de riqueza, visto a prevalência jurídica interpretativa se basear nesta hierarquia normativa discriminatória?

Ou, em sentido antagônico, será mais salutar socialmente praticar-se uma ponderação mais equilibrada, que, sem prejuízo dos mais desamparados, não hostilize, tanto por razões sociais mas igualmente económicas, os que desfrutam de maiores possibilidades de produção?

Deste modo, com base na apreciação a efetuar, em que perspectiva se deve indagar os conceitos de Estado, Sociedade, Cidadão, necessidade colectiva bem como dos princípios da universalidade e da igualdade tributária? Numa visão parcial e de preponderância para aqueles que eventualmente possuem maiores dificuldades para verem satisfeitas as suas lacunas, ou de um modo mais amplo, onde os preceitos normativos pressupoem que uma intervenção pública tenha uma dimensão de alcance mais geral?

E esta proporção mais geral não assegurará por razões económicas, além de uma concepção mais harmoniosa da estrutura social, maior criação de riqueza e, por conseguinte, através da arrecadação de receitas públicas, maior retorno financeiro ao Estado, o que proporcionaria a possibilidade de uma maior eficácia na progressão das suas políticas sociais?

Sendo que, para nós, o tributo “imposto” e, preferencialmente, o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, ocupa a função mais relevante na delimitação das questões levantadas, tanto numa vertente jurídica, mas similarmente ética, relativamente à organização apropriada de uma sociedade de direito democrática e relevada de reais preocupações sociais.

Primeiramente, porque o imposto é uma contribuição da sociedade para o benefício da própria comunidade, no desenvolvimento dos seus intentos públicos, e deve ser percepcionado como tal, o que presentemente, com o regime atual, não se verifica, constituindo sim, para um elevado quinhão da população, simplesmente um ónus e inclusivamente para muitos, uma sanção.

Ou seja, os cidadãos que conseguem alcançar, fruto normalmente dos seus mérito e esforço, certos níveis de criação de riqueza, não percepcionam a produção de quaisquer efeitos sociais e económicos práticos de um pertinente aproveitamento em proveito da sua sociedade mas, até pelo contrário, de uma propagação do ócio e de injustiças patrocinada pelo próprio Estado devido à abusiva tributação observada, em prejuízo de alguns e em benefício de outros.

Seguidamente, porque o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares envolve os rendimentos adquiridos direta e prioritariamente pelo esforço pessoal não só no imediato do seu trabalho, mas, também, dos sacrifícios, intelectuais, físicos, de disponibilidade temporal, familiares e igualmente financeiros, realizados quer no presente, mas igualmente no passado, aquando do incremento do seu capital humano operando porquanto, inadequadamente, como um custo de oportunidade.

Assim, com base na análise constitucional e da demais correspondente legislação relativa ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, bem como da evolução histórica e estudo comparativo dos correspondentes modelos de tributação existentes, será relevante investigar se este tributo se encontra devidamente ordenado no âmbito das suas finalidades normativas e prioritariamente no da mais adequada justiça social, idealmente invocada a nível jurídico-político e, mais nomeadamente, a nível da sua classificação, relacionada com a respetiva forma de cálculo.

Ou seja, este imposto, que se encontra disposto em Portugal sob o formato da progressividade, deverá manter-se constituido deste modo ou seria mais apropriado a sua configuração para um modelo alicerçado na proporcionalidade?

E esta mutação beneficiaria os objetivos preceituados juridicamente para este imposto ou prejudicaria eventualmente a justiça social e, consequentemente, o “Welfare State” pretendido e relacionado com as correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, por violação normativa do Princípio da Igualdade Tributária?

Seria ainda necessário verificar-se alguma revisão constitucional para a aplicação da proporcionalidade em território português, o que dificultaria o seu enquadramento jurídico, ou não existiria esta dificuldade?

Para nós, a questão da progressividade em sede de IRS é uma falácia política. Obviamente que a situação é passível de análise segundo vários contextos e a progressividade a curto prazo, com a existência de vários escalões, pode aparentar possibilitar um efetivo combate às desigualdades sociais no imediato, mas, a longo prazo, parece-nos que, com um modelo de proporcionalidade, os proveitos sociais serão maiores.

Sendo uma obrigação funcional do Estado compreender, sem condicionalismos de qualquer ordem, se a preferência deve basear-se numa sociedade do “politicamente correto” e do “faz de conta”, mas com efeitos economica e socialmente limitados, ou, se pretendemos alcançar uma sociedade verdadeiramente mais justa e produtiva, onde ninguém, de modo universal, se sinta defraudado das suas expetativas, fruindo realmente de incentivos para contribuir.

Já que, conforme anteriormente referido, não nos devemos nunca esquecer que o tributo não é uma punição, mas um contributo para manter ou incrementar o nosso bem-estar e qualidade de vida, enquanto sujeitos de uma determinada área geopolítica.

Nestes termos, o debate científico deverá contemplar o equilíbrio propício entre os conceitos económicos de eficiência e equidade, provocando inclusive e impreterivelmente uma acertada ponderação regulatória tributária sobre o termo eficiência.

Este equilíbrio provocará a produção de uma maior riqueza, que permitirá consequentemente uma maior redistribuição num sentido lato, já que abarcará mais estratos sociais e, desta forma, uma maior qualidade de vida e bem-estar universal. Todavia, assiste-se tradicionalmente na área geopolítica portuguesa, onde se inclui o raciocínio tributário, a uma preocupação prevalente e até eventualmente demagógica, sob o significado de equidade.

Sendo que, no dispositivo atualmente aplicado, de progressividade em sede de IRS, os mais desfavorecidos patrimonialmente, praticamente não pagam imposto porque não conseguem criar riqueza.

Por outro lado, aqueles que conseguem ser mais produtivos, devido à abusiva carga fiscal, que já viola há bastante tempo as regras da Curva de Laffer, em vez de beneficiarem coletivamente com os seus comportamentos a sociedade, ou praticam fraude e evasão fiscal, ou decidem trabalhar menos por não ser compensador despender esforço a partir de certo montante remuneratório.

Podendo outra das consequências negativas da abusiva carga fiscal ser a deslocalização dos investimentos para outros territórios, em prejuízo da eficiência e da riqueza não criadas e que favoreceriam o nosso pais.

Assim sendo, quem na prática, injustamente, suporta sempre a progressividade do IRS, é a classe média que trabalha por conta de outrem. Não se deve deste modo invocar, como alguns tentam fazer, que existe justiça social quando apenas uma parte da população e sempre a mesma, paga imposto.

Nem quando teoricamente se criam escalões relativos a rendimentos de trabalho mais elevados, com valores percentuais superiores a metade das receitas obtidas, visto que, quando se fala de justiça, esta deverá consignar todos e não somente alguns, supostamente mais pobres, que acabam identicamente por serem lesados.

Diga-se aliás, que esta ordenação jurídico-política prejudica a própria sociedade, através de uma ineficiência económica e consequentemente social, porque provoca um menor aproveitamento da riqueza que poderia ser gerada ou utilizada, afetando a equidade, tão ironicamente salvaguardada pelo modelo em vigor.

Nestes termos, o regime da proporcionalidade defendido por nós, que se refere à percentagem a pagar, mantém contribuições superiores para quem aufere maiores rendimentos uma vez que, quem recebe mais, continua igualmente a participar financeiramente mais, à semelhança do sucedido em sede de IVA (que funciona proporcionalmente).

Continuando-se deste modo a respeitar o princípio jurídico da igualdade e contribuindo significativamente para o trágico combate à fraude e evasão fiscal, na medida em que diminuiria consideravelmente o incentivo para este drama social e financeiro.

Provoca também aumento da produtividade, por passarem a serem compensatórios o esforço e a disponibilidade daqueles que são mais produtivos, com consequentes investimentos pessoais e financeiros, acompanhados necessariamente de subsecutivo crescimento económico e criação de maior riqueza social, que posteriormente afectará igualmente de forma positiva os mais desfavorecidos.

O próprio Estado, com o abaixamento substancial da fraude e evasão fiscal, poderá gerir mais adequadamente os seus recursos humanos, dado que, diminuirá o peso da máquina fiscal, que não carecerá de ser tão complexa, o que provocará um menor custo, recebendo ao mesmo tempo maiores receitas tributárias, tanto pelo incentivo ao pagamento como pelo mencionado crescimento económico.

Proporcionalidade esta que, à semelhança do IVA, poderia encontrar-se dividida em alguns escalões, o que a nível jurídico se enquadra no estípulado na respectiva legislação referida por ser para todos os efeitos práticos, uma progressividade indirecta.

Sistema proporcional, que poderia ser acompanhado sim, por uma progressividade através de taxas, casos por exemplo da utilização de um serviço público hospitalar ou universitário. Eventualmente ainda, a proporcionalidade dos rendimentos de trabalho do sujeito passivo poder ficar dependente de certos pressupostos relacionados com investimento na sua actividade profissional (por exemplo, criação de postos de trabalho, estágios remunerados a terceiros, aposta em formação académica ou profissional).

Possibilitar-se-ia uma justiça social melhor dividida e uma melhor propagação do Estado Social, mas de uma forma económica consolidada, constituindo-se ainda juridicamente, um princípio de consciência tributária social, simbólica para os cidadãos de menor capacidade contributiva, que se aperceberiam socialmente da relevância em contribuir.

Apesar de, obviamente, estes cidadãos deverem ser beneficiados pelo posterior retorno através de bens semipúblicos e ínsito num trade-off realizado pelos restantes contribuintes com maiores meios de aquisição de riqueza, que ficariam adstritos a certas conjeturas para usufruírem da proporcionalidade.

Ou seja, conceber-se-ia de facto, uma noção de responsabilidade tributária universal, onde todos efetuariam a sua contribuição em consonância com a riqueza criada, independentemente do retorno que os mais desfavorecidos deveriam posteriormente desfrutar.

Deste modo, como principais conclusões a demonstrar, parece-nos mais proficiente a proporcionalidade em sede de IRS, quer a nível de Justiça Social quer a nível de eficiência económica, não se verificando quaisquer desrespeitos ao Estado Social, mas, “a contrario”, maiores vantagens e um mais conveniente equilíbrio.

Podendo, em complementariedade, adotar-se certas condições que possibilitem um mais adequado ajustamento e que poderão envolver mexidas no tributo taxa e nas deduções à coleta, bem como o reconhecimento de medidas individuais específicas.

Desde logo e em conformidade com o princípio jurídico da igualdade tributária num cariz vertical, quem possui menores condições patrimoniais, pressupondo, portanto, menor capacidade contributiva, continuará, tendo em vista a manutenção de uma certa e digna qualidade de vida pessoal e familiar, a empreender um esforço financeiro menor, o que permitirá assegurar a consequente diminuição das desigualdades.

É aliás, o que determinam os vários preceitos jurídicos da nossa legislação, com realce para a Lei Fundamental, a Constituição da República Portuguesa (ver art. 104º, nº 1) e para a Lei de Bases do Direito Tributário, a Lei Geral Tributária (ver arts 5º e 6º), visto que identicamente, num quadro tributário com estrutura proporcional, quem usufrui de maior capacidade contributiva manterá uma colaboração mais elevada.

Não entendemos ainda existir, na proporcionalidade por nós defendida, transgressão da disposição constitucional nem do princípio da igualdade tributária, podendo deste modo, juridicamente, verificar-se a alteração da classificação presentemente legislada.

Pretendendo-se com este ensaio apresentar algumas reflexões relativas a uma matéria prioritária num Estado Social de Direito Democrático e algumas possiveis soluções, que eventualmente possam permitir à posteriori, um debate efetivo e livre de preconceitos, com porventura a possivel constituição de um sistema tributario mais justo socialmente.

Devendo as conclusões finais demonstrarem a proporcionalidade como a forma de cálculo mais apropriada a uma real justiça social e uma desnecessária revisão constitucional do art.º 104º, nº 1 da CRP, já que, a proporcionalidade por nós invocada goza de progressividade indireta, que se enquadra de imediato na disposição normativa mencionada.

Sendo pretensão do autor, com estes últimos raciocínios empíricos, contribuir consequentemente para uma factual análise jurídico-política de âmbito mais alargada e eliminar, ou pelo menos atenuar, preconceitos políticos existentes na contenda sobre este tema.

Deixando-se, no quadro da discussão científica exercida, para cogitação dos leitores, as seguintes questões subsequentes: 1. “Verifica-se efetivamente, nos termos mais propícios, a propagação adequada das finalidades normativamente preceituadas para a tributação e primacialmente os objetivos de justiça social, através da progressividade no Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares? 2. “A proporcionalidade em sede de IRS não possibilitaria de um modo mais eficiente, o desenvolvimento destas finalidades e prioritariamente do objetivo de justiça social?”

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Jurisprudência Constitucional

– Acórdão do Tribunal Constitucional nº 211/2017, de 2 de Maio;

– Acórdão do Tribunal Constitucional nº 231/2016, de 6 de Junho;

– Acórdão do Tribunal Constitucional nº 187/2013, de 22 Abril;

– Acórdão do Tribunal Constitucional nº 173/2005, de 6 de Maio

  1. Professor Universitário e investigador de direito, jurisconsulto e consultor jurídico.