Laicidade, Afonso Costa e a mensagem de Fátima (1910 – 1920)

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“Um jesuíta a caminho da prisão”, fotografia retirada do Jornal Público – O Estado deve pedir desculpa à Igreja Católica pelos erros da I República? – artigo de António Marujo, 17/04/2011

UM PAÍS QUASE SEM DEUS – O espírito laico, as políticas de Afonso Costa e a mensagem de Fátima [1910 – 1920]. Trabalho originalmente produzido na Escola de Ciências Sociais Licenciatura em História para o Seminário em História, sob a orientação da Professora Doutora Maria Fátima Nunes. A influência da cultura republicana é uma questão pertinente, apesar de se haver discorrido na Monarquia Constitucional, precisamente na segunda metade do século XIX. Portanto, centrados na problemática das leis persecutórias, tentaremos compreender a relação ambígua entre o republicano e o sacerdote, num período marcado por rigorosas especificidades, e de que modo a obediência e a resistência definiram a complexidade no panorama sociopolítico por estas duas instituições. Não obstante, os estudos existentes sobre a Primeira República não olharam de forma directa pelo prisma transnacional que propomos ao leitor com este trabalho; isto é, fá-lo-emos através da análise das bases constituições de 1911, conjugando a essência da política afonsista e, sobretudo, as advertências emanadas pela Santa Sé, especificamente as de Pio X e Bento XV. No fundo, o foco cinge-se nesta questão: quais foram os mecanismos que a Igreja adoptou, como um suposto movimento de reorganização e “revalidação”, no novo contexto da História Constitucional Portuguesa? Palavras-chave: Primeira República; Afonso Costa; Igreja Católica; Obediência e Resistência.

“Quem não sabe que, desde que tomou a forma de uma república, o governo dessa nação [Portugal] imediatamente se comprometeu, de uma forma ou de outra, a decretar tais coisas que manifestam um ódio insaciável à religião católica?”1

1 Papa Pio X, Carta Encíclica “Iamdudum in Lusitana”, Arquivo da Santa Sé, vol. III, nº7, 1911, p. 217

Índice

RESUMO 7

  1. INTRODUÇÃO 9
  2. ESTADO DA ARTE 12
  3. SITUACIONISMO POLÍTICO-RELIGIOSO NA EUROPA DO SÉCULO XIX 14
    1. IMPORTÂNCIA DO CATOLICISMO NA MENTALIDADE PORTUGUESA 16
      1. A “QUESTÃO ROMANA” EM PORTUGAL 18
    2. AS RELAÇÕES ESTADO E IGREJA NA MONARQUIA CONSTITUCIONAL 21
  4. O TRIUNFO DA PRIMEIRA REPÚBLICA: OS PRIMEIROS ANOS E LEIS 23
    1. “DEUS” SEGUNDO OS IDEAIS REPUBLICANOS 26
    2. A INQUIETAÇÃO DO PAPA PIO X: INSTAURARE OMNIA IN CHRISTO 28
      1. NECESSIDADE DE ORGANIZAR E REAFIRMAR A FÉ 30
  5. PERSONALIDADE POLÍTICA DE AFONSO COSTA 34
    1. UM CLERO “QUASE SEM DEUS” 37
  6. BENTO XV E A PROBLEMÁTICA NO RECONHECIMENTO DA REPÚBLICA 39
    1. A MENSAGEM DE FÁTIMA COMO UM FACTOR SOCIAL E POLÍTICO 41
  7. CONCLUSÃO 43

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 46

ANEXOS 48

ÍNDICE REMISSIVO 52

Siglas e Abreviaturas

ANPUH-RJ – Associação Nacional de História do Rio de Janeiro art. – Artigo

CEHR-UCP – Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa

FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia nº – Número

ONU – Organização das Nações Unidas op. cit. – opus citatum: ‘obra citada’ org. – organização

Introdução

“[…] Porque o cristianismo, já o disse, é por essência uma religião histórica: quero dizer, uma religião cujos dogmas primordiais assentam em acontecimentos.”

– BLOCH, Marc, Introdução à História, Colecção Saber: Publicações Europa-América, 3ª Edição, Lisboa, 1976, p. 32.

Como tudo, também este ensaio científico tem a sua importância. Por diversas particularidades, e pelo tempo da sua elaboração, este trabalho acaba por retratar, antes de mais, um caminho de pesquisa e reflexão sobre a política, a sociedade, as mentalidades e o catolicismo em Portugal na época contemporânea. Não se traduz numa novidade exaustiva dos acontecimentos, reputados como complexos e controversos, das disputas ideológicas no momento da transição entre a Monarquia Constitucional e a Primeira República, através de uma cronologia marcada pelos finais do século XIX e inícios do XX. O propósito primordial deste trabalho é o entendimento, por intermédio do estudo da personalidade política de Afonso Costa [1871 – 1937], acerca do campo religioso durante os primeiros dez anos da república, transparecendo uma heterogeneidade de acções e comportamentos no âmbito cultural e político e, conjuntamente, tornar perceptível as formas de adaptação, organização e reafirmação da vivência religiosa no quadro social português.

Este trabalho desenvolve-se em torno do trajecto que, sendo a muitos níveis bibliográficos, procura retirar-se à banalidade de acreditar numa possível adinâmica, no que toca a uma nova problemática – a “acção católica” -, ou de se limitar a uma visão repleta de fronteiras sobre um período e respectiva circunstância sociopolítica – a queda do regime monárquico e a implantação da República. Almeja-se, essencialmente, definir uma referência para a caracterização de uma base discursiva interpretativa, necessitando, com a maior exatidão possível, os argumentos que propiciam esboçar uma memória crítica em derredor do poder político, mas ao mesmo tempo, a religião como manifestação social, já que ela integra, desde os tempos fundacionais, na consciência nacional. A percepção desta metodologia requer a vinculação das situações internas da sociedade portuguesa com a realidade vivida em outros pontos da Europa, ou seja, englobar a actuação do secularismo francês e liberal nos tempos da Monarquia, e a tentativa de afirmação do Papado e do alto clero no processo de “recatolização” face ao espírito laico republicano, instrumento esse, vítima de múltiplas influências.

Percorrendo todo o século XIX, desde a célebre Revolução de 1820, levada a cabo pelos vintistas, nomeadamente as várias investidas para uma estruturação de cariz liberal no mundo da política, causadora de transformações sociais, pusera em dúvida não só – ou melhor –, não propriamente as crenças em si, mas a dimensão e o forte controlo exercido pelas autoridades eclesiásticas perante os valores do progresso. Logo, o cenário católico contemporâneo tem sido abordado sob numerosos pontos-de-vista, com especial atenção nos laços firmados no plano colectivo, cuja primazia assenta nas relações entre o Estado e a Igreja. Constata-se, porém, uma predisposição bastante difusa de tentar depreender a conduta dos responsáveis da Igreja ou do movimento social católico, como um habitual espelho das atmosferas católicas estrangeiras ou como uma vulgar reacção às outras manifestações de convicção, de raciocínio e de acção, notadamente as que declaravam posições incompatíveis com a Igreja Católica, e rapidamente se comprimem estas temáticas a uma dialéctica entre forças reacionárias e modernas, enfatizando um parecer dualista no campo historiográfico. Importa, ainda assim, perceber o catolicismo e o seu desempenho como um todo e não, por meio dessa interpretação, evidenciando grupos ou individualidades isoladas, arquitectar uma perspectiva bipartida; isto é, de um lado, o saudosismo e, de outro, o progressismo –, fatalmente abreviativa das proporções internas e externas na esfera da Catolicidade. Não desvalorizando por completo esta proximidade à realidade, aparenta ser propício englobar o papel dos católicos na complexificação da chamada identidade nacional: examinar, com o auxílio de outras áreas do saber, as mentalidades inseridas no âmago do catolicismo, tendo em consideração a nova roupagem aquando da passagem do século XIX para o XX.

Tenciona-se, por conseguinte, determinar a devoção católica e os seus agentes nas marés dos debates e das matérias político-ideológicas existentes, melhor dizendo, repensar as estratégias praticadas pela Igreja em Portugal, detentora de uma vultosa agremiação de fiéis e parte integrante da sociedade, considerava o país como realidade nacional e, paralelamente, como é que o corpo social, nos seus profusos quadrantes, continha ou desarmonizava a Igreja. O intuito é expor o universo católico, na sua incompreensibilidade, uniformidade e pluralidade, incorporado na maneira de como se reorganizou e revisou a ânsia de se recuperar a sociedade. Alcançar o entendimento sobre estas vicissitudes, possibilita interpretar positivamente a evolução do “credo romano” contemporâneo e as suas tipicidades em território português, favorecendo uma observação mais adequada de como ele foi um componente causador no arquétipo social portuguese novecentista.

O catolicismo nem por proveito de análise pode ser entendido como uma realidade impartível ou totalmente homogénea. Aplicá-lo como um factor simplista é não admitir que há múltiplos pormenores pouco aprofundados, ou mesmo em parte desconhecidos: o pensamento, os modelos pastorais, a religiosidade popular, os atentados à formação do clero e do ensino público, as divisões no seio eclesiástico, a diversidade dos protestos eclesiais, entre outros. O terreno é amplo e, porque o é, torna- se um risco efectuar generalizações imoderadas ou, por estas não estarem clarificadas, alentar a insipiência de propriedades relevantes do viver colectivo.

Recorrendo a este enfoque, torna-se imperioso afirmar que a História, enquanto ciência social e humana, não se inclina sobre realidades universais e especulativas, mas de desenvolvimentos compostos por grupos e pessoas, agindo e configurando continuidades e rupturas, cuja dimensão se contempla numa longa duração, sem olvidar do horizonte o tempo curto e a conjuntura. Na sua singularidade, as mundividências religiosas são áreas complexas do íntimo de cada ser-humano, correlacionadas às razões do agir. De facto, o típico padrão da acção é característica basilar da desenvolução religiosa no século XIX, enquanto mecanismo de legitimação de utilidade social.

Na verdade, cometeríamos uma falha em querer subjugar a problemática religiosa na sociedade contemporânea a uma vivência de fé meramente individual; esta vivência coincide absolutamente a uma mundividência, a um tipo de perspectiva. O dilema principal é o lugar que envolvem, nesse processo de vivência, as intervenções, a todos os graus da realidade: desde o institucional ao pessoal. O cristianismo e a sua concepção estão no cerne de consideráveis discussões da Contemporaneidade, com exclusivo realce quando se trata de pensar a sua razão de existência no país, segundo o contexto social, se jogam, concomitantemente, as acções – as sociabilidades – quer confessionais ou políticas.

Por fim, este trabalho tende a analisar a problemática social e a mudança dos regimes políticos, interessando-se no posicionamento religioso: isto significa que busca alcançar o entendimento acerca da prevista descontinuidade no âmbito constitucional, jurídico e administrativo, a partir da componente religiosa enquanto sintoma distintivo. Para corporificar o objecto de estudo, considera-se a influência do episcopado português, o qual, sendo complexo, é, de certo modo, também exemplar, na medida em que adopta estratégias, dentro e fora do campo católico, e porque exterioriza determinados assuntos ou disfunções político-religiosas representadas neste sentido.

Estado da Arte

De modo a materializar este ensaio científico, apresentando diversas perspectivas sobre o objecto de estudo, anteriormente referido e clarificado, a aposta por uma investigação actual e receptiva perante os desenvolvimentos historiográficos no mundo académico português pós-2010, passamos a salientar as três análises ou reflexões que foram primordiais para um conhecimento alargado e coerente: Religião na sociedade portuguesa de Alfredo Teixeira2, Afonso Costa de Filipe Ribeiros de Meneses3 e A resistência e o acatamento à República no seio do clero português de Maria Lúcia de Brito Moura4. No fundo, e de modo a justificar a relevância que cada um representou para a concretização do trabalho, cabe afirmar que estes oferecem bases para uma memória crítica, mas ao mesmo tempo, um prisma de muitas faces sobre a Primeira República que muitos de nós desconhecemos, abdicando por completo a possíveis anacronismos ou observações de cariz pessoal ou ideológico; isto é, a capacidade interpretativa e rigorosa, são um dos factores pela escolha aqui exteriorizada.

Primeiramente, Alfredo Teixeira fornece-nos suportes informativos vitais na compreensão da mentalidade católica em território nacional, assinalando, visivelmente, o contraste entre o meio urbano e rural. Expõe as mais variadas características no âmbito da vivência da fé, especificamente nas consciências dos portugueses, evidenciando a religião como um elemento absolutamente fundamental e indispensável na construção da suposta identidade nacional, cuja utilidade, na maior parte das vezes, destinou-se à legitimação do poder político, mas sobretudo, no controlo das mentalidades, reflectindo-se nas inúmeras tradições, hábitos de vida e crenças muito particulares numa determinada região. Contudo, esta realidade não é imutável, mas de uma natureza repleta de oscilações, conservando, a sua essência como uma espécie de herança plenamente enraizada.

Numa segunda menção, Filipe Ribeiros de Meneses dedica-se a uma análise de índole sociopolítica, concretamente a personalidade governativa de Afonso Costa, um dos pioneiros na edificação da cultura republicana e responsável pelas leis persecutórias ou na desenvolução do espírito laico. Com efeito, proporciona uma reflexão do impacto jurídico, constitucional e socio-religioso, segundo os seus almejos político-ideológicos, questionando a pressuposta “ruptura profunda” com a Monarquia Constitucional, avaliando o dinamismo no contexto político e religioso, susceptíveis às transmutações naturais do tempo, das quais originaram inquietações por parte do Papado, e a necessidade de reafirmar a fé católica como resultado das posições controversas do Governo Provisório e adjacentes, amenizando uma possível crise de legitimidade.

Sob outro ponto-de-vista bastante curioso, Maria Lúcia de Brito Moura presenteia-nos com uma observação que ultrapassa as fronteiras, precipuamente o enigmático papel do exterior na edificação e oposição em derredor da Primeira República. Não obstante, faz-nos repensar a problemática no seio eclesiástico português, englobando as suas pluralidades e, consequentemente, os desentendimentos no reconhecimento do novo sistema político e as suas condutas; em outras palavras, no âmago do corpo clerical, verificou-se um sentimento dicotómico – resistência ou obediência -, tendo em vista o baixo clero, já que este se encontrava dividido, no que concerne às directrizes estabelecidas pelos seus bispos diocesanos no reforço dos interesses tradicionais da Igreja, encarados como antagónicos à moral afonsista.

Por último, e atendendo à magnitude de assegurar um ângulo transnacional a propósito desta temática, contribuindo para um novo vigor e amplificando novos caminhos para a investigação, propondo questões renovadas, destaca-se duas fontes primárias emanadas pela autoridade pontifícia: Encíclica Iamdudum in Lusitana do Papa Pio X e a Carta do Papa Bento XV para o cardeal-patriarca de Lisboa, arcebispos e bispos de Portugal em 1918, esta última facultada pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa [CEHR-UCP]. Dito isto, estas intervenções oriundas do centro do poder católico, viabilizaram uma metodologia fundamental e complementar diante daquilo que regularmente tinha sido analisado; isto é, a ambição de percorrer um trilho desafiante e complexo, resultou num aprimoramento da elaboração deste trabalho, em relação às novas formas de reflectir, comparar e explorar os múltiplos rostos da filosofia e da legislação republicana, contribuindo para o amadurecimento historiográfico.

Situacionismo político-religioso na Europa do século XIX

O século XIX marcou significativamente toda a dinâmica europeia, dando uma nova roupagem à estrutura social, política, económica, religiosa e até ao próprio pensamento [crescimento dos ideários liberais, socialistas e comunistas, estes dois últimos integrados nas utopias do espectro político-ideológico]. Consequentemente, a existência destes movimentos, sobretudo de índole intelectual, fez com que a Igreja Católica se confrontasse com problemáticas muito particulares que, sem sombra de dúvida, teve de procurar meios eficazes para combater o processo de descristianização do Ocidente, através de reformas espirituais, organizacionais e, por fim, o desenvolvimento do espírito diplomático, cuja finalidade passava por produzir métodos de amenização nos diferentes Estados da Europa.

De modo a salientar os procedimentos de diminuição no que toca à descristianização da Europa Ocidental, daremos como exemplo fundamental a França. Após a abdicação de Napoleão Bonaparte e o seu exílio que era controlado minuciosamente pelas forças britânicas na ilha de Santa Helena, incluindo o facto dos Bourbon terem regressado ao trono francês5 sob o frescor e o triunfo do liberalismo, notou-se que a população francesa estava cada vez mais afastada dos preceitos e da prática católica. No entanto, a Igreja que aproveitara o afastamento definitivo de Napoleão, teve como principal intento “recristianizar as massas populares”, por intermédio de várias soluções tais como6: remodelar a composição dos seminários, fossem eles maiores ou menores; a selecção cautelosa dos clérigos, havendo a prioridade na escolha de sacerdotes que eram detentores de um espírito tradicionalista; fomento das missões internas, levando para diversas zonas da França a dita Palavra de Deus e a “reconversão” dos católicos afastados dos seus deveres religiosos; e, por último, o incentivo e o forte crescimento do número de ordenações sacerdotais.

Perante todas estas acções, questionamo-nos: com a recristianização e adaptação ao novo contexto político, tendo em conta as influências liberais, podemos afirmar que nasceu um novo tipo de catolicismo? A resposta para esta pergunta é muito fácil de ser compreendida; isto é, surgiu na França uma nova corrente do pensamento católico, oschamados “católicos liberais” da década de 30 do século XIX, dos quais carregavam os ensinamentos de Lamennais e que se difundiu por todo o mediterrâneo. Aliás, os mesmos acreditavam na possibilidade de conjugar o Liberalismo com a Doutrina Católica, de modo a não renunciar o ponto-de-vista antropocêntrico7, justificando pelos meios políticos e económicos, a liberdade individual e do pensamento, a igualdade perante Deus e a lei dos homens, e nos casos mais radicais, advogavam a separação da Igreja e do Estado8, frisando que toda a estrutura eclesiástica deveria submeter-se ao conhecido “direito comum”. Porém, estes argumentos e movimentos filosóficos de cariz reformista, foram rapidamente condenados pela Santa Sé9, principalmente a crença de que todos os credos deviam ser abertamente aceites, praticados publicamente e, em especial, sem excepção, levariam à mesma salvação.

No campo ideológico, este relevante e necessário para entender toda a polémica que abalou a mentalidade católica europeia, o século XIX remonta a um tempo em que os grupos operários vêem-se extenuados e vítimas dos interesses económicos da burguesia, formando diversas injustiças sociais. Logo, este esgotamento originou novas linhas do pensamento político, notadamente os socialismos utópicos [destaca-se Karl Marx e Engels] e mudanças sociais, nas quais a alma revolucionária fora apregoada como meio primordial no combate a essas circunstâncias que tinham como principal alvo as elites económicas. Desse modo, e no âmago da Catolicidade, a Igreja Católica defrontou-se com esta agitação social que fez com que os Estados europeus, exclui-se a Inglaterra e a Rússia, interrogassem a essência e a relevância da religiosidade no âmbito sociopolítico, ou seja, a tendência na defesa do anticlericalismo10 tornou-se, inquestionavelmente, um factor apavorante para todo o seio clerical.

Entretanto, e como referido inicialmente, a Santa Sé sentiu a obrigação de desenvolver o seu espírito diplomático. Para isso, e dando como exemplo a Alemanha, cujo território estava à sombra da autoridade de príncipes protestantes, os católicos alemães exigiram negociações para acabar com o sentimento de discriminação, de modo a implementar uma renovação interna, mas de preferência a obtenção de acordos pacíficos11; isto é, a personalidade positivista alastrou-se por todo o continente, coligando-se com a franco-maçonaria republicana e racionalista, e ao mesmo tempo, o Cristianismo liberal apostolava uma religião sem base dogmática12, a ausência de autoridades sacerdotais, o livre pensamento, o materialismo, o niilismo de Nietzche, entre outros. De facto, estamos perante a uma transmutação da mentalidade, outrora regida pelos costumes do cristianismo tradicional, que preocupava em absoluto a Igreja. Sumamente, este tipo de vicissitudes caiu sobre Portugal desde as invasões napoleónicas, passando pela primeira Com stituição do Reino em 1822 [índole radical e vintista] e, por consequência, a queda da sociedade do Antigo Regime; por outro lado, a Primeira República, nosso objecto de estudo, agiu com mais firmeza nas directrizes dos classificados “ataques dos intelectuais hostis ao Catolicismo”13.

Importância do Catolicismo na mentalidade portuguesa

Para o desenvolvimento de um estudo conciso sobre o impacto da fé católica na mentalidade portuguesa, cremos que foi incontornável o ensaio científico levado a cabo pelo Professor Doutor Alfredo Teixeira14 que, decerto, forneceu-nos suportes informativos substanciais para compreendermos a conflitualidade entre as insistências e as alternâncias do contexto religioso, maiormente na conduta social, caracterizadoras da modernidade portuguesa. Efectivamente, a utilização da sociologia fez-nos abrir horizontes e criar uma leitura transversal do panorama que integra a devoção do povo português15, ou seja, de um modo mais perceptível, tornou-se necessário edificar uma ponte entre o pensamento tradicional e a sua destradicionalização natural que aconteceu16, com maior observância, a partir das mudanças políticas do século XIX: a introdução do princípio constitucional no regime monárquico regido por motivações liberais.

Constatando que Portugal sempre foi um país que exerceu uma atitude de preservação diante da tradicionalidade no campo socio-religioso, enraizando essa missão nas consciências, quer nos portugueses em território nacional ou além-mar, inquirimo-nos, através de uma reflexão, três questões cruciais. A) Que tipo de repercussões podemos notar diante das diversas dinâmicas ou transformações no meio urbano, político e filosófico? B) Que modelo de modernidade do pensamento religioso nos tipifica, tendo como foco as alterações naturais do tempo, nomeadamente o estímulo e a robustez dos novos estilos de governo e reforma das instituições? C) Por fim, quais são as particularidades proeminentes e específicas da religiosidade em Portugal, sabendo que a religiosidade se divide entre a popular e a oficial, esta última de índole oficial e hierarquizada de colectivo social?

Na verdade, a sociedade portuguesa no seu íntimo esteve sempre vinculada e orientada pelo pensamento católico tradicional, desde “um conjunto de práticas, imaginários e mundividências, relativos a expressões do sagrado, de âmbito local e regional, e com uma particular relação com as estruturas herdadas do campesinato”17; isto é, o desenvolvimento do “pensamento santificado” dos portugueses nasceu no embrião da ruralidade e, com efeito, torna-se interessante repensar e formular, mesmo que laconicamente, um exercício de memória, cuja índole não passa por rupturas, mas de uma continuidade repleta de transformações mediante a natureza do tempo18.

De modo a articular uma resposta entendível sobre as três perguntas de reflexão expressas anteriormente, acreditamos ser possível agregar numa só explicação: a permanência da religião católica em território português, enquadrando as suas instabilidades, conseguiu salvaguardar-se devido ao regime comunitário19 que possibilitou a contiguidade de uma fé que se preocupa e liga a vida e a morte, numa crença reiteradamente celebrada e com as suas regulamentações no quadro colectivo e individual. Proferiríamos, com alguma cautela, que Portugal esteve incorporado numa “economia da dádiva”20, sentindo a inevitabilidade em manter uma relação imperturbável com a Igreja, dado que os acontecimentos históricos transmitiram que o equilíbrio entre os dois poderes [Estado e Igreja] permitiram a sustentação de linhagens familiares, que não só procuraram benefícios espirituais, mas também privilégios, liberdades e a criação de uma imagem favorável em termos sociais.

Em todo o caso, a importância da mentalidade católica na população portuguesa, constantemente dividida entre a ortodoxia e a modernidade21, pode ser olhada numa óptica muito mais ampla. Isto significa que a tradição foi um instrumento de controlo da mudança, porque a tradição traz a mudança, enquanto a mudança transporta a tradição.

A “Questão Romana” em Portugal

No decorrer dos últimos quarenta anos do século XIX, conseguimos observar uma mutação bastante relevante na questão religiosa por toda a Europa, nomeadamente com a “Questão Romana”22 que, apesar de ter tido grande repercussão na Península Itálica, as suas consequências ultrapassaram as fronteiras e foram sentidas em Portugal. Em outras palavras, estamos diante de uma interferência política e intelectual portuguesa23, na qual se criou fortes debates sobre o futuro das relações com a Santa Sé, colocando em causa a sua praticabilidade. De facto, o Concílio Vaticano I trouxe consigo múltiplos conteúdos que não agradaram os diversos Estados Europeus24, incluindo a aprovação da constituição Pastor Aeternus de 18 de Junho de 187025, assinada por Pio IX, cuja finalidade era definir com vigor a infabilidade papal em matéria de fé, mas também assegurar a continuação dos Estados Papais face à ameaça da Casa Real de Saboia perante os seus movimentos de expansão e unificação territorial.

Este recente princípio conciliar – a infabilidade papal – fez soar negativamente no novo contexto político, como por exemplo26: a acção unificadora italiana, oriunda de Piemonte, despertou um comportamento de teor moralístico contra o poder do clero sob a sociedade e a política; por outro lado, os bispos franceses que estavam de acordo com esta nova afirmação do Papado, foram alvos de duras críticas e, sobretudo, gerou-se um conflito aberto e um agravamento das atitudes anticlericais27.

Concretamente, no caso português, notamos que a temática da religiosidade abrigou e produziu um dos procedimentos mais contraditórios após o desmoronamento do Antigo Regime, em particular na esfera social. Inclusive, antes de desenvolvermos a Primeira República, é imperioso entender que o espírito laico e a sua consolidação teórica frutificou-se devido às problemáticas de cariz político-religioso na Itália, da qual descendeu de movimentos contra a influência da Igreja no âmbito sociopolítico, conferindo-lhe um posicionamento de índole científica que buscava a unidade28, mesmo que no seu interior houvesse algumas divergências ou inúmeras formas de análise e reflexão, existia, definitivamente, uma compatibilidade de actuação no mundo da política e da intelectualidade29.

As conflitualidades da Santa Sé com o Governo Português marcaram os anos 70 e 80 do século XIX, uma vez que o Papado vai tentar reivindicar os seus direitos de Padroado para salvaguardar a sua integridade no Reino de Portugal e, claramente, não perder a sua autoridade, já que esta estava a ser contestada por todo o Ocidente. Contudo, Portugal adoptava pouco-a-pouco o espírito céptico na defesa do património da Santa Sé e na continuação do predomínio do legado papal em território nacional. Tendo em conta estas bases informativas, o que definiu este “espírito céptico”? No interior desta heterogeneidade política, houve uma oposição incessante à autoridade eclesiástica e à figura do Papa por conta das novas regras conciliares, mas também, como referido anteriormente, a forte dúvida no prolongamento ou não das relações diplomáticas com a Santa Sé30; isto é, não é justificável isolar as hostilidades vividas em Itália e em Portugal, posto que em pleno Parlamento Português, orientado pelos ideais liberais, corroborou no processo de unificação italiana e na quebra do poder temporal do Papa31, carregando dois pretextos primários: “Impedir a libertação e a unificação da Itália seria agir contra os ideais liberais”32 e “[…] a opinião liberal não ama o poder temporal, e entende que o Papa se deve ocupar unicamente nos negócios do Céu”33.

Conjugando este posicionamento parlamentar com a corrente do romantismo do século XIX, é perceptível que ambos detinham de uma atitude secularizante e classificavam o poder da Igreja como um suposto indício prejudicial à soberania de Portugal, no qual acreditavam que a autoridade pontifícia intervinha nos assuntos alheios à religião, logo, tinha uma componente mais política, algo inaceitável no espectro ideológico dos liberais34. Citando caso análogo, Passos Manuel, parlamentarista afamado e com um nível de eloquência singular, defendia uma interrupção definitiva a nível diplomático com a Santa Sé para garantir a “nossa liberdade constitucional”35, instituindo uma querela nas comunicações e nos entendimentos entre os dois países. Efectivamente, com a “Questão Romana”, temia-se dois prováveis cenários: em primeiro lugar, complicações na unidade da Igreja Católica; em segundo lugar, a perda permanente do poder político do Papa, em consequência dos objectivos do novo monarca de Itália. Sem embargo, e para diminuir estas eventuais problemáticas, nasceu uma solução que permanece até aos dias de hoje, ou seja, a criação da cidade do Vaticano36, como um lugar independente e soberano, centralizando-se nessa região, o foco do poder católico e o dogma da infabilidade inteiramente preservado.

Relativamente ao Papa Pio IX, figura fulcral na “Questão Romana”, podemos caracterizá-lo, com alguma segurança, de que o seu papado esteve mergulhado num ambiente inquietante, tanto que o Conde de Tomar qualificava o Colégio Cardinalício ou a Corte Romana, “incomplacente e fanática”37 diante das mudanças políticas na Europa, particularmente o apogeu do liberalismo. No entanto, com o deterioramento em relação à saúde de Sua Santidade, os chamados “Estados Católicos” [Áustria, França, Espanha e Portugal] sentiram-se preocupados com a futura eleição papal, reclamando o “veto de exclusão ou exclusiva”38, destacando-se o grande interesse de Portugal nesta reivindicação, mesmo que, historicamente, não fizeram uso regular deste direito39. Melhor dizendo, apoquentava a estes países a sucessão apostólica e a personalidade daquele que seria o novo ocupante do Trono Petrino perante as transformações políticas europeias, e que, naturalmente, ansiavam por um Papa de carácter benevolente e reformista. De qualquer forma, não deixa de ser curioso que apesar de Portugal ter sido governado pelo Liberalismo, cuja política defendia doutrinariamente a separação do Estado-Igreja, reafirmando um dos seus princípios, isto é, a tolerância religiosa40 como um factor de desenvolvimento social e contrário à tradição católica41; e mesmo assim, quiseram assegurar o privilégio de veto para interferir no resultado do conclave, caso este não agradasse os desejos do Governo Português.

Devido ao perecimento de Pio IX, os cardeais reuniram-se em conclave para proceder à eleição do novo Vigário de Cristo. Por intermédio das leituras realizadas, sabemos que os escrutínios foram demasiado fugazes42, de modo a evitar estratégias políticas que pudessem pôr em causa a integridade e a autoridade desta instituição religiosa, elegendo o célebre Leão XIII. Ao contrário do seu antecessor, Leão XIII demonstrou ser um indivíduo “bem-intencionado” e que tinha como finalidade recuperar a paz com os recentes estilos de governo43 e as novas formas de pensamento político dos Estados Europeus que estavam em conflito ou que exteriorizavam alguma prudência nas relações com o Vaticano. Indubitavelmente, ocorreu uma amenização destes conflitos diplomáticos de teor político, mas o debate sobre a viabilidade em conservar os vínculos Estado e Igreja, outrora quase que inseparáveis e sagrados, subsistiam e entusiasmavam as consciências44.

As relações Estado e Igreja na Monarquia Constitucional

Recorrendo a alguns acontecimentos históricos e que marcaram o reino no século XIX, desde a famosa “Guerra dos Dois Irmãos”45, passando pela expulsão das ordens religiosas em 1834 até ao impacto da “Questão Romana”, é observável que estes problemas resultaram em várias modificações no mundo da política e da religiosidade em território nacional, principalmente numa nova união entre o Estado e a Igreja, de índole reformada e consentânea com as ambições do progresso.

Na verdade, a situação da Igreja em Portugal de 1834 a 1841, após a expropriação de muitos conventos, mosteiros e espaços designados para a liturgia, vítimas de venda em praça pública, acabou por ficar desprovida da personalidade j*-

40 FERNANDES, op. cit., p. 50.

41 FERNANDES, op. cit., p. 54.

42 FERNANDES, op. cit., p. 54.

43 FERNANDES, op. cit., p. 54.

44 FERNANDES, op. cit., p. 55.

45 Conflito civil entre D. Miguel I e D. Pedro IV de Portugal e Algarves na disputa pelo trono português [1832 – 1834], cuja problemática, por um lado, era manter o regime absolutista; por outro lado, fazer triunfar os ideais liberais. Um dado importante: D. Jorge Eugénio de Lócio e Seiblitz, fundador do jornal “A Nação”, comunicou que o Papa Gregório XVI apoiara os miguelistas apresentando-o como “o rei mais católico de toda a Cristandade”. Consultar: D. Jorge Eugénio de Lócio in A Legitimidade Portuguesa, 1885 (póstumo).

+urídica46. Contudo, os efeitos à posteriori destes actos consistiu numa cartada à beira do precipício47, isto é, apesar deste inesperado comportamento do Governo Português face ao clero regular, a historiografia observou, em termos mais práticos, como um factor mais “sereno” quando comparado às atitudes praticadas pela Primeira República. Com a máxima previdência, podemos considerar que estes procederes formaram um novo contexto político-religioso nas relações entre a Monarquia Constitucional e a Igreja Católica, uma particularidade integrada no recente formato social dessemelhante ao pensamento tradicional do absolutismo em contexto organizacional.

Através das Concordatas com a Santa Sé nos anos 1857 e 1886, foi possível instituir a recognição directa do perfil jurídico da Igreja. No fundo, e explanando de maneira muito breve, este poder jurídico estava incorporado numa espécie de indulto que a lei civil exerceu na liberdade interna de cada fé – no caso católico, o direito canónico – relativamente à concepção das cultuais. Melhor dizendo, o Catolicismo permaneceu como a religião de Estado, todavia, ocupou apenas uma função de representatividade no que toca à identidade do povo português, e, na mentalidade da classe política conservadora, reconheciam como um dos elementos essenciais para a ordem social; entretanto, assumia uma nova roupagem de acção ou interferência sociopolítica limitada, conforme os moldes liberais. Posto isto, o liberalismo português almejava que a religião católica se ambientasse ao sufrágio universal e aos novos costumes da sociedade48, renunciando totalmente à herança do Antigo Regime, de modo a abraçar o constitucionalismo e o princípio da democracia.

Consequentemente, o novo regime legal geral – a Concordata estava dividida em três normas –, teve como intento realçar a diplomacia entre a Santa Sé e o Reino de Portugal, reforçar a tolerância religiosa pelo Estado, concedendo a liberdade de culto das igrejas existentes49 – católica, protestante e judaica -, excepto as outras devoções, tais como: budismo, islamismo e hinduísmo, referimos apenas as outras religiões históricas. Independentemente destas circunstâncias operadas pelo espírito liberal, os reinados de D. Luís, D. Carlos e D. Manuel II, demonstraram uma exemplar

46 DE MATOS, Luís Salgado, O Estado de Ordens: a organização política e os seus princípios fundamentais, Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2004, p. 294.

47 O Estado não conseguiu possuir força – ou vontade – política para efectuar a desocupação dos locais de culto, logo, as autoridades eclesiásticas fizeram de tudo para preservar a sua utilização; uma vez que, muitas das propriedades passaram a estar sob o jugo do Estado, foi ele quem passou a custear a sua manutenção, o que aliviava a Igreja de dispêndios elevadas.

48 DE MATOS, Luís Salgado, op. cit., p. 295.

49 DE MATOS, op. cit., p. 295.

pacificidade com o Vaticano e com as restantes autoridades eclesiásticas, tanto que, a 23 de Junho de 1886, aquando da assinatura da Concordata, o Papa Leão XIII, anteriormente definido como elemento-chave no mundo da diplomacia, agraciou o reino ao elevar o Bispo de Goa a Patriarca ad honorem das Índias Orientais50. De facto, esta estratégia do Papado leonino e dos seus sucessores até 1910, fez com que a Igreja Católica considerasse a Monarquia Constitucional compatível com os futuros desígnios da Cristandade.

O triunfo da Primeira República: os primeiros anos e leis

Exilada a família Real Portuguesa e, naturalmente, a queda do regime monárquico, a implantação da República, a 5 de Outubro de 1910, instaurou um novo paradigma social, político e cultural sem precedentes no nosso país. A nova forma de governo levantou desde logo a dúvida acerca da posição da Igreja e da sua relação com o Estado. Um dos principais pilares do republicanismo de inspiração francesa, que se difundia a olhos vistos por toda a Europa nos séculos XIX e XX, era precisamente a separação entre o Estado e a Igreja. Portanto, como seria expectável, novas medidas foram tomadas no sentido de empreender uma nova campanha de laicização do Estado, corrigindo, deste modo, os vícios que haviam ficado excluídos durante as transmutações exercidas pelo liberalismo.

Como forma introdutória, o período da Iª República Portuguesa, que decorreu entre 1910 e 1926, é, pelos motivos apresentados, vincadamente marcado por um grave conflito religioso, ou seja, estamos diante de uma verdadeira disputa pelo poder entre a Igreja e o Estado, conflito esse que terminou com o fortalecimento do poder por parte do Estado, em detrimento da Igreja Católica, que perdeu cada vez mais espaço e influência na sociedade portuguesa51.

Deste modo, a legislação dos primeiros meses da vida republicana emitida pelo governo provisório de Teófilo Braga, juntamente com Afonso Costa, no qual exercia a função de ministro da Justiça e dos Cultos, vigente desde a implantação da República até a aprovação da nova Constituição, reflectiu de uma forma muito notável esse espírito, demarcado por um forte cariz laicista, anticlerical e anticatólico52. Com efeito,

50 VITAL, Domingos Teixeira, “História Diplomática: Portugal e Santa Sé”, Portal Diplomático da República Portuguesa – Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2022.

51 MOURA, Maria Lúcia, A “Guerra Religiosa” na Primeira República, Centro de Estudos de História Religiosa: Universidade Católica Portuguesa, FCT, Lisboa, 2010, p. 55.

52 MENESES, Filipe Ribeiro de, Afonso Costa, Texto Editores, 1ª Edição, Lisboa, 2010, p. 40.

chegaram a realizar-se perseguições, assaltos e assassinatos de membros da Igreja, enquanto a propaganda estadual reforçava e difundia uma campanha de incentivo ao ódio e à violência perante as autoridades eclesiásticas e à própria essência dogmática.

Retomaram-se e reafirmaram-se os diplomas relativos à expulsão dos Padres da Companhia de Jesus e à extinção das ordens religiosas, e aprovaram-se novos, seguindo a mesma linha de raciocínio pombalino e liberal53. Neste sentido, por exemplo, os feriados religiosos [ou dias santos, como eram conhecidos comumente] foram abolidos, estabelecendo-se, apenas, 5 feriados, que eram na sua totalidade laicos. Para que o elenco dos feriados fosse efectivamente laico, o dia 25 de Dezembro passou a designar- se Dia da Família, e o dia 1 de Janeiro Dia da Fraternidade Universal, ao invés da Circuncisão do Senhor [como era conhecido até ao Concílio Vaticano II].

Procedeu-se, também, à abolição do juramento religioso que tinha lugar na tomada de posse dos Deputados e demais cargos públicos, e nos estatutos de admissão às universidades portuguesas. Ainda no ensino universitário, foram anuladas as matrículas do primeiro ano da Faculdade de Teologia54, e extintas as cadeiras de Direito Canónico da licenciatura em Direito. Já no ensino regular, salientou-se o decreto de 22 de Outubro onde se declara: “[…] extinto nas escolas primárias e normais primárias o ensino da doutrina cristã”55. De igual modo, foram dissolvidas as confrarias e irmandades, e proibida a participação das Forças Armadas nas solenidades religiosas. No entanto, entre todas as medidas tomadas, a mais polémica foi, indubitavelmente, a lei do divórcio de 3 de Novembro de 1910, e as restantes leis relativas à família e ao registo civil. Contrariamente à Doutrina Cristã, o casamento desprendeu-se da figura de sacramento vitalício indissolúvel, passando a ser encarado como um contracto meramente civil56, passível de ser anulado, ainda que com muitas restrições do que na actualidade.

O decreto de 20 de Abril de 1911, conhecido como Lei de Separação do Estado das Igrejas, completou o ciclo de medidas empreendidas desde a Implantação da República, e acentuou, com maior notoriedade, o conflito instaurado, tanto com a hierarquia católica, como com o povo, que maioritariamente religioso, não entendia a

53 COELHO, Paulo, O Processo de Secularização em Portugal: da Primeira República ao Estado Novo, Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, 2011, p. 15.

54 ABREU, Adélio Fernando, “A Igreja Católica e a Primeira República”, Revista Humanística e Teologia, vol. XXXI, série 2, Lisboa, 2010, p. 167.

55 Decreto de 22 de Outubro de 1910 do Ministério do Interior. Consultar: Diário do Governo nº16/1910, Série I de 1910-10-24. [Consultado a 30 Dezembro de 2020]. Disponível em: https://dre.pt

56 MENESES, op. cit., p. 38.

finalidade do decreto. Luís Salgado de Matos expõe o espírito inquietante do clero sobre a esta decisão: “No 5 de Outubro, os bispos sentiram-se derrotados e temeram os republicanos; este temor, ligado aos velhos hábitos regalistas, ao espírito patriótico e de concórdia nacional, e à necessidade de integração social levou-os a quererem um acordo com o novo regime”57.

Desde logo, a novidade passou pela não confessionalidade do Estado, deixando a religião Católica Apostólica Romana de ser a religião oficial do Estado. O respectivo diploma garantiu, também, como nunca na história constitucional portuguesa, a liberdade religiosa e de consciência, ficando autorizada a prática de todas as confissões religiosas. Como consequência, o Estado deixou de ter plasmado no seu orçamento qualquer encargo para com os cultos e igrejas, tal como se refere no artigo 4.º: “A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto”58. Previu-se a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos e a utilização de hábitos ou vestes talares fora dos templos. Empreendeu-se, também, uma nova campanha de expropriação dos bens da Igreja Católica59, e passaram as autoridades ou organismos civis a organizar as celebrações religiosas60, competência anteriormente e previamente atribuída somente aos sacerdotes.

A Constituição de 1911, promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte a 21 de Agosto, elevou a valor constitucional alguns dos preceitos e normas incorporantes na Lei de Separação do Estado das Igrejas. Todavia, não seguiu uma linha tão radical quanto a da legislação infraconstitucional aprovada pelo Governo Provisório, adoptando uma postura mais contida e moderada. Dizem alguns historiadores que a primeira constituição republicana foi “mais amiga”, ou pelo menos, “menos inimiga” da presença religiosa. Não obstante, na nova Lei Fundamental foram concedidos passos muito significativos para a história constitucional portuguesa. Instituiu-se, de uma forma inédita, que a “liberdade de consciência e crença é inviolável”61 [artigo 3º, nº4], e garantiu-se a igualdade política e civil de todos os cultos [artigo 3º, nº5]. Outra grande conquista alcançada foi a proibição de qualquer tipo de perseguição de motivação religiosa, embora que as próximas análises reflectiram uma ideia contrária, cujo Estado

57 DE MATOS, Luís Salgado, A Separação do Estado e da Igreja: Concórdia e conflito entre a Primeira República e o Catolicismo, Publicações Dom Quixote, 1ª Edição, Lisboa, 2010, p. 41.

58 Decreto com força de lei de 20 de Abril de 1911 do Ministério da Justiça. Consultar: Diário do Governo

nº92/1911, Série I de 1911-04-21. [Consultado 30 de Dezembro de 2022]. Disponível em: https://dre.pt

59 ABREU, op. cit., p. 169.

60 ABREU, op. cit., pp. 168 -169.

61 Art. 3º, nº4 da Constituição de 1911.

se isentou do acatamento desta disposição legal, pelas perseguições flagrantes que realizou à Igreja Católica. De igual forma, ao abrigo do nº7 do artigo 3º, ninguém poderia ser privado de um direito ou isentar-se do cumprimento de qualquer dever cívico, por motivos de opinião religiosa, nem questionado por qualquer autoridade sobre a religião que professava. Na mesma linha de pensamento, qualquer culto podia ser praticado em espaços reservados para o efeito, mesmo com a forma exterior de templo, e eram permitidos, igualmente, nos cemitérios públicos todos os cultos e respectivos ritos.

A Constituição previu ainda reformas ao nível do sector do ensino, sendo o ensino confessional o grande “alvo a abater”. No nº 10 do artigo 3º, reafirmou-se o poder do Estado perante os privados, estabelecendo-se que “o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos e particulares fiscalizados pelo Estado será neutro em matéria religiosa”62. Assim sendo, criou-se uma escola laica e neutral, sendo dos pais, nos seus lares, os responsáveis por dar, ou não, às suas crianças a educação religiosa que assim quisessem professar.

No fundo, o programa anticlerical da Iª República foi firmemente e publicamente contestado pela Igreja Católica e seus membros, levando, inclusivamente, a um novo corte de relações entre Portugal e Santa Sé, que se estendeu desde 1913 a 1918. Sem embargo, muitas críticas se geraram, relativamente ao carácter excessivo das medidas implementadas, que, através das nossas consciências, podemos notar uma certa contradição segundo o suposto princípio de neutralidade do Estado, consagrado já na Constituição de 1911; isto é, invés de adoptarem um espírito plenamente neutro, o Estado preferiu praticar uma postura de combate reiterado à religião e à reinvenção daquilo que era Deus, gerando atritos e conflitos constantes, principalmente com a Igreja Católica e os seus fiéis.

“Deus” segundo os ideais republicanos

As opiniões sobre Deus e o Seu papel na sociedade era um assunto que dividia os republicanos, porque muitas das argumentações apresentadas em debates, artigos ou palestras, consistiam numa base limitada, conforme a imagem que tinham da Igreja. Posto isto, conseguimos notar o seguinte: por um lado, tínhamos os republicanos ateístas, os que acreditavam que Deus se resumia a uma invenção para alcançar

62 Art. 3º, nº 10 da Constituição de 1911.

interesses pessoais ou, de certa maneira, construir instrumentos de manipulação nas consciências; em contrapartida, aqueles que favoravelmente, ou cautelosamente, toleravam a religião, reconheciam que o Catolicismo desempenhou uma função paralela ao progresso da Humanidade, isto é, o problema não era Deus, mas sim, a existência da Igreja Católica que, para os mesmos, era sinónimo de ignorância e decadência em termos sociais. Contudo, torna-se importante salientar que este pensamento não nasceu após a implantação da República, apenas foi colocada em prática neste período.

Para entendermos a base desta mentalidade republicana, temos de recuar à última metade do século XIX, nomeadamente a notória influência de Augusto Comte, uma vez que estamos diante do desenvolvimento do Livre-Pensamento63, do qual abdicava, por completo, a necessidade de pedir auxílio, participar em ritos ou desempenhar qualquer obrigação de natureza religiosa a um suposto “Deus”. Ademais, gerou-se dois ramos de pensamento dentro do seio republicano português, mas possuíam algo em comum: a diminuição da autoridade da Igreja Católica no âmbito sociopolítico. De maneira sucinta, explicamos estas duas vertentes64:

  1. Republicanos laicos – acreditavam que para atingir o grande objectivo – reduzir o poder do Catolicismo – tinham de ser cautelosos, apostando numa estratégia de cariz impessoal, ou seja, colocar em acção o processo de secularização, rejeitando quaisquer comportamentos agressivos por parte do Estado. Por exemplo: Manuel Arriaga, um dos grandes pioneiros do republicanismo, enquadrava-se nesta corrente65, uma vez que não considerava a Igreja como a principal inimiga do Estado, porém, achou necessário apostar numa vigilância activa para evitar possíveis estratagemas ou artimanhas nostálgicas, que pudessem pôr em causa a nova forma de governo;
  2. Republicanos laicistas – estes eram considerados os mais radicais, porque defendiam que o homem era a força vital para combater eficazmente a religião Católica. No fundo, assumiam uma posição intransigente, na qual reforçava as perseguições contra as autoridades eclesiásticas, já que os laicistas justificavam as mesmas como uma atitude de “legítima defesa” perante a tirania, o irrespeito pelo povo e pelos “crimes do passado”66, levados a cabo pela Igreja.

63 DE MATOS, Luís Salgado, op. cit., p. 194.

64 MATOS, op. cit., pp. 194 – 195.

65 MATOS, op. cit., pp. 195.

66 MATOS, op. cit., p. 195.

Por intermédio destas interpretações, conseguimos notar que, apesar do crescimento do espírito em torno da secularização ou laicização terem constituído um propósito primordial no plano ideológico, a fé era uma temática debatida com alguma frequência, englobando, precipuamente, os círculos intelectuais. Dito isto, não podemos esquecer que a propaganda fabricada nesta época serviu, exclusivamente, os interesses políticos da Primeira República, dos quais colocavam de parte “Deus” e, ao mesmo tempo, fomentavam uma culpabilização reiterada à hierarquia católica, especificamente o centro do poder religioso [Santa Sé] e aos jesuítas67 que, para os mesmos, eram os responsáveis pela doutrinação das massas e representados como os “caciques monárquico-clericais”68.

    1. A inquietação do Papa Pio X: Instaurare omnia in Christo

O pontificado do Papa Pio X [1903 – 1914] marcou significativamente a História da Igreja, possuindo características muito particulares no mundo católico, político e diplomático, no decorrer dos inícios do século XX. Na verdade, este Sucessor de São Pedro ficou conhecido por ser um defensor dos dogmas tridentinos e fervoroso combatente das “novas heresias”69, perante uma Europa que almejava alcançar os valores do progresso, nomeadamente na formação de governos que fizeram renascer a tradição antimonárquica clássica do século XVIII, juntamente com o cepticismo referente à continuidade da influência do Catolicismo no âmbito sociopolítico. No fundo, Pio X vivenciou, de maneira profunda, a queda da Monarquia Portuguesa, e observou com atenção a instabilidade incipiente da Primeira República. Vale salientar que, até aos dias de hoje, o legado de Sua Santidade é conhecido pelo seu intenso tradicionalismo na esfera social e religiosa.

Antes de abordarmos as especificidades e, naturalmente, reflectirmos sobre a Encíclica “Iamdudum in Lusitana”, que nos forneceu suportes informativos vitais sobre a perspectiva do papado diante do novo situacionismo governativo em território português, é fundamental conjugar esta intervenção pontifícia com o lema de Pio X – “Instaurare omnia in Cristo” – que, de facto, interferiu nos seus moldes de acção. Portanto, se tivermos em linha de conta esta base do “Renovar todas as coisas em

67 Nota: Este sentimento anti-jesuítico fez com que as antigas leis de Pombal e de Aguiar voltassem e integrassem no programa político da Primeira República, através do Decreto de 8 de Outubro de 1910.

68 MATOS, op. cit., p. 195.

69 Nota: A Carta Encíclica intitulada Pascendi Dominici Gregis, publicada no dia 8 de Setembro de 1907, condenou veemente as consideradas “doutrinas modernistas”, englobando as novas correntes do pensamento político e religioso, por não estarem em comunhão com os ensinamentos apostólicos e doutrinários.

Cristo”, utilizada ao serviço dos interesses do clero português, podemos constatar que a autoridade papal sentiu a necessidade de agir, restaurar e renovar a catolicidade, não ficando apenas limitada a um ponto-de-vista global, mas também, com grande zelo, a Portugal70, ou seja, torna-se fulcral analisarmos as formas de organização e reafirmação da fé católica, como modelos de adaptação e resistência aos diversos problemas legislativos da política republicana.

A Encíclica, na sua essência, projectou uma certa prudência inicial e, mesmo que indirectamente, uma luta pelas ambições da Igreja, distanciada dos esforços ou das desavenças partidárias. Ademais, este documento papal foi rapidamente publicado pouco tempo depois da Lei de Separação do Estado das Igrejas, cuja interpretação por parte da Santa Sé, revelou que o principal intento da recém-República era fomentar um “ódio insaciável”71 à religião Católica, equiparando essa aversão à Revolução Francesa. Já no contexto espiritual, este comunicado evidencia o desprestígio diante da sacralidade sacerdotal, as restrições descabidas à liberdade da prática litúrgica e outras funções religiosas fora dos locais de culto, como também a interdição do direito de manifestação e da aplicação do associativismo clerical72. Segundo o “Iamdudum in Lusitana”, demonstramos estas perspectivas, por intermédio de um excerto:

“[…] torna a ordem dos clérigos justamente naquilo em que é superior, em condição inferior à dos demais cidadãos. […] Também é proibido, fora dos lugares sagrados, celebrar qualquer cerimónia sem autorização do governo republicano, realizar qualquer procissão, usar ornamentos sagrados e nem mesmo a própria batina. […] Além disso, enquanto todos os cidadãos podem usar as suas próprias coisas por sua própria vontade, os católicos, por outro lado, contra o justo e o lícito, são fortemente restringidos a esse poder.”73

Insolitamente, e tendo em vista o âmbito pedagógico, o Santo Padre enfatizou a magnitude e a urgência em reestabelecer o ensino religioso nas escolas públicas74, uma vez que a anulação das aprendizagens de cariz catequético, originava, a seu ver, uma consequência grave no quotidiano das crianças e jovens portugueses; por outras palavras, a religiosidade, na sua “condição natural”, era um fermento necessário para manter os “bons costumes”, a moral e, por fim, instruir as consciências para o caminho da santidade, posto que, para todo o cristão-católico, seria a missão primordial durante a sua vida terrena. Relativamente à formação dos seminaristas, a “Velha República” provocou alguns obstáculos, sobretudo o carácter obrigatório dos mais novos

70 ABREU, op. cit., pp. 181 – 182.

71 Papa Pio X, Carta Encíclica “Iamdudum in Lusitana”, Arquivo Público da Santa Sé, vol. III, nº7, 1911, p. 217

72 ABREU, op. cit., p. 180.

73 Ibidem, pp. 219 – 220.

74 Ibidem, p. 217.

frequentarem os liceus públicos, sendo que Pio X expôs a sua inquietude, alertando a observação constante e a prudência das autoridades eclesiásticas portuguesas neste aspecto:

“Finalmente, o Estado – algo tão amargo e grave no mais alto grau – […] exige para si a melhor atenção da Igreja: estamos a falar da educação e formação da juventude consagrada. De facto, não só obriga os alunos do clero, para os estudos das ciências e letras que antecedem à teologia, a frequentarem os liceus públicos, onde a integridade da fé, devido ao tipo de educação alheio a Deus e à Igreja, está certamente exposta a perigos bastante óbvios.”75

Por conseguinte, torna-se explícita a indispensabilidade da Encíclica para a construção de um parecer historiográfico, no que toca a uma óptica transnacional e comparativa que, para além da crítica papal perante o processo de laicização – estratégia de fundamentação do poder pontifício -, serviu como uma ponte vital no entendimento da possível paradoxalidade da Lei de Separação. Melhor dizendo, este documento fez brotar o encorajamento do episcopado e do seu compromisso pastoral para uma restauração cristã, que já não passava pela confessionalidade do Estado, mas num empenho de índole evangelizadora, cujo alvo seria todo o tecido social, através de repercussões pacificadoras. Demonstramos o seguinte excerto que nos evidencia a suposta hipocrisia republicana e o estímulo apostólico destinado aos católicos, como acto final desta análise plenamente esquadrinhada:

“Os antigos decretos regalistas são assim restaurados […] enquanto havia acordo entre o Estado e a Igreja, agora que o Estado não quer ter nada em comum com a Igreja, não parecerão contraditórios e cheios de loucura? […] esta lei […] corromper os costumes do clero e provocar a sua deserção dos seus propósitos? […] Estes ilustres testemunhos da fé […] a prosseguir com todas as vossas forças a causa da religião, à qual está ligada a própria salvação da pátria comum, mas sobretudo procurem conservar […] harmonia entre vós e o povo cristão e todos com esta cátedra do Beato Pedro.”76

Necessidade de organizar e reafirmar a fé

Após uma análise precavida e prudente, conseguimos perceber que primeiros quinze anos do século XX, foi marcado por tumultos acentuados com a Igreja Católica, dos quais originaram actos expressivos no desenvolvimento do contexto sociopolítico e religioso sem precedentes. Primeiramente, o reerguimento do espírito de combate e a reafirmação do papel da Igreja Católica contra o republicanismo, o livre-pensamento e a igualdade das confissões religiosas perante a lei, resultou na reiteração das bases

75 Ibidem, p. 220.

76 Ibidem, pp. 220 – 222.

tradicionais e da fundamentação do poder pontifício77 em nome da paz, mas sobretudo na manutenção dos valores cristãos. Em segundo lugar, ocorreu uma divisão no âmago da sociedade portuguesa, ou seja, por um lado as medidas anti-clericais projectadas por Afonso Costa78 foram recebidas com insatisfação por grande parte dos portugueses, essencialmente na região do Norte e nas zonas rurais79; em contrapartida, o governo tentou justificar o seu ponto-de-vista sobre a importância do anti-clericalismo governamental, de maneira a sossegar as consciências, conseguindo, proveitosamente, alcançar a aceitação das massas urbanas80. No fundo, torna-se observável que a cidade se opôs ao campo e impôs com robustez a concordância e a modelagem81, quase que forçosa, nas “mentalidades campestres”.

Sem embargo, o episcopado agiu como uma fonte primordial para a precaução e sensatez no âmbito das relações com a República, apostando, principalmente na instrução dos católicos, bem como em atitudes de carácter pacífico e pastoral; isto é, numa perspectiva intervencionista, os bispos portugueses foram os principais responsáveis na tomada de decisões sobre os modos de acção do clero e dos fiéis82, de maneira com que houvesse uma união sólida, que resultasse num consenso e, com a máxima tranquilidade, reconhecessem os novos poderes instituídos83. Esta prudência episcopal tinha como objectivo poupar possíveis retaliações de maior grau para com os sacerdotes84, evitando o que acontecera ao clero regular e à própria Companhia de Jesus, vítimas da expulsão ou dos obstáculos na continuidade da sua vocação religiosa, após a publicação das chamadas leis persecutórias85. Dito isto, e tendo em conta alguns dos diplomas empreendidos por Afonso Costa, a Igreja considerou fulcral a elaboração de uma resposta pública e ponderada, alicerçando-se em dois dados interpretativos86: o ferimento dos direitos, liberdades e privilégios do clero, e ao mesmo tempo, alertar o

77 MARQUES, António Henrique [Org. Joel Serrão], A Primeira República Portuguesa: alguns aspectos estruturais, Colecção: Horizonte, nº13, 2ª Edição, Lisboa, 1975, p. 55.

78 MARQUES, op. cit., p. 58.

79 MARQUES, op. cit., p. 61.

80 COELHO, Paulo Calvinho, O Processo de Secularização em Portugal: da Primeira República ao Estado Novo, Dissertação [Mestrado em Sociologia] – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2011, p. 17.

81 MARQUES, op. cit., p. 61.

82 RAMOS, António de Jesus, “A Igreja e a 1ª República: a reacção católica em Portugal às leis persecutórias de 1910 – 1911”, Revista Didaskalia, Universidade Católica Portuguesa, 1983, p. 264.

83 RAMOS, op. cit., p. 260.

84 RAMOS, op. cit., p. 263.

85 Nota: Pairava nestas leis um espírito radical, algo tão forte e perfeitamente integrado numa das alas republicanas, nomeadamente a vertente radicalista, na qual pertencia Afonso Costa. Na verdade, muitas das acções levadas a cabo pelo então Ministro da Justiça e dos Cultos, fez desabrochar inúmeras disputas na sociedade portuguesa, que rapidamente atingiu todo o país.

86 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal: A Primeira República [1910 – 1926], Editorial Verbo, Lisboa, 1977, p. 77.

possível crescimento do desequilíbrio social, assim como as prováveis consequências a nível político87, por conta da intransigência praticada pelo Governo Provisório; melhor dizendo, emergia nas mentalidades católicas o receio de que o Estado Português adoptasse, com maior afinco, o anarquismo. Portanto, estes contratempos fizeram com que os prelados se reunissem com alguma urgência, de forma a averiguar e discutir, detidamente, a nova realidade legislativa88.

Conforme as declarações dos bispos que se envolveram na Carta Pastoral, os mesmos afirmaram convictamente que a intenção não era prejudicar ou interferir nas acções do Estado, mas reforçar, colectivamente, o seu papel de “detentora de direitos espirituais que mereciam ser respeitados”89. Porém, e tendo sido mencionado os vários modos de procedimento republicano face aos assuntos eclesiásticos, sendo estes condenados pelo Papa Pio X, Afonso Costa não exitou em proibir a leitura e divulgação da Pastoral, nem mesmo dentro dos locais dedicados à liturgia90, prometendo medidas drásticas, como por exemplo: a demissão efectiva dos epíscopos, vistos com desprezo e inimigos do Estado91. Ademais, Veríssimo Serrão relata um caso muito curioso em relação ao Bispo do Porto, Sua Excelência Reverendíssima D. António Barroso, um dos cooperadores do apelo episcopal, que fora chamado para um interrogatório em Lisboa. Dom António, confrontado pelo Ministro da Justiça e dos Cultos, assegurou que o conteúdo da carta não tinha como finalidade desrespeitar as autoridades do novo regime e que “aceita e respeita os poderes constituídos”92. O então Ministro, Afonso Costa, não acreditou nos esclarecimentos do bispo, e, incomplacente, exonerou-o das suas funções por ser, possivelmente, associado à reacção monárquica93. Leiamos este excerto, relativamente à chegada de Dom Barroso a Lisboa, no qual verificamos o contraste em termos comportamentais na capital, onde a alma republicana ecoava consideravelmente, ante ao meio rural ou a Norte do país:

“O prelado foi então chamado a Lisboa, para se justificar da atitude que assumira, por muitos interpretada como de aberta provocação ao regime. Centenas de republicanos juntaram-se na gare do Rossio para vaiar D. António Barroso, o que forçou a polícia a fazê-lo descer na estação

87 SERRÃO, op. cit., p. 78.

88 SERRÃO, op. cit., p. 77.

89 SERRÃO, op. cit., p. 78.

90 SERRÃO, op. cit., p. 78.

91 Diário do Governo, de 9 de Março de 1911, em Legislação Republicana, vol. II, tomo IX, pp. 55 – 60.

92 SERRÃO, op. cit., p. 78.

93 SERRÃO, op. cit., p. 78.

de Campolide. Mas quando se dirigia de automóvel para o Terreiro do Paço, o antístite foi alvo dos maiores enxovalhos […].”94

Posto isto, quais foram os conteúdos produzidos pela acção dos bispados na Carta Pastoral? De acordo com o Doutor António Ramos, a sua análise concede as quatro principais aspirações da Pastoral, tais como: explorar e avaliar, cronologicamente, os vínculos do Estado com a Igreja, por meio de uma visão histórico- teológica95. Num segundo momento, e conforme os pensamentos dos prelados envolvidos, referiram as mais diversas problemáticas no panorama educacional, dentre as quais a ausência da moral cristã nas escolas portuguesas, especificamente as públicas, visto que as mesmas passaram a ter um dinamismo e um ensino completamente laico e embasado nas normas republicanas; como resposta ao sucedido, os bispos portugueses justificaram que o Catolicismo era a única religião capaz de transmitir os princípios basilares para o quotidiano e, simultaneamente, resolver “o problema da conciliação entre a liberdade e a dignidade humana e o respeito à autoridade”96. Além do mais, enfatizaram o desagrado para com a Lei da Separação de 1911, interpretando-a como uma afronta à “lei natural e divina” da sociedade ocidental; isto significa que estamos defronte de uma condenação, mesmo que indirecta, ao processo de laicização, alegando que este possível proselitismo republicano prejudicava as consciências e a desvalorização dos preceitos, outrora, tidos como sagrados e invioláveis. Inclusive, contrapuseram a legitimidade da Lei da Separação, porque a seu entender, provocava chagas no verdadeiro conceito de liberdade, cujo procedimento não correspondera à vontade pública97, mas resumida a interesses de uma classe política minoritária. Curiosamente, houve uma recognição das novas instituições que compuseram a organização política da Primeira República, garantindo que a Igreja em Portugal, por livre e espontânea vontade, respeitaria e cumpriria as ordens e leis emanadas pelos novos governantes, sob condição que essas legislações não ulcerassem a fé católica e a sua jurisdição98.

Os métodos exercidos pela Igreja Católica, no que concerne à sua organização e reafirmação da fé num Portugal mergulhado na instabilidade e na incerteza sobre o

94 SERRÃO, op. cit., p. 78.

95 RAMOS, op. cit., p. 261.

96 RAMOS, op. cit., p. 261.

97 RAMOS, op. cit., p. 262.

98 RAMOS, op. cit., p. 262.

futuro, acarretou responsabilidades muito particulares, direccionadas para os católicos em território nacional. Logo, não podemos assumir que estamos na presença de uma guerra declarada pelas autoridades eclesiásticas, pelo contrário: todo este situacionismo levou com que se formasse uma “batalha espiritual”, isto é, apelou-se a todos os fiéis a aceitarem as diretrizes desenvolvidas pela Igreja, fundamentalmente aquelas que eram oriundas dos seus Bispos e da Santa Sé99; encorajar a não abdicar a fé, nem mesmo sob pressão ou por medo, de tal modo que pudessem praticá-la, difundi-la e protegê-la publicamente – seguir o modelo de vida dos mártires – , exercendo como um “dever social”100; conservar todas as obras, essencialmente a caridade, e aceitar as mais variadas provações “dos que o odeiam e perseguem”101; por fim, e com um presumível aproveitamento político, exigia-se que os portugueses, professadores do credo romano, votassem em candidatos ou pertencessem a partidos, cuja índole focava-se no favorecimento e na protecção das ambições da Religião Católica102.

Personalidade política de Afonso Costa

A vida política de Afonso Costa é uma realidade que merece ser devidamente analisada sensatamente, visto que se trata de uma figura controversa, bem como um dos principais pioneiros da cultura republicana em Portugal. Ademais, há estudiosos que colocam em causa a conhecida “ruptura profunda” com a Monarquia Constitucional, tendo em conta alguns dos aspectos da sua personalidade, enquanto republicano fervoroso e responsável pela pasta ministerial da Justiça e dos Cultos; isto é, torna-se fundamental examinar a sua personalidade no contexto político, de modo a compreendermos a sua repercussão no meio social e o sucesso doutrinário nas próprias mentalidades portuguesas. Em seguimento da observação ou dos questionamentos elaborados pelos historiadores ou teóricos políticos, notamos duas particularidades em comum com o regime monárquico: a preocupação em manter o império colonial por motivos nacionalistas, utilizando as colónias para resolver as complicações de índole financeira, e, por último, “[…] teremos conseguido mostrar que a revolução republicana

99 RAMOS, op. cit., p. 263.

100 RAMOS, op. cit., p. 263.

101 RAMOS, op. cit., p. 264.

102 RAMOS, op. cit., p. 264.

não produziu qualquer ruptura com o clientelismo político […] da Monarquia Constitucional”103.

Recuando aos últimos anos da Monarquia, Afonso Costa demonstrava um entusiasmo bastante evidente, no que toca ao seu desejo de introduzir um novo funcionamento, alicerçado no sistema político de carácter republicano, o que gerou alguma conflitualidade na antiga Câmara dos Deputados. Inclusive, por conta das suas alegações, foi banido provisoriamente por difundir, através de mecanismos que influenciavam a opinião pública, que D. Carlos detinha de uma incompetência moral104 e prejudicial para a governação do país. Curiosamente, nas eleições de 1907, constatou- se um crescimento do número de deputados republicanos no Parlamento, no qual Costa estava integrado e classificado como um elemento-chave para o seu partido, estabelecendo uma ligação sólida com diversas sociedades secretas radicais, como é o caso da Maçonaria105; logo, observou-se que a capital do reino estava cada vez mais republicanizada e, naturalmente, descontente com o poderio hereditário e “desgastado”. Aquando do regicídio, Afonso Costa descrevera este acto como uma “execução nacional, uma síntese da cólera e da dignidade de um grande povo”106. Foi a partir deste fatídico episódio que a sua obra política começou a dar frutos.

Com o exílio de D. Manuel II, e o nascimento de um novo estilo de governo, ainda que provisório e dúbio107, Afonso Costa denominou o 5 de Outubro de 1910 como “uma página formosa e inigualável da história da Humanidade”108. Portanto, ao obter toda a liberdade enquanto republicano, assumindo o ministério da Justiça, tornava-se encarregado pelos assuntos de matéria religiosa, dos quais dedicou-se veementemente. Programou desde o início uma atitude anti-clerical109, de tal maneira que logrou os corações dos revolucionários civis, atendendo à recuperação das antigas leis pombalinas e regalistas110. Em contrapartida, no interior do círculo intelectual e político do

103 LOPES, Fernando Farelo, Poder Político e Caciquismo na 1ª República Portuguesa, Editora Estampa, Lisboa, 1993, p. 161.

104 MENESES, op. cit., p. 29.

105 MENESES, op. cit., p. 32.

106 MENESES, op. cit., p. 44.

107 RAMOS, Rui [org. José Mattoso], História de Portugal: A Segunda Fundação [1890 – 1926], Editoral Estampa, vol. VI, Lisboa, 2001, p. 401.

108 MARQUES, António Henrique, Afonso Costa, Editora Arcádia, Lisboa, 1972, p. 336.

109 RAMOS, op. cit., p. 404.

110 Nota: A expulsão dos padres da Companhia de Jesus, o encerramento de todas as casas religiosas, as perseguições, os interrogatórios e os mandados de prisão, fizeram com que Afonso Costa ficasse conhecido como o “Marquês de Pombal” do século XX. Ler: “No dia 13 de Outubro, Afonso Costa interrogou 50 freiras numa sessão; no dia seguinte, foram ouvidos 128 eclesiásticos detidos no forte de Caxias, junto â foz do Tejo.” – MENESES, op. cit., p. 37.

republicanismo português, não viam com bons olhos a constante obsessão antirreligiosa de Afonso Costa, mas ao mesmo tempo, ninguém tinha a coragem de confrontar ou declarar uma oposição devidamente estruturada, já que o mesmo afirmava que as suas condutas correspondiam à vontade popular, robustecendo a sua “forma de ser”: “o nosso fim é fazer da República uma forma de governo progressiva, tendo as máximas tendências descentralizadoras”111.

Na verdade, quando publicou a Lei da Separação do Estado das Igrejas em 1911, resultado da sua premissa basilar para salvaguardar a integridade do Estado Português na forma de República, acredita-se que Afonso Costa proferiu uma previsão muito afamada, conjugada na sua personalidade política: “Dentro de três gerações estará extinto em Portugal o Catolicismo”112. Não obstante, um dia antes da publicação da dita lei, Costa reuniu-se com maçónicos e funcionários do Registo Civil113, e deu a conhecer a sua obra-prima, respaldando, irrevogavelmente, a sua marca reformadora.

Afinal, Afonso Costa conseguiu agregar e manter o seu poder por três razões: em primeiro lugar, não permitia que houvesse opositores ou que questionassem os seus comportamentos, e muitas das vezes expressava uma das suas múltiplas faces, neste caso a vingativa114; em segundo lugar, a maior parte dos historiadores, e até mesmo os republicanos mais moderados, denominavam-no “optimista cego”115; e por último, perpetrador do clientelismo político e nepotista, a citando a pesquisa levada a cabo por Filipe Ribeiros de Meneses: “Enquanto estas medidas estavam a ser implementadas, Afonso Costa rodeou-se, no Ministério da Justiça, das pessoas em quem mais podia confiar: José de Abreu, o seu cunhado, dirigia o secretariado do Supremo Tribunal de Justiça; Germano Martins, sócio da firma de advocacia de Costa, foi nomeado director- geral do Ministério da Justiça; Artur Costa, seu irmão, foi escolhido para secretário particular.”116

111 MENESES, op. cit., p. 42.

112 Actualmente, a previsão permanece em forma de debate no mundo da historiografia, ou seja, se esta foi ou não proferida. Contudo, Filipe Ribeiros de Meneses invoca que o próprio Afonso Costa a integrou no seu discurso na Sociedade Geográfica de Lisboa, a 17 de Setembro de 1911. Para o texto do discurso, ver o Mundo [Lisboa], 18 de Setembro de 1911.

113 RAMOS, op. cit., p. 411.

114 MENESES, op. cit., p. 41.

115 MENESES, op. cit., p. 40.

116 MENESES, op. cit., p. 38.

Um clero “quase sem Deus”

Diante das análises que foram desenvolvidas acerca do posicionamento eclesiástico desfavorável para com a Primeira República, cabe a nós agora demonstrar uma face muito desconhecida, da qual demonstra a divisão existente no seio da própria Igreja em Portugal, questionando a sua tradicional uniformidade. Na verdade, esta divergência remonta desde os fins da Monarquia, visto que o baixo clero protestava contra a diminuição do seu estatuto a nível social e económico. Consequentemente, os republicanos pensavam que a maior parte dos presbíteros não praticava verdadeiramente a espiritualidade, mas resumiam-se à preocupação do seu sustento; isto é, conforme os pareceres dos apoiantes do republicanismo, estes padres eram susceptíveis a acreditar e adoptar a esperança republicana como solução aos seus problemas, tanto que ocorreu uma adesão significativa para a transformação de um novo regime político117. Por outro lado, os que eram considerados piedosos e que valorizavam a sacralidade do sacerdócio, foram apelidados de “jesuítas”118, e os que obedeciam as prerrogativas emanadas pela hierarquia, especialmente a do Vigário de Cristo, eram reputados como agentes perigosos para a afirmação e consolidação do nacionalismo, já que este constituía um dos pilares do movimento republicano.

Aquando da transição para a República, observou-se um grande número de clérigos que abraçou as bases da nova realidade administrativa, por meio de três possíveis razões: em primeiro lugar, estavam em constante contacto com indivíduos assumidamente republicanos, detentores de um robusto conhecimento político e intelectual. Em segundo lugar, não aconteceu uma oposição firme do clero secular face às leis de expulsão dos religiosos e dos padres da Companhia de Jesus, posto que estes possuíam vínculos com as elites sociais da época, gerando um prestígio perceptível na sociedade portuguesa, fazendo com que o clero secular os considerasse concorrentes pertinazes119, reivindicando o seu status. Por fim, defendiam a prática da democracia moderna, herança liberal desde os tempos monárquicos oitocentistas, mesmo que esta acção reduzisse a figura do padre no quadro social, integrando a laicização externa [instituições governamentais] e a laicização interna [transmutar as consciências].

117 MOURA, Maria Lúcia, “A resistência e o acatamento à República no seio do clero português”, Revista Lusitania Sacra, CEHR – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2011, p. 32.

118 MOURA, op. cit., p. 32.

119 MOURA, op. cit., p. 27.

Segundo Maria Lúcia Moura, o início da Primeira República simbolizou uma luta direccionada contra a Igreja, do que propriamente à nostalgia pela restauração da Monarquia. Isto significa que as condutas executadas por Afonso Costa, acarretou chagas incontornáveis e marcantes no futuro do Catolicismo em Portugal, mesmo após a queda ocorrida no ano de 1926. Uma das feridas que chocou o Papado e a população portuguesa foi, sem sombra de dúvida, o aproveitamento político e legislativo por parte de alguns presbíteros que renunciaram o sacramento da ordem, contraindo matrimónio120. Sem embargo, os “padres republicanos” foram ainda mais longe, sendo que acolheram as célebres cultuais na vida paroquial; em outros termos, refusaram em prestar contas dos seus problemas internos ao bispo diocesano, o que suscitou uma conflitualidade entre o episcopado e o Governo Português, visto que se tratava de um comportamento insubmisso e que colocava em risco a jurisdição comum dos epíscopos. Em contrapartida, para reiterar a natureza da sua autoridade, a ameaça de excomunhão aos párocos e leigos que favorecessem as cultuais esteve presente121, mas não conseguiu obter um acatamento em virtude da alma laica.

Não podemos olvidar que as análises cumprem o dever de serem devidamente aprofundadas, através de situações concretas. Neste caso, e para além do clero que estava dividido sobre a legitimidade da República Portuguesa, havia quem escolhesse seguir a neutralidade, o que nos auxiliou a compreender as diversas distinções. Desta forma, os padres republicanos não optavam por receber a pensão do governo, porque em nenhuma circunstância tencionavam entrar numa confrontação com os seus prelados, embora fossem defensores das políticas afonsistas122; isto é, dignificavam por uma consciência tranquila, de modo a amenizar possíveis querelas com a hierarquia da Igreja, entretanto, não tinham como finalidade criar embates com o Estado. Tratava-se, em conformidade com os seus pretextos, de uma espécie de solidariedade para com a sua classe. Ainda assim, estas escolhas não foram vistas com bons olhos pela República e alto clero, que as traduziam como posições duvidosas. Sob outra perspectiva, existiam aqueles que recebiam a pensão, e mesmo assim, não significava que obtemperassem à vontade do poder político, efectivando os seus deveres sacerdotais123, tais como: persistiam, por meio da pregação, a importância dos sacramentos, essencialmente o baptismo, o matrimónio e a extrema-unção.

120 MOURA, op. cit., p. 34.

121 MOURA, op. cit., p. 30.

122 MOURA, op. cit., p. 35.

123 MOURA, op. cit., p. 37.

Diante do exposto, seria incorrecto afirmar que todos os clérigos eram monárquicos, um mito criado pós-República124, no momento que esse sentimento se foi esvanecendo. Por outras palavras, a complexidade existente dentro do clero era bastante evidente e merecedora de distinções adequadas, ou seja, os que favoravelmente partilhavam os ideais republicanos, já que aproveitaram o momento da viragem para abdicar dos seus votos de obediência; os que, levados pela prudência, preferiram aplicar a neutralidade; e, por último, os que duramente criticavam a nova realidade política, por conta dos procedimentos de laicização e ruptura, permanecendo com o seu pensamento tradicionalista. No fundo, Maria Lúcia Moura faz-nos repensar até que ponto a Primeira República possuía um espírito democrático125, uma vez que a elite política ambicionava o unanimismo de ideias, divinizando o novo sistema126.

Bento XV e a problemática no reconhecimento da República

A Carta de Bento XV127, direccionada ao alto clero, nomeadamente ao Cardeal- Patriarca de Lisboa, António Mendes Bello, tencionava responder à mensagem redigida pelos prelados, numa das suas reuniões em Lisboa, no mês de Fevereiro do ano 1918, da qual reforçava a lealdade para com a papado, e, com a máxima obediência, demonstraram uma aceitação plena do novo artigo Código do Direito Canónico128, em relação à disciplina dos sacerdotes e aos métodos eficazes para a salvação das almas, adaptas ao novo contexto social contemporâneo. De facto, notou-se uma receptividade positiva às novas prerrogativas emanadas pela Santa Sé.

O principal conteúdo da Carta Pontifícia, revela que o Papa estava informado sobre o situacionismo católico em Portugal, reconhecendo, com grande alegria, o processo de reestruturação da causa católica, visto que a mesma detinha, no governo de Sidónio Pais, uma maior liberdade de acção, após anos de prudência perante as políticas de Afonso Costa. Passamos a citar o seguinte excerto:

124 MOURA, op. cit., p. 33.

125 MOURA, op. cit., p. 37.

126 MOURA, op. cit., p. 35.

127 Nota: Jornal não identificado, cuja informação foi obtida pelo Arquivo do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa [CEHR-UCP].

128 PT/UCP/CEHR/AALN/D/G/03/018, Carta do Papa Bento XV para o cardeal-patriarca de Lisboa, arcebispos e bispos de Portugal anno de 1918, 1 fl.

“Foi-Nos, porém, de um modo especial agradável a notícia que nos destes que a causa catholica em Portugal começava a melhorar um pouco, causa que, ha muito tempo, a todos inspirava cuidados e solicitude.”129

Posto isto, Bento XV manifesta que o cenário religioso português melhorou depois dos sete anos da publicação da Lei de Separação do Estado das Igrejas, enfatizando uma condenação indirecta a essa realidade legislativa, cuja demonstração se traduz numa continuidade do pensamento do seu antecessor, o Papa Pio X. Não obstante, afirmou convictamente que a Primeira República se transformou num instrumento de doutrinação em massa, referente às mentalidades do povo português, atendendo à essência do espírito laico; à visto disso, neste documento, o pontífice, interroga com perplexidade, após as inúmeras perseguições e atitudes de intolerância, a sobrevivência deste estilo de governo:

“São de todos conhecidos os gravíssimos damnos que derivaram para a cousa da religião em Portugal d’essa [sic] duramente applicada. Nós, porém, nunca julgamos que um tal estado de causas, apoiado só na violência, pudesse ser duradouro […]”130

Ademais, expressou a sua profunda gratidão à coragem dos católicos diante das leis persecutórias para a preservação da fé, mencionando uma devoção geral e insubstituível – a figura da Virgem Maria -, como um elemento de conforto, definindo-a como protectora da acção católica. Vale salientar que, a louvação pelo papel do episcopado como uma ponte fundamental na defesa da Igreja, fortalecendo e naturalizando, a sua autoridade e o sentido de obediência, tendo sido utilizado como forma exemplar a Carta Pastoral, que ao longo deste trabalho foi analisada. Leiamos o seguinte:

“[…] soffrendo perseguições por Deus e pela Justiça, destes sempre admiráveis provas de zelo pastoral e fortaleza christã, mostrando a vossa prudencia principalmente na Carta Pastoral de 20 de Janeiro ultimo a que na mesma carta vos referis.”131

No ano de 1918, e segundo as pautas da reunião em Lisboa, Bento XV assegurou que o clero começara a uniformizar-se em busca da compreensão, transmitindo com ênfase o acatamento das directrizes dos seus bispos, encorajando-os a acreditar de que este seria o melhor caminho, para que Portugal, num futuro próximo,

129 Ibidem, fl. 1.

130 Ibidem, fl. 1.

131 Ibidem, fl. 1.

pudesse restaurar a dignidade da autoridade eclesiástica e do clericalismo, como uma corrente identitária e sagrada, cuja aplicabilidade só seria viável com a restituição dos direitos, liberdades e privilégios da Igreja:

“havendo perfeita harmonia da parte do clero e povo fiel com a vossa perseverante direcção, e permanecendo firmes em tudo o mais, aproveitando a experiencia do passado […] a Egreja dentro em pouco restituída à sua antiga dignidade, ha de exercer livremente os seus sacrossantos direitos e gosar das suas legitimas prerogativas.”132

Como apelo final, Bento XV sentiu a necessidade de propor, mesmo que indirectamente, a reconciliação com o Estado Português a nível diplomático, justificando que “[…] ha de trazer ao povo portuguez maior grandeza e prosperidade”133. Consequentemente, esta carta conseguiu alcançar o seu objectivo, ou seja, captar a atenção e a reflexão dos republicanos, tanto que, depois de três meses da sua publicação, no dia 9 de Julho de 1918, foram restabelecidas as relações entre ambos. Todavia, o Papa só reconheceu oficialmente o novo regime político no dia 29 de Julho de 1919, por Carta Apostólica; isto é, demorou cerca de um ano a aceitação, cujo período serviu como uma espécie de estratégia de prudência face aos desenvolvimentos gradativos do Governo Português.

A Mensagem de Fátima como um factor social e político

Em relação à Mensagem de Fátima, não nos compete comprovar se o acontecimento de 1917 foi ou não um episódio de natureza milagrosa. Portanto, cabe a nós enveredar por uma análise puramente historiográfica, atendendo ao impacto do novo culto mariano, como um factor social e político, nomeadamente na intensificação do processo de recatolização da sociedade portuguesa, cuja circunstância representou um obstáculo para a continuação do desenvolvimento do espírito laico republicano, mas ao mesmo tempo permitiu reflectir as possíveis negociações entre o Estado e a Igreja.

A construção e a difusão das narrativas em derredor da “Senhora do Rosário” foram elaboradas por intelectuais católicos134, muitos deles integrados no Centro Católico Português, detentores de um pensamento conservador. A explicação levada a cabo pelos mesmos sobre a aparição, composta por um certo fundamentalismo religioso, tratava-se de um indício para a necessidade de uma mudança política em Portugal, ou

132 Ibidem, fl. 1.

133 Ibidem, fl. 1.

134 MOURA, Carlos André, “A Recatolização e as Ortopráticas no culto à Fátima em Portugal e no Brasil [1910 – 1942]”, Revista Saberes e Práticas Científicas – ANPUH, Brasil: Rio de Janeiro, 2014, p. 2.

seja, a introdução de um novo governo que voltasse a dignificar e a salvaguardar os princípios cristãos na sociedade portuguesa. Logo, este presságio fez despertar uma reacção cada vez mais robusta da Igreja Católica contra o laicismo e a descristianização135, refutando veemente a contiguidade das normas estabelecidas por Afonso Costa, quer seja no contexto administrativo, ministerial e legislativo; isto é, torna-se imperativo abordar, mesmo que laconicamente, estas questões através de um ângulo histórico, social e mental.

Nossa Senhora de Fátima, enquanto nova devoção, começou a estar relacionada com o objectivo recatolizador, promovendo a reestruturação e adaptação da acção católica ao quadro religioso pós-1917, no qual verificou-se um carácter militante. Também surgiram propostas reformadoras no âmbito litúrgico e contemplativo, relativamente aos fiéis. Deste modo, os anos de 1917 a 1920, corresponderam a um momento importante nas desenvoluções de projectos relevantes para o futuro da Igreja em Portugal, nos quais referimos as três principais situações136:

  1. Discussão sobre a possibilidade de retoma das negociações entre o Governo Português e a Igreja Católica, por meio do Decreto Moura Pinto;
  2. António Sardinha publicou a sua distinta obra intitulada “A Monarquia”, referindo o aparente evento miraculoso como uma manifestação para a restauração do regime monárquico em Portugal;
  3. A vitória de Sidónio Pais e a queda de Afonso Costa fez com que houvesse uma intervenção directa do fenómeno mariano na esfera social portuguesa137.

Seguindo a análise de Carlos André Moura, o mesmo rege-se pela pesquisa efectuada por Nicola Gasbarro, que retratou as aparições marianas ocorridas no início do século XX, incluindo o caso da Cova da Iria, como manifestações que foram moldadas a certos enquadramentos político-religiosos de cada país, cujo usufruto das práticas culturais serviram para atrair a população, mesmo aquela que anteriormente abandonou o credo católico, adaptando-as ao âmago da ortodoxia – ortopráticas138.

Para dizer o essencial, foi a partir do sidonismo que se iniciou o debate político sobre os prós e contras da laicização do Estado e a preocupação para com o início da

135 MOURA, op. cit., p. 1.

136 MOURA, op. cit., p. 2.

137 BARRETO, José, “Religião e sociedade: dois ensaios”, Revista Lusitania Sacra, nº 16, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2004, p. 42 – 43.

138 “O conceito de ortopráticas abrange as regras rituais e as “ações inclusivas e performativas da vida social”, com invenções e reinvenções em termos de práticas religiosas. […] distanciamos das classificações atribuídas ao catolicismo popular […]”. Consultar: MOURA, op. cit., p. 3.

hegemonia soviética na Europa, conjugando com a presumível mensagem de Fátima acerca da disseminação dos seus “males para o mundo”. Assim sendo, estamos perante um crescimento do espírito conservador, alicerçado nas bases da doutrina cristã, podendo ser considerado como a “renascença católica” em território nacional139, por intermédio da dita aparição aos três pastorinhos, reputado como um dos maiores cultos católicos, em relação ao alcance das consciências em massa, durante os primeiros 35 anos do século XX. Por conseguinte, a conquista das novas mentalidades inseridas no Catolicismo em Portugal, deve-se ao facto das interpretações da Mensagem de Fátima que, a nosso entender, podem ser examinadas a nível sociocultural, histórico e político, já que a repercussão ultrapassou as fronteiras, estendendo-se a um contexto global. Dito isto, esteve enraizada a reflexão no campo político ocidental sobre a viabilidade desta “recatolização” nas transmutações legislativas e no revigoramento da moral e costumes140.

Conclusão

Depois de uma significativa leitura bibliográfica e de uma intensa reflexão das fontes que nos propusemos estudar, podemos retomar a questão/problema colocados no início deste ensaio científico. A influência do espírito republicano assente no laicismo e na difusão de uma construção política baseada na ruptura, teve com toda a certeza uma grande relevância na construção da complexidade cultural da Primeira República. Contudo, não podemos deixar de alertar que esta realidade estudada se prende com uma perspectiva transnacional, pelo que seria interessante verificar esta mesma circunstância por uma índole comparativa noutros casos concretos e até mesmo fora do espaço europeu. De qualquer forma, fica evidenciada a importância do poder da nova elite política após a queda da Monarquia Constitucional, nomeadamente na evolução do carácter anticlerical, sendo que sabemos de antemão a importância do secularismo francês e de algumas correntes liberais do século XIX, como influenciadoras de outros modelos políticos deste período, incluindo Itália com a chamada “Questão Romana”, cujo impacto afectou toda a Europa do sul.

Como demonstrado, e as fontes são inequívocas, o período dos primeiros 10 anos da República, ou seja, o nascimento, a juventude e a morte das políticas afonsistas, estava fortemente sustentada pela crença de Augusto Comte, principalmente na corrente

139 MOURA, op. cit., p. 2.

140 MOURA, op. cit., p. 4.

mais radical do republicanismo, e era através das leis persecutórias às autoridades eclesiásticas, que Afonso Costa conseguiu, durante algum tempo, mesmo com uma oposição, legitimar as suas acções, por intermédio do proselitismo nas zonas urbanas, expandindo e modelando as consciências campestres. Portanto, em todos os momentos, e segundo a sua personalidade política, verificou-se que o então Ministro da Justiça e dos Cultos, tentou, vezes sem conta, criar um unanimismo de ideias no interior da Igreja, de modo com que aderissem e reconhecessem o novo funcionamento governamental, colocando-a como um papel secundário – padres republicanos -, como sustentaram algumas correntes historiográficas tradicionais e dualistas, das quais tentamos confrontá-las e demonstrar, ao mesmo tempo, a evolução perante estes pensamentos simplistas nos últimos 10 anos.

Daquilo que nos foi possível abordar, no que respeita à documentação, ficamos com uma perspectiva do muito que ainda falta estudar sobre estas matérias, no intuito de compreender melhor a sociedade, o poder político e o clero deste período. O próprio alto clero e a sua acção, bem como os métodos de reorganização na Contemporaneidade, são outros elementos essenciais na compreensão de um conjunto que interessa estudar na perspectiva divisora: acatamento e resistência. Para nós, ficou evidente que a interferência religiosa, interna e externa, expressou-se de maneira muito omnipresente durante os desenvolvimentos na acção governativa da elite política radical, sustentando a protecção dos dogmas, da tradição, da moral e dos costumes, levada a cabo por um conjunto de intelectuais católicos, detentores de uma mentalidade conservadora e integrantes do Centro Católico Português.

O nosso trabalho pretende também dar continuidade a um estudo mais rigoroso da influência do Papado e com isso contribuir para um aprofundamento da época da Primeira República e do seu período social. Cremos ainda na importância destes estudos para um melhor contributo à História Religiosa, Política, Transnacional e das Mentalidades, abrindo horizontes de pesquisa para lá das fronteiras do nosso território nacional, com o intuito de verificar as formas de fundamentação pontifícia durante as conflitualidades entre o Estado e a Igreja.

Para nós que estudamos a História, não como juízes, mas como meros observadores, temos a certeza que a Igreja Católica, na sua pluralidade, contribuiu para um imenso legado que nos deve exortar a preservá-lo, a estudá-lo e, sobretudo, o que poderá ser menos fácil, bem interpretá-lo. A historiografia é assim enriquecida na medida que souber esgrimir as suas fontes, e ao mesmo tempo, entender que a

magnitude em confrontar e complementar, são alimentos fulcrais para uma pesquisa rigorosa. Assim sendo, este Seminário insere-se num dos objectivos da Agenda 2030 da ONU: “Paz, Justiça e Instituições eficazes”, que mesmo indirectamente, o trabalho passa uma mensagem de que a tolerância religiosa, a pluralidade opinativa e a liberdade individual ou colectiva, são valores basilares para o bem-estar social e um funcionamento positivo em termos políticos. Passamos a citar algo muito recente e proferido pelo Papa Francisco: “O catolicismo é uma religião agora “moderna e razoável”, que passou por mudanças evolutivas. É hora de deixar toda a intolerância. Devemos reconhecer que a verdade religiosa evolui e muda.”

Agradecimentos

Como qualquer trabalho, também este conjuga vontade, competências e motivações muito específicas. A persistência em desenvolver uma análise e uma escrita pessoais que levassem a cabo a concretização do Seminário em História Contemporânea sempre esteve em mente, cercada pela boa disposição e pela rigorosidade da Professora Doutora Maria de Fátima Nunes, que soube manter a complacência e o auxílio necessário no decorrer deste processo desafiante. Torna-se oportuno manifestar uma palavra de reconhecimento e gratidão a todos quantos, pelas mais diversas ocasiões, estiveram presentes e coadjuvaram para que este trabalho corporificasse. O encorajamento obtido proporcionou que me tivesse mantido num ritmo benéfico, durante estes quatro meses, e apesar de todas as vicissitudes que a experiência na investigação obriga, incitado e resoluto para dar substância ao meu empenho, por intermédio de uma reflexão segura e de uma escrita fundamentada.

Ao evocar carinhosamente alguns dos que mais próximos estiveram neste caminho, é indispensável essa gratulação a todos aqueles que me apoiaram das mais múltiplas formas. Há uma permanência muito singular: a de meus pais e de minha avó materna – Hilário, Sara e Ilda -, que, por meio das repetidas lições sobre as dificuldades naturais da vida, orientaram-me, reiteradamente, que estas não podem impossibilitar de se optar pelo estudo e servir de alguma maneira o mundo da historiografia. A lembrança de alguns amigos que testemunharam a cada instante a predisposição pelos meus compromissos académicos, concebe uma memória onde tenho desvendado o significado deste ensinamento: persistir, mesmo quando, a cada decisão, se me revela vulnerabilidade da minha condição humana, perfeitamente imperfeita. Portanto, à Ângela Guerreiro, Beatriz Gaspar, Pedro Zambujo, Mariana Godinho, Ariana Rocha, Diogo Cavaco, Diogo Pauleiro, Vítor Pinto, Diana Henriques, Sofia Sousa e Inês Jonífero, o meu total apreço por serem colaboradores permanentes desta minha jornada.

É também a altura ideal para demonstrar a amizade e a cordialidade que se gerou diante dos meus colegas integrados nesta mesma unidade curricular, nominalmente a Joana Rijo que, pacientemente, acompanhou e aconselhou no aprimoramento deste ensaio científico. Por outro lado, não posso olvidar a disponibilidade e a admirável companhia do meu prezado amigo, Iuri Fernandes, estudante de licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ao Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, cujo intento centralizou-se na procura por uma das fontes primordiais no desenvolvimento deste Seminário.

No fundo, a nossa vida consiste, sobretudo, na exposição e partilha de inúmeras ideias de uns com os outros. Por isso mesmo, sinto o direito de confessar a minha profunda admiração pela Prof.ª Doutora Maria de Deus Beites Manso que, inquestionavelmente, fez brotar no meu coração o gosto pela História Religiosa, algo que pretendo especializar-me futuramente. Além disso, posso ir mais longe, ou seja, o seu carácter afável e de uma ininterrupta assistência, mas ao mesmo tempo, consciencializar que a missão de um historiador é aprimorar e preservar o espírito imparcial, fazendo-me crescer enquanto pessoa e simples aprendiz desta área de estudo.

Resta-me fazer jus a uma palavra exclusivamente portuguesa, saudade. Dito isto, finalizo com uma pequena homenagem ao meu falecido avô materno, José Gonçalves, merecedor de uma memória inolvidável; isto significa que, a maior herança que poderia deixar, foi, indubitavelmente, a sua forma exemplar de como enfrentar os mais duros obstáculos e, mesmo assim, não pensar, em nenhum momento, desistir. Melhor dizendo, passou a mensagem de que a fé, esperança e dedicação, são as raízes primordiais para encontrar o sucesso, de modo a dar bons frutos. Lamentavelmente, e pelo mistério que é a vida, já não está presente fisicamente para assistir a todas as minhas conquistas, tristezas ou alegrias. Mas creio que, independentemente de onde esteja, o orgulho que nutre pelo seu neto é algo contínuo e imutável. Sendo assim, termino, humildemente, com esta pequena passagem bíblica da Segunda Epístola a Timóteo, capítulo I, versículo IV: “[…] desejo muito vê-lo, para que a minha alegria seja completa.”

Fontes e referências bibliográficas

Fontes em Arquivo:

Diário do Governo nº16/1910, Série I de 1910-10-24 [Disponível em: https://dre.pt]

Diário do Governo nº92/1911, Série I de 1911-04-21. [Disponível em: https://dre.pt]

Diário do Governo, de 9 de Março de 1911, em Legislação Republicana, vol. II, tomo IX, pp. 55 – 60.

Papa Pio X, Carta Encíclica “Iamdudum in Lusitana”, Arquivo da Santa Sé, vol. III, nº7, 1911, pp. 217 – 222.

PT/UCP/CEHR/AALN/D/G/03/018, Carta do Papa Bento XV para o cardeal-patriarca de Lisboa, arcebispos e bispos de Portugal anno de 1918, 1 fl.

Bibliografia:

  • ABREU, Adélio Fernando, “A Igreja Católica e a Primeira República”, Revista Humanística e Teologia, vol. XXXI, série 2, Lisboa, 2010;
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  • BRAZÃO, Eduardo, Relações Diplomáticas de Portugal com a Santa Sé, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Lisboa, 1971;
  • CATROGA, Fernando, “O Laicismo e a questão religiosa em Portugal [1865 – 1911]”, Revista Análise Social, vol. XXIV, Lisboa, 1988;
  • COELHO, Paulo, O Processo de Secularização em Portugal: da Primeira República ao Estado Novo, Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, 2011;
  • COUTINHO, José Pereira, Recensão: Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas. Perfis e Tendências da Religiosidade em Portugal Numa Perspetiva, Repositório do Instituto Universitário de Lisboa, n.º 82, 2016;
  • DE MATOS, Luís Salgado, A Separação do Estado e da Igreja: Concórdia e conflito entre a Primeira República e o Catolicismo, Publicações Dom Quixote, 1ª Edição, Lisboa, 2010
  • DE MATOS, Luís Salgado, O Estado de Ordens: a organização política e os seus princípios fundamentais, Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2004;
  • DUQUE, Eduardo, Mudanças culturais, mudanças religiosas. Perfis e tendências da religiosidade em Portugal numa perspectiva comparada, Edições Húmus, Universidade do Minho, 2014;
  • FERNANDES, António, Igreja e Sociedade: na Monarquia Constitucional e na Primeira República,

Editora Estratégias Criativas, Porto, 2007;

  • GOMES, Marco; CASSINO, Carmine, “A República Romana e a Unificação da Itália na Imprensa Portuguesa”. In: SOUSA, Jorge Pedro [org.], Notícias em Portugal – Estudos sobre a imprensa informativa (séculos XVI – XX), Edição ICNOVA – Instituto de Comunicação da Nova, Lisboa, 2018;
  • LOPES, Fernando Farelo, Poder Político e Caciquismo na 1ª República Portuguesa, Editora Estampa, Lisboa, 1993.
  • MARQUES, António Henrique, Afonso Costa, Editora Arcádia, Lisboa, 1972.
  • MARQUES, António Henrique [Org. Joel Serrão], A Primeira República Portuguesa: alguns aspectos estruturais, Colecção: Horizonte, nº13, 2ª Edição, Lisboa, 1975;
  • MENESES, Filipe Ribeiro de, Afonso Costa, Texto Editores, 1ª Edição, Lisboa, 2010;
  • MOURA, Carlos André, “A Recatolização e as Ortopráticas no culto à Fátima em Portugal e no Brasil [1910 – 1942]”, Revista Saberes e Práticas Científicas – ANPUH, Brasil: Rio de Janeiro, 2014
  • MOURA, Maria Lúcia, “A resistência e o acatamento à República no seio do clero português”, Revista Lusitania Sacra, CEHR – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2011, pp. 25 – 41.
  • MOURA, Maria Lúcia, A “Guerra Religiosa” na Primeira República, Centro de Estudos de História Religiosa: Universidade Católica Portuguesa, FCT, Lisboa, 2010;
  • RAMOS, António de Jesus, “A Igreja e a 1ª República: a reacção católica em Portugal às leis persecutórias de 1910 – 1911”, Revista Didaskalia, Universidade Católica Portuguesa, 1983;
  • RAMOS, Rui [org. José Mattoso], História de Portugal: A Segunda Fundação [1890 – 1926], Editoral Estampa, vol. VI, Lisboa, 2001.

Anexos

Figura 1 – Manifestação anticlerical em Lisboa, ano de 1912.

Figura 2 – Caricatura de 1914 mostrando Afonso Costa a estrangular os jesuítas e ameaçado pela serpente do Vaticano.

Figura 3 – Assinatura da Lei de separação do Estado das Igrejas pelos membros do Governo Provisório.

Figura 4 – Destituição do bispo do Porto: D. António Barroso descendo do automóvel à porta do Ministro da Justiça.

Figura 5 – Multidão em Fátima por ocasião do «Milagre do Sol», em 13 de Outubro de 1917.

Figura 6 – António Maria Alves S.J. e Afonso Costa na prisão de Caxias, 13 de Outubro de 1910.

Arquivo da Brotéria.

Figura 7 – Medições frenológicas de António Maria Alves na prisão de Caixas, Outubro de 1910.

Arquivo da Brotéria.

Figura 8 – Os jesuítas em Portugal, adaptado de Illustração Portugueza, N. 246, 1910, pp. 582-588.

Índice Remissivo

Acção Católica – 9, 40

Afonso Costa – 9, 12, 13, 23, 31, 32, 34,

35, 36, 38, 40, 42, 44

Anticlericalismo – 15, 23, 31 Assembleia Nacional Constituinte – 25 Augusto Comte – 27

Bento XV – 7, 13, 39, 40, 41

Câmara dos Deputados – 35 Carta Pastoral – 32, 33, 40

Catolicidade – 10, 15, 29

Centro Católico Português – 41, 44

Cidade do Vaticano – 20, 21, 23

Companhia de Jesus – 24, 31, 37

Constituição – 16, 23, 25, 26

Contemporaneidade – 11, 44

D. António Barroso – 32

D. António Mendes Bello – 39

D. Carlos – 23, 35

D. Luís – 23

D. Manuel II – 23, 35

Deus – 15, 26, 27, 28

Doutrina – 15, 24, 43

Encíclica “Iamdudum in Lusitana” – 28, 29, 30

Estado – 10, 15, 17, 21, 22, 23, 25, 26,

27, 30, 32, 33, 38, 41, 42

Europa – 9, 14, 18, 20, 23, 28, 43

Governo Provisório – 13, 23, 25, 32

História Constitucional – 7, 25

Igreja Católica – 10, 13, 14, 15, 16, 17,

19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 33

Jesuítas – 28, 37

Laicização – 28, 30, 33, 37

Laico – 24, 27, 33

Leão XIII – 21, 22

Lei de Separação do Estado das Igrejas – 24, 25, 29, 30, 33, 36, 40

Leis persecutórias – 7, 13

Liberalismo – 14, 15, 20, 22, 23

Lisboa – 32, 40 Manuel Arriaga – 27 Maçonaria – 16, 35

Mensagem de Fátima – 41, 43

Monarquia Constitucional – 7, 9, 13, 22,

23, 34, 35, 43

Papado – 13, 18, 19, 23, 28, 38, 39, 44

Pio IX – 18, 20, 21

Pio X – 7, 13, 28, 30, 32, 40

Portugal – 9, 10, 16, 17, 18, 19, 20, 26,

29, 33, 34, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43

Primeira República – 7, 9, 12, 13, 16,

19, 22, 23, 26, 28, 33, 37, 38, 39, 40,

43, 44

Questão Romana – 18, 20, 21, 43

Recatolização – 9, 41

Reino de Portugal – 19, 22

Republicanismo – 23, 30, 37, 44

Santa Sé – 7, 15, 18, 19, 20, 22, 26, 28,

34, 39

Secularização – 28

Sidónio Pais – 40, 42 Teófilo Braga – 23