Sobre o 10 de Junho de 2025 ou Lidando com a Lídia

Que Lídia Jorge integrasse o Conselho de Estado ou o cânone literário nacional era-me circunstância irrelevante e desconhecida, e o seu discurso no Dia de Portugal apenas consolidou essa mesma insignificância. Não obstante, tratando-se de uma alocução pública com ambição simbólica, proferida em nome da República Portuguesa, impõe-se, com inteira legitimidade e até com sentido de responsabilidade cívica, a contestação do que se configurou, em essência, como um exercício de pseudo-erudição presunçosa, aparente apanágio das elites ineptas e utopistas que comprometem os destinos de Portugal. Curiosamente, Lídia Jorge escolheu ignorar, por omissão involuntária ou cálculo ideológico, que o 10 de Junho, enquanto data comemorativa, não emerge de um impulso popular espontâneo nem de qualquer pacto emocional amplo. Foi uma criação intelectual e política do final do século XIX, nascida no seio do republicanismo jacobino, que, carente de figuras unificadoras da pátria, encontrou em Camões um símbolo civilizacional e aglutinador. Trata-se, portanto, de uma efeméride moldada em ambientes académicos, literários e ideológicos, criada séculos após a morte do poeta. Na sua versão actual, sobrevive desprovida da energia crítica que a poderia tornar relevante, amputada sobretudo da verve camoniana que denunciava sem pudor a venalidade, a decadência institucional e a corrupção moral do poder espúrio.

Entre o penteado de rigidez cerimonial e a maquilhagem cuidadosamente aplicada para mascarar os sinais do tempo, fica condensada a imagem de uma mulher conformada à estética da respeitabilidade senil da fidalguia em declínio que personifica. Dotada de um timbre trémulo, hesitante e por vezes titubeante, Lídia Jorge proferiu um sermão laicizado, imbuído de reminiscências de sacristia ideológica, com uma retórica própria de uma figura decorativa de regime, revestida de moral pseudo-humanista e de uma nebulosa incerteza prospectiva, edificada com fragmentos dispersos de história e banalidades emotivas, amalgamadas por um léxico inflacionado e desprovido de substância conceptual.

Foi, no geral, um discurso errático e estruturalmente difuso, pontuado por dissonâncias temáticas súbitas, onde, por exemplo, um lamento tecnológico de feição ludita coexiste com uma exaltação da memória histórica reinterpretada com credenciação tecnológica, segundo os padrões de uma academia permeada por correntes ideológicas de matriz marxizante. Encarna, por isso, a título de exemplo feminino, a antítese simbólica de figuras como Brites de Almeida, pois nem combate, nem propõe, nem exalta. Antes desconstrói, distorce e languidamente se extingue.

O discurso e estatuto de classe que Lídia Jorge corporiza representa o Portugal que Camões repudiava. O Portugal da auto-indulgência, da resignação, da decadência moral e material, dominado por uma inclinação venal que conduz, de forma quase inevitável, ao apagamento do seu vínculo identitário mais profundo. Nesta data, a locutora, em vez de enaltecer o poeta e a data em causa, abandona-se a uma meditação exangue, destituída de enraizamento, permeada por uma arrogância eurocêntrica de corte iluminista-missionário, transfigurando Luís Vaz de Camões e o povo português em “peregrinos prometeicos da Terra”, isto é, sujeitos desenraizados, moldados por um cosmopolitismo de laboratório, imposto por elites que rejeitam qualquer pertença orgânica ao tecido histórico e espiritual da nação.

A argumentação retórica apresentada não é apenas frágil, como também se revelou profundamente alienadora ao procurar apagar Camões da história viva e acomodá-lo num altar inócuo sob o rótulo de património da humanidade. Tal gesto constitui um acto claro de dessacralização cultural, já que Camões não pertence ao domínio dos ícones universais, pois é o poeta de Portugal, o intérprete da honra, da gesta, da língua, da amargura e da exigência. A sua epopeia não é e nunca será uma reflexão vazia sobre a condição humana em abstracto. É uma obra enraizada na experiência concreta de um povo com destino. A sua poesia denuncia e afirma, combate e lamenta. Não consola com indulgência, mas desafia com severidade. Não absolve, mas julga. Ama a pátria com intensidade e obriga-a, por isso mesmo, a ser grande.

A dado momento durante o discurso, recorre a uma retórica tecnológica-existencial, cuja vacuidade é notória. Substitui a análise política densa por imagens vagas e afectadas, como “pescoços em competição” ou “seguidores e fantasmas”, que em vez de elucidar o presente, apenas o ornamentam com um lamento ludita de retórica pobre e sentimentalismo difuso. O resultado é um discurso de crítica amorfa, destituído de densidade teórica, onde a ausência de referências históricas ou filosóficas fundamentadas revela não só a fragilidade da reflexão, mas também o seu propósito meramente performativo.
No momento em que Lídia Jorge declara que as comunidades portuguesas constituem o corpo essencial do ser identitário de Portugal, não profere apenas uma fórmula de cortesia institucional. Por trás dessa aparente benevolente banalidade, insinua-se uma reconfiguração simbólica profunda da própria ideia de Portugal. A portugalidade, que não existe sem enraização no próprio território, na língua e na continuidade histórica, é subtilmente deslocada para a diáspora, convertendo-se numa entidade volátil e transnacional. Tal deslocamento, longe de ser neutro, traduz-se numa progressiva dissolução da soberania cultural, o que caracteriza o pensamento e léxico pós-moderno da interveniente. Uma diáspora que sente verdadeira saudade do solo natal afirma precisamente a sua raiz, não a sua diluição, e quando se dissolve num outro espaço político e cultural, ainda que continue a construir pontes ou vínculos, não reforça a identidade de origem. Pelo contrário, substitui-a. Exaltar a diáspora como sede da nova portugalidade equivale, na prática, a renunciar à terra, à língua como destino e à continuidade orgânica do povo. Camões, cuja pena carregava o peso do sal e da guerra, jamais pactuaria com esta forma elegante de deserção e reinterpretação da identidade.

Também constatou a irrefutabilidade de que Camões elevou a língua portuguesa a uma expressão poética de rara excelência, mas falseando-o intelectualmente como um autor moderno nos termos em que hoje se entende essa condição, tentando retratá-lo como antecessor de certas leituras contemporâneas do colonialismo, e desconsiderando que a sua obra respira valores aristocráticos, imperiais, trágicos e profundamente patrióticos. Quando a discursante invoca um vago “pensamento novo” insinuando que o poeta estaria em sintonia com sensibilidades contemporâneas, promove uma leitura distorcida e intelectualmente desonesta que procura ajustá-lo a molduras ideológicas alheias ao seu tempo. Nada poderia estar mais distante da verdade, já que Camões não era nem prefigurador de progressismos nem precursor de cosmopolitismos sentimentais. O seu horizonte era o de uma nobreza de espírito inseparável da grandeza imperial, vista não como abuso, mas como destino providencial de um povo eleito para navegar, descobrir, dominar e legar. Pese embora se possa argumentar que Os Lusíadas contenham tensões internas, estas jamais se confundem com quaisquer mecanismos da denúncia pós-colonial. São tensões nascidas da decepção aristocrática, de uma crítica que emerge não contra o ideal imperial, mas da dor pela sua corrupção. Camões não combate o império enquanto projecto civilizacional, combate a sua indignidade e o desvio dos seus fundamentos éticos. Não pretende o seu colapso, mas a sua redenção através da virtude e da honra.

Convém ter ciente que, relativamente à trajectória de vida do poeta, sabe-se que foi errante, belicosa e marcada por instabilidade crónica, recusando participar em intrigas de cortesãos e demonstrando desdém pela adulação e aversão a servilismos. É, a meu ver, precisamente essa natureza insubmissa e profundamente anti-sistémica que o torna incómodo para a discursante, que tenta esvaziá-lo através da vitimização contemporânea ou da colagem oportunista a modas ideológicas do presente. Assim, aplicar ao século XVI os critérios morais e sociológicos do século XXI é um anacronismo crasso, considerando que nem sequer existia um público nacional letrado que pudesse consagrar Camões ou garantir-lhe reconhecimento material duradouro. Sabe-se igualmente que Camões beneficiou de uma tença anual de quinze mil réis, concedida por D. Sebastião em 1571, sinal inequívoco de reconhecimento institucional da sua obra. Apesar da imagem recorrente da sua morte em pobreza, importa sublinhar que Os Lusíadas foram concebidos para um público de elite, como bem demonstra a sua dedicatória ao próprio monarca.

Quanto ao paralelismo que Lídia Jorge estabelece entre Luís Vaz de Camões, Miguel de Cervantes e William Shakespeare, ao apresentá-los como uma tríade fundadora da modernidade literária europeia unificada por uma crítica abrangente ao poder, poderá sugerir à primeira vista um gesto de elevação douto. No entanto, quando submetida a uma leitura exigente, essa associação revela-se conceptualmente imprecisa, retoricamente forçada e perigosamente niveladora, já que converte Camões em uma figura neutralizada, expurgada da sua especificidade histórica, e moldada a um ideal universalizante que o desfaz na sua singularidade. Não existe qualquer vestígio de diálogo entre esses autores, nem de influência partilhada, nem sequer uma afinidade estrutural clara entre os seus projectos literários. Camões constrói uma crítica moral e política profundamente ancorada na experiência portuguesa do declínio imperial. Essa crítica emerge de uma ética do heroísmo, de uma exigência de virtude e de uma consciência trágica do destino nacional. Os impérios, para Camões, não tombam por ataques externos, mas pela degradação interna que corrói os seus fundamentos. Shakespeare, por contraste, representa o poder através de figuras dilaceradas pela loucura, pela ambição e pela fragmentação interior. A sua linguagem é a do abismo psíquico e da culpa. Cervantes desmonta os resíduos de um ideal cavaleiresco em ruína, em um mundo que já não acredita em heróis, e transforma o delírio na única forma de transcendência possível. Shakespeare via o colapso interior. Cervantes, a erosão do sentido. Camões, o desmoronar da missão. Tentar incluir Camões neste agrupamento é um exercício de moldagem artificial ao gosto das leituras pós-modernas que procuram retirar ao poeta português a sua identidade épica, trágica e patriótica. Ao fazê-lo, apagam-se as diferenças fundamentais de contexto, de fim literário, de público e de vocação.

Camões não é um nome intercambiável numa galeria de humanistas ilustrados. É um corpo enraizado na sua língua, no seu tempo e no seu povo. Assim, a crise existencial do renascimento que atravessa essas obras é profunda e irredutível a slogans. Lídia Jorge, ao invocá-la, não mergulha no seu abismo, antes paira à superfície, instrumentalizando-a para ornamentar uma agenda moralista sem densidade metafísica e de legitimação de uma sensibilidade pós-moderna, enquanto ignora o conflito radical e específico que postulam essas obras. Reduzir a angústia trágica presente nas mesmas a meros sintomas de um mal-estar genérico associado à condição material é empobrecer a sua força, negando-lhes o peso do mundo para logo os tornar leves e decorativos.

A estrofe de Camões evocada por Lídia Jorge, “este deprava às vezes as ciências, os juízos cegando e as consciências, este interpreta mais do que subtilmente os textos, este faz e desfaz as leis, este causa os perjúrios entre a gente, e mil vezes tiranos torna os reis”, constitui uma acusação veemente contra as elites portuguesas do século XVI. Contudo, a discursante dilui-lhe a força histórica e a gravidade ética ao reencená-la como mera manifestação de “psicopatologia do poder”. Camões, nesse passo, não alude a desvarios clínicos nem a distúrbios conceptuais de foro abstracto. Denuncia, com clareza moral e intenção pedagógica, a corrupção sistémica, a decadência das virtudes públicas, a traição dos ideais fundacionais e a inversão da hierarquia meritocrática. Reconfigurar essa denúncia cortante à luz de categorias vagas como “subversão da boa convivência” não é apenas um anacronismo intelectual, é uma forma sofisticada de anestesia simbólica. Ao diluir a contundência moral do poeta em fórmulas vagas e afectadas, a discursante priva a obra do seu poder acusatório, transmutando-a numa alegoria morna e inócua, inteiramente compatível com a sensibilidade apaziguadora e o horizonte complacente de uma elite que teme o juízo e verticalidade do poeta.

Lídia Jorge procura igualmente transfigurar Camões numa figura profética, como se nele residisse uma antevisão do desastre de Alcácer-Quibir. Contudo, o tom camoniano não é oracular nem visionário, é antes racional, ético e trágico. Esta tentativa de o tornar um vidente revela-se um gesto de apropriação retórica, alheio ao seu enraizamento na tradição clássica e no horizonte moral do seu tempo. Pretende-se, assim, domesticá-lo, psicologizá-lo, esvaziá-lo da sua energia heroica, para integrá-lo numa galeria de humanistas ilustrados, reduzindo-o a busto funcional da pedagogia moralista da locutora. Neste processo, amputam-se-lhe os vínculos fundamentais com a pátria, a língua, a missão e o povo, convertendo-o num emblema etéreo de um cosmopolitismo anémico, onde tudo é moral abstracta e nada é memória histórica.

A referência ao Infante Dom Henrique constituiu uma tentativa deliberada de subverter o seu estatuto simbólico enquanto figura fundacional dos Descobrimentos. Ainda que o seu envolvimento no tráfico negreiro esteja documentalmente atestado, a forma como é apresentado no discurso em causa serve uma narrativa de denúncia unívoca, desprovida de qualquer contextualização moral, religiosa ou geopolítica própria da época. Reduzido ironicamente à figura de “alguém em cima de um cavalo”, o Infante é despido do valor emblemático que lhe foi atribuído ao longo dos séculos, sendo tratado como mero agente de violência estrutural. A redução dos Descobrimentos a uma sucessão de actos de rapina e submissão revela não apenas uma miopia histórica, mas uma instrumentalização ideológica orientada à reconfiguração identitária. A escravatura, embora inegavelmente praticada, foi uma realidade transversal a inúmeras civilizações, incluindo africanas, árabes e europeias, e está longe de constituir exclusividade portuguesa ou ocidental. Cumpre recordar que foi precisamente a Europa do século XIX, animada pelo progresso técnico, jurídico e filosófico, que liderou os movimentos abolicionistas com vocação universal. A narrativa que hoje nos é apresentada manipula deliberadamente esse passado para justificar novos mecanismos de diluição identitária, promovendo uma imigração massiva oriunda do terceiro mundo, adornada sob o véu da expiação histórica e do altruísmo humanitário compulsivo. Esta dinâmica, embora dissimulada por uma retórica redentora, replica em moldes contemporâneos e encapotados as lógicas antigas do tráfico e da exploração humana, que deveriam envergonhar qualquer civilização. A tolerância institucional à ilegalidade, a instrumentalização de mão-de-obra descartável e a organização de fluxos por interesses opacos constituem ecos perturbadores contemporâneos de antigas formas de servidão.
Para além disso, a antropologia da mestiçagem e da diluição identitária, hoje promovida como um imperativo inquestionável, não assenta em fundamentos neutros nem se sustenta em critérios científicos rigorosos. Trata-se de uma construção política orientada para a erosão dos pilares da soberania cultural, onde a centralidade da língua, a pertença ao território e a continuidade histórica são progressivamente indesejadas e apagadas. À heroicidade, que elevava a memória colectiva e nutria o espírito cívico, sucede um remorso perpétuo. A memória vertical, estruturada por hierarquias de valor e exemplos de grandeza, é substituída por um sentimentalismo horizontalizante que nivela todas as narrativas. Nesse processo, o orgulho nacional é eclipsado por uma culpa automática, instilada como condição prévia de pertença ao presente.

A locutora aproveita a efeméride para evocar de modo condescendente uma frase de Donald Trump, “Adoro os pouco instruídos”, onde curiosamente revela um preconceito velado sob a capa de superioridade ética. Proclama inclusão, mas exclui o dissenso. Invoca a humanidade, mas nega o humano tangível. Celebra o progresso, mas renega as raízes. A sua crítica transcende o populismo para atingir directamente o povo concreto e classes menos instruídas, não a abstração retórica de que se serve, mas aquele que trabalha a terra, honra os seus, ama a pátria sem ironia e dispensa seminários pós-coloniais para compreender o valor da justiça. O desprezo insinuado pela “falta de instrução” evidencia a arrogância de uma elite que se presume farol moral da humanidade, encerrada numa bolha académica e urbana, dissociada da vida empírica e da substância popular. A crítica ao populismo, enunciada a partir de uma cátedra elitista e alheada, revela a pretensão de quem ignora o serviço ao povo mas reivindica representá-lo. No mundo rural, tantas vezes caricaturado, subsistem formas de lucidez trágica, de sentido moral instintivo e de fidelidade às verdades elementares que a retórica cosmopolita não alcança. A discursante, ao alinhar-se com os cânones globalistas, rompe com o Portugal profundo, alienando-se da memória viva que faz da recitação de Camões um acto de dever e orgulho, e não de instrumentalização ideológica. Camões, tal como o conhecemos da sua obra, jamais absolveria semelhante discurso acaciano.

O discurso esgota-se numa tentativa disparatada de transfigurar Camões num emblema emocional da resistência humana, onde o poeta épico cede lugar a uma figura de pathos, mártir laico despojado de vocação trágica, pátria e densidade moral. Confunde Camões com escravos, migrantes e outros proscritos, amputando-lhe qualquer singularidade histórica e cultural, e cristalizando o que se poderá designar de culto de penitência pós-nacional. Um discurso que amalgama lirismo pueril, memória manipulada e moralismo globalista para propor uma narrativa desenraizada da história portuguesa. Em vez de se celebrar Portugal, encena-se um país exausto e envergonhado de si mesmo, onde os heróis são rebaixados a cúmplices, a identidade desfaz-se em fluidez programada, e o futuro é uma incógnita remetido à contingência de forças alheias à vontade nacional. A exortação à grandeza cede lugar à resignação, o chamamento ao combate é substituído por um murmúrio de arrependimento, e a lucidez patriótica dissolve-se num sentimentalismo tíbio e inócuo. A imagem de Camões que a discursante projecta é anémica, desfigurada, reduzida a uma sombra inócua e estéril, despida de vigor trágico ou fulgor épico. Invoca-o como alegoria de valores universais, mas fá-lo ao preço da sua amputação simbólica, cujo fim último é sepultar a sua figura num túmulo de irrelevância cultural, cometendo um acto de verdadeiro assassinato simbólico do maior poeta nacional. Neste enquadramento, Camões deixa de ser o poeta do Império e da pátria concreta para se converter num espectro funcional, despojado da sua densidade trágica e transfigurado em emblema sentimental moldado à medida de narrativas demo-liberais. A sua figura é assim adaptada ao molde confortável de uma portugalidade desterritorializada, dócil, anódina e desvinculada de qualquer exigência histórica.

Finaliza dizendo que, em comum com Camões, tem a ideia do ser humano como um ser de resistência e de combate, só sendo preciso determinar a causa certa, e declara que Camões nunca mais morreu. Esta ambiciosa tentativa de encerrar a sua alocução com uma nota apoteótica revela uma flagrante dissonância entre a proclamação e o conteúdo, e certamente que a resistência e combate nunca poderá ser o mesmo, já que não logra explicar a missão de Camões, nem determina uma clara e indubitável causa a seguir. Ao longo da sua penosa intervenção, a oradora dedicou-se inteiramente ao esvaziamento simbólico do poeta e à dessacralização da sua obra. Camões, contudo, sobrevive. Sobrevive não por obra dos seus intérpretes pós-identitários, mas apesar deles. A sua voz, forjada na dor, na exigência e na lucidez trágica, resistirá incólume à domesticação e ao apagamento. Não morreu, de facto, e permanecerá insubmisso frente aos que, sob o pretexto de um humanismo amorfo, procuram neutralizá-lo. Enquanto houver quem o leia com rigor e lucidez, Camões continuará a fulgir não como sob a forma de ícone resignado, mas como chama viva e irreprimível da consciência nacional. Lídia Jorge, em contrapartida, jamais inscreverá o seu nome entre os vultos que dignificam a memória portuguesa. A sua intervenção nas comemorações do Dia de Portugal não a consagra, desonra-a. Ficará registada não como legado mas como mancha, episódio infamante de um tempo em que o prestígio institucional se divorciou da grandeza de espírito.

Em anexo: Discurso nas Cerimónias Oficiais do 10 de Junho – Lídia Jorge (2025)

Este ano de 2025 não estava no meu horizonte, mas agradeço. Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua história, contemplando memórias de batalhas, ações de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante. Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto. a assunção de que um poeta do século X nosou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo e que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a terra. A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura de origem. O país retribui-lhes, reconhecendo desde há muito que as comunidades portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário. Mas as celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados 29 anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que mudou e o que justifica que, de novo tenha sido escolhida para ser palco das celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos. É sabido que lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o promontório de Sagres. A escassos 40 km de distância, sagres e lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva, cujo papel se encontra em avaliação. A a comunicação digital, que se afirmou a partir dos anos 90, permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico designado por terras do infanto. Era a altura de atribuir a Lagos de Novo o Estatuto de Cidade merecedora, de acolher estas celebrações e de fazer refletir a sua importância como polo aglutinador de interesse cultural. Mas há outro motivo para que este ano a celebração deste dia seja particular. Desde há do anos que estamos a evocar o nascimento de Camões ocorrido há 500 anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos como decorreu a sua infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um certo maestro célebre disse de Bitovan. Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu. Nunca mais morreu. Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido revisitada ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido atualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem ansaísta Carlos Maria Bobon pôs recentemente, recentemente em relevo, o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo que resultaria definitivamente na língua portuguesa moderna que hoje usamos. demonstrou como a língua portuguesa manobrada no seu esplendor resultou como uma dádiva que devemos ao grande cantor do oceano, como lhe chamou Baltazar Staço. Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida, afinal lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índico redigiu na margem de um exemplar dos lusíadas, presumivelmente oferecido pelo próprio autor, escreveu o frade e lovi morir em um hospital em Lisboa, sem entender uma sábana com que cobrisse Depois de haver navegado 5500 léguas per mar, assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana já depois de morto. Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos, conceitos sobre vida humana e seu mistério. Isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que se se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Hipérbole é linda. Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de camões, como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior. Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico, como é em Sobos rios que vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar. Ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, têm em conformidade com os tempos em que o próprio viveu. Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao ciclo, ao fim de um ciclo e sob a consciência dessa mudança, no conjunto das 1128 que compõem os Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia. Então, aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género, o paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado da criação do império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que passados 50 anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo pode-se dizer que os lusíadas, poema que no fundo justifica que o dia de Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia. É bom lembrar que entre os séculos X e X7, três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos. E no entanto, os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare, Servantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os mecanismos universais do poder. Corpos que continua válido e intacto até aos nossos dias. sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o poder temeroso e o poder lachista. No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então, queixava-se da degradação moral, mencionava o vil interesse e sede e miga do dinheiro que a tudo nos obriga e evocava, entre os vários aspectos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem. que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava depois na prática, na degradação dos atos do dia- a dia. Escreve o poeta no final do canto oitavo. Este deprava às vezes as ciências, os juízos cegando e as consciências. Este interpreta mais do que sutilmente os textos. Este faz e desfaz as leis. Este causa os prejúrios entre a gente. E mil vezes tiranos tornam reis. Na verdade, Camões e Servantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que viveram. Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que que lutavam entre si por o domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a terra ao pescoço como se fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência”, escreveu Shakespeare no ato qu do rei Lier. “É uma infelicidade da época que os loucos guem os cegos. Enquanto isso, Servantes criava a figura genial do alucinado Dom Quichote de Lamancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo dos Lusíadas, não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si, por si mesmo, haviam sido proféticas em resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer Kibir ocorrido em 1578 estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto 10o. Era a história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura. No entanto, o fim de ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global, porque nós agora somos outros. Deslocamos-nos à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam para o espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de século que se seguiu ao tempo da renascença malograda relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder de mente aliado ao triunfalismo tecnológico faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque. E os cidadãos são apenas público que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as comunidades portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a pena regressar a Lagos. Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para o mundo. No início da idade moderna, lagos e sagraram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. o promontório e a silhueta do infante austero, que sonhou com achamento de ilhas e outros descobrimentos como parte de uma guerra santa, antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela terra inteira. e a lenda coloca-o a meditar em sagres. Numa referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sofia escreveu: “Ali vimos a viamência do visível, o aparecer total exposto inteiro e aquilo que nem sequer ousáramos sonhar era o verdadeiro. Esta ideia de que na mente do infante se processou uma epifania anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal. que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sacres passou assim para a história e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia, o discurso público que prevalece é, sem dúvida, sobre o pecado dos descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade. É preciso sempre sublinhar para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade. O que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso. Agos precisamente oferece às populações atuais a par do lado mágico dos descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorço pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas Áfricas, nas costas da África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX. Lagos expõe a memória desse remorço. Mostra como num dia de agosto, de calor tórrido de 1444, desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia. E como foram repartidos e por quem? Alguém que muito presamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o próprio infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica. Lagos também mostra o local onde depois em levas sucessivas iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo quando morriam sem um pano em envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo de lagos os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta. Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui no dia de hoje. Aliás, a UNESCO criou a rota do escravo e inscreveu lagos na rota da escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os princípios do amor e sob a lei dos direitos humanos. Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene. Homens não se matem aos outros. É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 144, porque o cronista do infante, Dom Henrique o narrou. Ees Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou de forma comovida como a chegada e a partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da crónica dos feitos de Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo, semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse. O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa contemporânea. Em lagos, hoje, em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de Simon Knibone, datado de 2014, que tem corrido mundo. A cena é nossa contemporânea. Passa-se no mar, num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre está um tripulante que a vista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta: “De onde vê a vocês?” “Da lancha apinhada?” Alguém responde: “Vimos da terra?” Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de imigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar. Consta que em pleno século X7 10% da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui e nos misionamos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do Europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do Senhor que o escravizou, filhos do pirata e do que foi roubado, mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas. A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte. Agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta: quando ficaram quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem máquina entrarem no novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano? Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu. Regressa sua obra para procurar entender que conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto primeiro dos luzíadas, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos, onde pode acolher-se um fraco humano, onde terá segura a curta vida, que não se arme e se indigue no céu sereno contra um bicho da terra tão pequeno. Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão do ser humano e a sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo. Mas na prática essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu de Camões só teve um lençol, o oferecido a separá-lo da terra, igual à sorte do seu corpo, essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos escravos aqui em Lagos. Mas, entretanto, o século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado começou a emergir. Criaram-se documentos essenciais, tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos e durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo, só que ultimamente regrite-se a cada dia que passa. O conceito de representatividade respeitável da figura do chefe de estado, oriundo do povo grego. Princípio princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos evangelhos. Essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos está a ser subvertida. A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende. Um chefe de estado de um de uma grande potência durante um comício, pôde dizer: “Adoro-vos. Adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais. Hoje, dia de Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo perguntar sem querer ofender quem quer que seja. Perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência. Nós portugueses não somos ricos, somos pobres e injustos. Mas ainda assim derrubamos uma longuíssima ditadura e e terminamos com opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criamos uma comunidade de países de língua portuguesa e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz. Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força. Leio Camões, aquele que nunca mais morreu e comoovo-me com o seu destino. Porque se alguma coisa tem em comum ele que foi géio e eu não sou, é a certeza de que partilhe da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa. Muito obrigada.