As polémicas que permeiam a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento têm-nos mantido entretidos ao longo dos anos. De usos políticos a discussões ideológicas, as discussões pecam por ser desligarem da realidade da escola, dos alunos e das suas famílias. Acima de tudo, pecam por não perceberem o impacto e a função que esta disciplina se propõe a ter. Para dissipar algum deste ruído, comecemos então pelo início.
Com o lançamento das bases para a criação de uma Estatégia Nacional de Educação para a Cidadania através do Despacho n.º 6173/2016, de 10 de maio, estabeleceu-se a universalidade desta disciplina na escola pública enquanto veículo para a consolidação de competências e conhecimentos no âmbito dos direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, inclusão, educação sexual e rodoviária, entre outros. O objetivo prende-se com a “formação do indivíduo como cidadão participativo”. Divididos os temas por diferentes grupos e níveis de escolaridade, esperava-se que a introdução desta disciplina no currículo oficial fizesse confluir os objetivos da mesma com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e com as Aprendizagens Essenciais.
Na instituição onde lecionei durante dois anos – que se encontra incluída no Programa de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) e que serve diversos bairros municipais de Lisboa – não só se concentra um elevado número de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade socioeconómica, como é também a escola de referência para alunos com baixa visão. Nos últimos anos, devido à fixação de imigrantes nesta zona, este estabelecimento tem recebido também muitos alunos do Nepal, Bangladesh e Ucrânia, que se juntam à população escolar de etnia cigana e aos estudantes oriundos do Brasil.
Alguns destes alunos possuem conhecimentos básicos de português (e de inglês), sendo que são incluídos no nível de iniciação A1 na disciplina de Português Língua Não Materna. Os alunos PLNM – novamente, na escola onde lecionei – reúnem-se frequentemente em grupos pequenos, comunicam nas suas línguas e mantêm-se relativamente afastados dos restantes colegas. Dentro da sala de aula alguns professores adotam estratégias que lhes permitem comunicar com os alunos PLNM, seja falando em inglês, recorrendo ao tradutor automático ou ensinando através de jogos interativos e didáticos. Outros ignoram-nos, resguardando-se na justificação de que em breve estas famílias migrarão para outro país e, como tal, não são problema seu.
Sendo uma escola onde os conflitos entre alunos são frequentes, muitas vezes devido a quezílias trazidas dos bairros, no espaço exterior é comum ver os alunos PLNM a conversar entre si, jogando no telemóvel e por norma afastados (e desconcertados) com o caos a que frequentemente se assiste no recreio. A esta confusão muitas vezes juntam-se familiares de alguns alunos que, quando não conseguem entrar sub-repticiamente na escola, se instalam ao portão aguardando a sua oportunidade para um qualquer ajuste de contas.
É neste ambiente de forte consciência cívica e democrática que os alunos são inscritos nas aulas de Cidadania – as quais, diga-se de passagem, lhes fazem muita falta, independentemente de para onde penda a nossa inclinação partidária.
Nos dois anos em que lecionei nesta escola fui professora desta disciplina ao 5º e ao 6º ano. Enquanto final de ciclo, o 6º ano acaba por reter os alunos que foram magicamente passados por professores em situação precária e, muitas vezes, desiludidos com o sistema de ensino. Mas também por outros que acreditam que a escola pública portuguesa, na grande escala evolutiva da pedagogia, se encontra muito atrás das “do norte da Europa” e que deve manter os alunos que não adquirem conhecimentos essenciais junto do seu grupo até aos exames nacionais, onde a lei natural da vida se ocupará deles.
Os alunos que magicamente passam, e que muitas vezes não sabem ler nem escrever no 9º ano, usam e abusam do único capital que possuem para chamar à atenção e compensarem pelas suas falhas – problemas comportamentais crónicos que arrastam nos anos escolares, com a conivência de professores e de decretos desligados da realidade das salas de aula. Estes comportamentos, muitas vezes reflexo da falta de civismo que repetem e arrastam para a escola, poderiam ser trabalhados numa disciplina, sei lá, de Cidadania, por exemplo?
A questão é, como fazê-lo? Como trazer para os mesmos valores alunos de origens tão diferentes, com objetivos de vida distintos e que são obrigados a frequentar a escola até aos 18 anos, onde não se reveem? Qual a linguagem comum a adotar com turmas em que os alunos não falam uns com os outros e que temem que as antipatias do recreio sejam reproduzidas na sala de aula (onde os professores se esforçam por manter alguma ordem)? E como fazê-los gostar de uma escola com tetos bolorentos, vinil do chão descolado, portas partidas e sem fechadura, vidros sujos e cortinados que se mantêm eretos com a sujidade de muitos anos sem verem água? E, já agora, que escola multicultural é esta?
No ano letivo de 2023/24, ao lecionar uma turma de 5º ano onde a inclusão de todos era mais utópica do que o comunismo (e aqui não me refiro apenas à inclusão dos alunos ciganos, brasileiros, ucranianos, nepaleses, bengalis, angolanos que a compunham, mas também àqueles com Necessidades Educativas Especiais), procurei encontrar na linguagem das emoções e da arte um léxico comum que me permitisse pôr em prática os objetivos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.
Cada aluno começou por identificar as suas emoções em diferentes momentos da sua vida escolar. Desenharam, pintaram e legendaram os seus sentimentos numa “roda das emoções”. Houve quem se sentisse “feliz” ao acertar numa resposta em matemática”; “zangado” (“quando os meninos maus da escola gozam connosco”); “orgulhoso” (“quando a professora diz ‘bom trabalho!’”); “triste” (“quando tiro nota baixa”); “entusiasmado” (“quando a aula de educação física começa”); “assustado” (“quando há uma briga”). Mas também “surpreendido” (“quando a comida na cantina é boa”) ou “preocupada” (“quando tenho aulas de bengala”).
Aos problemas identificados, pedi aos alunos que propussem maneiras de os resolver, praticando assim uma cidadania participativa e ativa que lhes pudesse ser útil não apenas ali, mas ao longo da vida. As conversas em sala de aula registadas no meu caderno de notas etnográfico desenrolavam-se assim:
- Sim, a escola precisa de obras em todo o lado, mas temos dinheiro para isso?
- Fazemos uma venda de bolachas!
- Mas qual a solução mais realista?
- Escrevemos uma carta ao diretor!
- E os computadores velhos e muitas vezes sem internet?
- Lá em casa ligamos para a NOS e eles resolvem…
- Ou então escrevemos uma carta ao ministério.
- E as salas sujas, como mudamos isso?
- As funcionárias não limpam… mas nós podemos limpar, também ajudo a minha mãe em casa.
- E como podemos tornar esta sala mais acolhedora? Podem escrever algumas palavras inspirados pelo que aprenderam nas aulas de Cidadania? Na língua em que quiserem.
Trazendo estes 17 alunos para uma realidade que melhor podiam controlar – a sala de aulas A7, com o seu projetor que não projetava, o chão estragado e as paredes sujas – foram desenvolvidas competências essenciais de formação recorrendo a uma abordagem multidisciplinar e a metodologias criativas e participativas, as quais se focaram na recuperação da sua voz e agência. Através da promoção de uma cidadania ativa, estes alunos foram motivados a participar diretamente na resolução de problemas que os afetavam no seu quotidiano. Saliento ainda aqui o papel que a escola deverá ter na promoção dessas mesmas competências, que lhes serão essenciais ao longo da vida e na superação de obstáculos de integração na sociedade que os acolhe. Que, aliás, é para o que de facto serve a disciplina de Cidadania, e não para discutir o sexo dos anjos.
Em articulação com Educação Tecnológica, transformámos a sala A7 num espaço onde os alunos se podiam de facto sentir incluídos. Pintámos a parede toda de branco, resolvendo assim com as trinchas as manchas que ali proliferavam. E depois desenhámos motivos que os alunos associavam à escola. Alguns aproveitaram o momento para pela primeira vez subirem às mesas com a autorização da professora. Outros resolveram questões antigas, imprimindo as suas mãos cheias de tinta nas costas dos colegas distraídos. E pela primeira vez, todos participaram numa atividade – mesmo o menino ucraniano que não fala nem português, nem inglês, e que se recusa a trabalhar ou mesmo a assistir às aulas.
A exploração das emoções destes alunos em contexto de sala de aula recorrendo a metodologias criativas permitiu assim reconhecer as suas motivações e medos, e apresentar estratégias de os confrontar, criando um espaço seguro para o seu crescimento emocional. Uma abordagem etnográfica centrada na promoção do diálogo multicultural, numa escuta ativa e no exercício da empatia, permitiu que se construíssem significados em conjunto, cumprindo-se assim com a aquisição das competências associadas ao perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória. É que os antropólogos e o seu método etnográfico fazem mais falta na escola pública do que apenas para tapar buracos na malha letiva – mas essa é conversa para outra ocasião.
Quando terminámos o mural, disse a uma das minhas alunas nepalesas que, no ano seguinte quando voltasse para o 6º ano, iria ter a sala à sua espera; ao que me respondeu que no próximo ano não estaria cá, os seus pais queriam ir trabalhar para a Bélgica. Mas, acrescentou, “deixo a sala bonita para os novos alunos”.
Catela, J. & Lopes, S. (2024). Notas etnográficas sobre práticas de Cidadania ativa numa escola multicultural. Revista Conhecimento Online, a. 16, v. 2, p. 181-206, jun./dez. 2024. DOI: https://doi.org/10.25112/rco.v2.3859