Mulheres na Tecnologia – Um Longo Caminho Para a Igualdade

A inteligência artificial enquanto conceito surgiu nos anos 50, quando “o trabalho das mulheres não era trabalho” e “a inteligência das mulheres não era inteligência”. Como explicou Jill Lepore no livro If/Then: How the Simulmatics Corporation Invented the Future, a inteligência artificial foi criada à semelhança do homem, com letra minúscula, excluindo as mulheres, o que ainda hoje tem consequências.

Quando a entrevistei para o livro “50 Women in Technology”, Rumman Chowdhury explicou que as decisões tomadas há setenta anos têm um grande impacto ainda hoje. “Eu tento pôr isto em termos que as pessoas compreendem: e se te for negado um empréstimo porque és mulher? Tu podes não saber, mas é porque, historicamente, as mulheres não podiam contrair créditos, muito menos empréstimos. Os maridos ou pais tinham de assinar por elas. Por isso, os dados relacionados com as mulheres são muito tendenciosos. É ainda pior para as pessoas de cor,’ apontou esta pioneira no ramo da ética dos algoritmos e da IA responsável.

Apesar de o avanço dos tempos ter trazido uma alteração em termos do acesso que as mulheres têm à tecnologia e a oportunidades de trabalho no sector, as estatísticas demonstram que ainda são muitos os desafios. Um estudo publicado pela Fawcett Society, em outubro do ano passado, revela que um em cada cinco homens a trabalhar no sector da tecnologia acredita que as mulheres “têm naturalmente menos capacidade” para exercer funções naquela área e que 43% das mulheres a trabalhar no sector da tecnologia pensam em abandonar os seus cargos pelo menos uma vez por semana.

Foto: ORNL/Dpt. of Energy

Outras conclusões apontam que uma em três mulheres negras já estiveram numa situação em que os colegas assumiram que elas não tinham uma posição qualificada e que três em cada quatro já experienciaram racismo ou outro tipo de exclusão no trabalho. Esse é o caso de Clarice Phelps. Enquanto esteve na Marinha, ingressou no Programa Nuclear. Quando terminou os estudos, conseguiu emprego numa empresa de instrumentos científicos em Chicago e, posteriormente, foi trabalhar para o Laboratório Nacional Oak Ridge (onde foi feita a separação do Plutónio para o Projecto Manhattan durante a Segunda Guerra Mundial).

Apesar de o seu percurso parecer de sucesso, os desafios persistiam. “Sei que não fui a primeira mulher a trabalhar no edifício, nem sequer a primeira mulher negra, mas acho que fui a primeira que teve uma função ligada à ciência. Quando cheguei lá, muitos pensavam que era a nova empregada da limpeza,” explicou-me Clarice Phelps, quando conversámos. “Houve muitos mal-entendidos sobre por que estava lá quando cheguei ao laboratório. Perguntava-me porque é que as pessoas assumiam que não era parte da comunidade científica. Depois via que quando chegavam os estagiários de Verão ninguém lhes perguntava se eram empregados de limpeza. Era desencorajador quão óbvio era,” continuou a primeira mulher negra a contribuir para a descoberta de um novo elemento para a tabela periódica — o tennessine, elemento 117.

Também nessa ocasião, que devia ter sido um momento alto na sua carreira, Clarice Phelps se viu excluída. “Houve um almoço de celebração e a minha supervisora perguntou-me se eu ia e eu nem sabia que ia acontecer. À porta estava uma senhora a garantir que o nome de quem chegava estava na lista, eu disse-lhe o meu nome, e ela disse que não o tinha lá. Eventualmente deixaram-me entrar. (…) Enquanto andava à procura do meu lugar, não vi o meu nome em lado nenhum. Na sala também havia um ecrã com os nomes de toda a gente que contribuiu para o elemento 117 no ORNL e o meu nome também não estava lá”. Passados alguns anos, ao contar a situação, Clarice Phelps riu-se. Na altura, porém, ficou “muito zangada e algo embaraçada”.

Clarice Phelps está longe de ser caso único. As mesmas estatísticas da Fawcett Society mostram que 72% das mulheres com uma função no ramo da tecnologia experienciaram alguma forma de sexismo. Isto inclui receber menos que colegas no sexo masculino e ser alvo de comentários sexistas (20%), bem como verem as suas competências questionadas.

Desvalorização e preconceito

Lise Meitner

Ao pesquisar sobre este assunto para escrever o volume 50 Women in Technology, deparei-me com uma série de casos deste género, não apenas nas pioneiras de há cem anos cujo trabalho só foi conhecido muito mais tarde ou que, embora estivesse à vista de todos, nunca fosse devidamente reconhecido (como é o caso de Lise Meitner, nomeada para 49 Prémios Nobel, sem nunca ter recebido um).

Atualmente, vale a pena atentar em casos como o de Gretchen Andrew. Quando terminou a faculdade conseguiu o que só podia ser considerado o trabalho de sonho – uma posição na Google, em Sillicon Valley. Porém, não estava feliz e, por isso, demitiu-se. Desde então usa a tecnologia para criar arte e, aos 35 anos, é conhecida pelos seus projetos arrojados, usando inteligência artificial e muita criatividade. Mulher e jovem, quando foi entrevistada explicou o tipo de desafios que teve de enfrentar até ser levada a sério.

“Eu estava a tentar ser levada a sério e a perder nesse jogo porque havia demasiada desconexão entre o que as pessoas esperam de alguém com o meu aspeto e o poder técnico do trabalho que estava a produzir. O meu apelido é Andrew, por isso, muitas pessoas perguntavam-me quem era este ‘Andrew’ com quem eu colaborava e se era ele a fazer a parte tecnológica do meu trabalho”.

A lista de exemplos continua: Emily Holmes, professora de psicologia na Universidade de Uppsala na Suécia, neurocientista e psicóloga, falou da primeira conferência em que participou. “Na primeira conferência que alguma vez dei houve uma pessoa a perguntar-me de quem eu era namorada. Tive de dizer que não era namorada de ninguém, ia ser eu a fazer a apresentação”.

Erica Kang, fundadora e CEO da “KryptoSeoul”, atentou noutro desafio enfrentado pelas mulheres na tecnologia – o assédio. “Eu gosto de me aperaltar. Gosto de me vestir bem, mas quando o faço e vou a reuniões, as pessoas olham para mim como uma modelo com a qual podem brincar. Houve muito assédio sexual logo desde o início”, contou.

Katalin Karikó, que recebeu o Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia em 2023 pelos seus contributos para o desenvolvimento das vacinas contra a COVID-19 foi despedida da sua posição na Universidade da Pensilvânia por não conseguir financiamento para a sua investigação focada no RNA. Foi essa mesmo trabalho que serviu de base para o desenvolvimento das vacinas da Pfizer-BioNTech e da Moderna durante a pandemia.

Sheri Graner Ray

Outro ramo em que as mulheres continuam a ser uma minoria – tanto enquanto trabalhadoras como consumidoras do produto final – é a indústria dos videojogos. Sheri Graner Ray, designer de jogos e autora de um livro intitulado “Deisgn de Jogos Inclusivo – Expandindo o Mercado” falou da sua experiência enquanto única pessoa que fazia a pergunta “e se a pessoa a jogar for uma mulher?”.

“Naturalmente, eu perguntava ‘e se for uma rapariga a jogar?’. Eu pensava assim. ‘Porque é que não há uma personagem feminina que possa escolher?’. Primeiro, riram-se de mim. Depois, começaram a ficar irritados. Passado um tempo, começaram a ter reuniões de design e a não me dizer onde eram. Eu olhava à minha volta e perguntava onde estava toda a gente. Tinha de ir a diferentes salas de reuniões para ver onde estavam e depois diziam-me que se tinham esquecido de me avisar. Era porque eu ia às reuniões e perguntava ‘e se o jogador for do sexo feminino?’. Na altura (anos 80) era algo em que nem queriam pensar”, contou.

O futuro

Tendo entrevistado 27 mulheres que exercem funções em diversos ramos da tecnologia, uma tendência é evidente: embora a dificuldade de acesso a essas áreas já não seja o problema que era há cinquenta anos, a progressão na carreira ou a obtenção de investimento ainda é mais difícil para as mulheres do que para os homens. Perserverança, paciência e resiliência são as palavras de ordem mais repetidas por todas as pessoas com quem falei.

Estas dificuldades podem explicar em parte o que foi noticiado pelo jornal “The Guardian” há cerca de uma semana. Um estudo feito pela organização “Teach First”, no Reino Unido, aponta que 51% dos pais de uma classe mais baixa acredita que é pouco provável que os seus filhos sigam uma carreira na área da Ciência, Tecnologia, Engenharia ou Matemática (STEM). Questionados sobre as barreiras que os seus filhos enfrentam, os inquiridos apontam “falta de confiança, poucos modelos a seguir no ramo e um sentimento de que os seus filhos não veem o sector como sendo para alguém como eles”.

Dr. Anna Lukasson-Herzig, NYRIS, DUESSELDORF, Daniela Miska, Daniel

Anna Lukasson-Herzig, engenheira de processos de automação, que também entrevistei para o “50 Women in Technology”, falou sobre como a falta de confiança no caso das crianças do sexo feminino pode começar logo na infância. “É essencial acabar com os estereótipos que ainda existem na educação. Frequentemente diz-se às meninas que não podem ser bem-sucedidas na tecnologia ou matemática. A forma como a matemática é ensinada na escola tende a ser orientada para o sexo masculino, com professores predominantemente homens, o que inadvertidamente desencoraja as meninas. É crucial encorajar jovens mulheres a reconhecer que o problema não são as suas capacidades, antes a forma como estas disciplinas lhes são apresentadas. Isso tem de mudar. A tecnologia não é a barreira.”


Nota editorial: deixamos aqui a recomendação da obra mencionada no artgio e a propósito da qual o mesmo foi escrito, sendo-lhe inteiramente dedicado: 50 Women in Technology, Introduced by Georgina Ferry, Foreword by Bridget Greenwood, Interviews and Biographies by Inês Almeida, “a full-colour book celebrating female pioneers and trailblazers in STEM. It features 25 extraordinary women in history from Ada Lovelace to Emmanuelle Charpentier, as well as over 25 exclusive interviews with incredible women who are leading the way in the fast-paced world of technology today”, editado pela Aurora Metro, de Londres, em 2023. Disponível aqui.