Muriel, ou da Poesia – O Reencontro como Desencontro Necessário – Ruy Belo e o Cinema

Texto de Teresa Bartolomei1. Revisão de Ana Sérgio e Sílvia Pereira Diogo. Imagens: fotogramas de Muriel, Alan Resnais, 1963, de film-grab.com. Uma primeira versão reduzida deste texto foi apresentada na sessão: MURIEL, ou LE TEMPS D’UN RETOUR (Muriel ou o tempo de um regresso) de Alain Resnais, do Ciclo: O escritor na sala de cinema, comissariado por Raquel Morais e organizado pela CÁTEDRA CASCAIS INTERARTES – 21 de Abril de 2018 (Cascais, Centro Cultural de Cascais). Publicado originalmente na revista  Revista Cascais Interartes/Crossroad of the arts | nº1 | 2019. 

I. O DESENCONTRO NECESSÁRIO COM O NOSSO PASSADO – ENTRE UM FILME E UM POEMA

Estamos hoje aqui em volta de um filme e de um poema2 associados pelo mesmo título e pelo mesmo tópico – a inextricável mistura do amor, da memória, da culpa e da saudade. Não sei se isto chega para fazer desta dupla um par (sendo esta a grande pergunta de todas as histórias de amor), mas de certeza chega para reflectir sobre algumas perguntas que estas duas obras partilham entre elas e connosco, alimentando aquele nosso vão e admirável vício de tentar saber quem somos olhando para os outros.

Vamos ao cinema, lemos literatura e historiografia, tornamo-nos espectadores das vidas dos outros, porque achamos que assim nos encontramos a nós mesmos, nos percebemos melhor, e não há dúvida de que este exercício, como todas as ciências comparativas, tem um grande potencial heurístico. O problema, o que torna esta actividade comparativa um vício complexo e não uma simples virtude, é que ela nunca se mantém no limite de um saber, de um exercício puramente epistémico: suja-a e molda-a o desejo, esvaziando o sujeito no objecto que de observado se torna desejado. Ao aproximarmo-nos dos outros como espectadores (no cinema, na literatura, na contemplação de vidas em que não somos envolvidos), investimos neles o suplemento de desejo para o qual não há saída na nossa vida. Assim chegamos ao ponto de dizer: “Sinto saudades de alguém/ lido ou sonhado por mim/ em sítios onde não estive.”3 Na vida dos outros, só por serem outros, não apenas sabemos melhor quem somos, mas somos melhor quem somos (o que desejamos ser e não chegamos a ser). Como tão bem diz o poeta que nos convocou hoje à porta da sua palavra:

Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá

(“Muriel”, RB: 751)

Nesta nossa necessidade de ler poesia, ver cinema, ser espectadores das vidas de outrem não há apenas sede de saber. Há a sede do desejo, a profunda melancolia da impossibilidade de o satisfazer e os mecanismos oníricos e simbólicos de compensação desta frustração. A exteriorização representativa em figuras que veiculam ao mesmo tempo identificação e separação é uma forma de nos reconciliar com o facto da nossa insatisfação, ajudando-nos a governar a falta que nos atravessa e nos desseca: projectamos a felicidade que não temos como um fantasma no ecrã da nossa contemplação do mundo, como algo que existe, que vemos, fora de nós,4 objecto de visão por definição separado do sujeito.5

Assim, a lei do desejo transforma a sede de saber (de nos percebermos) em sede de não sermos nós, condena-nos à duplicação, levando- nos a sermos felizes apenas na representação da felicidade que encontramos além do nosso eu – no cinema, na literatura, na música, nas vidas contempladas fora de nós, eventualmente ao sermos a nossa própria vida como já não sendo nossa, duplicando-nos mesmos como outros,6 como os que já não somos, como aqueles outros que somos para nós mesmos sendo os nossos antepassados.

Se o encontro profundo com nós mesmos que procuramos no verdadeiro encontro com os outros, só o temos ao desencontrarmo-nos de nós, nos encontros que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes (onde só afinal amamos plenamente: nenhures amamos tão perfeitamente como perante um ecrã de cinema), para nos encontrarmos temos que nos apropriar da nossa vida como um reencontro connosco, como estratégia para sarar uma separação e uma perda que nos são indispensáveis para sermos aquilo que desejamos.

O círculo é, evidentemente, vicioso, não sanável, instituindo o passado como o nós inalcançável em que unicamente, impossivelmente, nos é dado reencontrarmo-nos. Saudade é ter o nosso passado como um objecto de desejo, a descoberta de não termos aquilo que somos (se aquilo que fomos é parte de nós, é parte daquilo que somos), é saber que só podemos ser e saber quem somos ao não ter o que somos: é por sermos despidos de nós que finalmente descobrimos o nós que a presença esconde, a ausência desvela. Nesta espiral de vida incessantemente rebobinada no desejo de um eu deslocado, não há encontro connosco se não no desencontro necessário do reencontro com aquilo que fomos sem sabê-lo, e por isso sem realmente vivê-lo, vivendo-o verdadeiramente só retrospectivamente como espectadores de nós mesmos, na melancolia dos sobreviventes da própria vida. O eu da saudade é o eu de quem é feliz apenas na lembrança daquilo que foi, numa altura em que não sabia que era feliz, que era inocente.O eu da saudade éum eu profundamente dividido, que acaba por desconfiar de si mesmo, que corre incessantemente o risco de ruir na clivagem interior, no desencontro consigo que cultiva, para satisfazer no procurado reencontro o desejo do encontro, o desejo de autenticidade.

Nasce assim, inevitavelmente, a suspeita que este sermos felizes no passado que já não somos, nos outros que não conhecemos, nos outros que nos são dados na representação artística, seja apenas uma ilusão, que no fim se vira contra nós, levando-nos a duvidar de nós mesmos. Quão traiçoeira seja a lembrança sabe bem quem a cultiva. Porque quanto mais lembramos, quanto mais a lembrança se afasta de nós, se autonomiza como algo que não nos pertence, criando uma sensação de alheamento: chegamos a duvidar que aquilo que lembramos seja algo de real, resultando tão longínquo, tão diferente do nosso presente, que não temos mais a certeza de aquilo se ter efectivamente dado:

Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu

(“Muriel”, RB: 751)

Que o passado (aquele inchaço doloroso de amor, culpa e fracasso que assombra os protagonistas do filme de Resnais) seja algo de real é a pergunta que a memória incessantemente levanta, de forma que a lembrança se converte incessantemente de evidência em confutação (daquilo que somos, daquilo que fomos):

Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não 

(“Muriel”, RB: 750)

Invocamos a memória como um lugar de encontro connosco, com a nossa identidade individual e colectiva. O dever da memória tornou-se efectivamente entretanto um mantra político e psicológico, uma fórmula mágica de autoajuda pessoal e colectiva: as sociedades e os indivíduos devem lembrar, não recalcar a memória, porque só não esquecendo o nosso passado preparamos o nosso futuro – diz-se algo pomposamente nas “mensagens” promocionais de saúde pública e privada. Mas cuidado (avisam-nos o poeta e o cineasta, naquela desconstrução do objecto memória que acomuna o filme e o poema)! A memória é um ardil: o seu efeito é frequentemente o oposto daquilo que nos propomos. Tira então segurança onde devia dá-la. Tira então estabilidade onde devia colocar-nos num sítio de manutenção da identidade, numa dinâmica cumulativa de corroboração e protração.

A vida é uma incessante despedida de nós mesmos, por isso até nós mesmos nos dissolvemos numa neblina de dúvidas e interrogações (“Mas sabia e sei que um dia não virás/ que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste/ ou até se exististe ou se eu mesmo existi/ pois na dúvida tenho a única certeza”).7 Se pensávamos que a memória fosse lugar de encontro connosco, descobrimos então que ela pode ser, pelo contrário, factor de dissolução dos lugares, condição de desencontro radical – “Terá mesmo existido o sítio onde estivemos? Aquela hora certa aquele lugar?”8.

Terá mesmo existido como história de amor, aquela ligação entre Hélène e Alphonse, feita de equívocos e mútuos enganos, que o velho casal desacoplado reata como fantasma projectado através de uma cadeia de outras relações de amor, com outras mulheres, outros homens (relações todas queimadas na compulsividade que une os dois personagens mais profundamente do que o amor, e que alimenta as suas verdadeiras paixões: o jogo para ela, a vida dupla para ele)? E que dizer do autoengano de Bernard, que quer lembrar como uma história de amor o relacionamento com Muriel, a mulher que ele torturou? Será então a lembrança deslocada no presente do amor uma cobertura do sentido de culpa associado ao passado? Serão lembrança e sentido de culpa duas formas diferentes de o passado se manifestar no presente, como presente? Serão duas formas alternativas e conflituais de lidar com o que se deu, na sua incompatibilidade com o hoje? Onde estará então a verdade?

Por isso, em vez que nos dar continuidade e estabilidade, a lembrança pode tornar-se factor de destabilização, realçando a descontinuidade do presente em relação ao passado, porque fomos aquilo que hoje não somos, numa complementaridade que pode exacerbar- se em incompatibilidade subjectiva (na comparação, ou é insustentável o passado, ou o é insustentável o presente): fomos crianças e hoje somos jovens, fomos jovens e hoje somos velhos, fomos apaixonados e hoje estamos sozinhos, estivemos na Argélia, em Madrid, e hoje estamos em Bourgogne, em Lisboa…, fomos culpados e hoje queremo-nos a todo o custo inocentes (como Bernard, o rapaz assombrado pela guerra, que mata para matar o passado: pretende restabelecer retroactivamente a própria inocência passada com a culpa do presente).

E ainda mais profundamente, a lembrança pode tirar-nos continuidade e estabilidade porque descobrimos hoje que não só mudámos nós em relação ao passado, mas muda o passado enquanto o tempo passa: o nosso passado de ontem já não é o passado de hoje, porque a cada dia o que fomos se altera aos nossos olhos, ao longo da alteração da nossa visão de nós. É esta a intuição que o poeta enuncia com extrema lucidez:

Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou 

(“Muriel”, RB: 749)

Nunca temos certeza do passado, porque não temos certeza do presente: “Tu sabes como era se soubesses como é”. Só se soubesse o que sou ao ser jovem, saberia o que fui ao ser criança. Só se soubesse o que sou ao ser sozinho saberia o que fui ao estar apaixonado. E ao ser velho saberei o que foi ser criança de forma diferente daquilo que soube sê-lo ao ser jovem.

Mais precisamente: o conteúdo da nossa lembrança altera-se à medida da alteração daquilo que sabemos, ou que acreditamos saber. O paradoxo é que a lembrança é um conteúdo do nosso saber (antes de mais de nós mesmos). Saber, como diziam os gregos, é memória. Mas ao mesmo tempo a nossa lembrança, a nossa memória, tem como conteúdo o nosso (alegado) saber. O conteúdo converte-se incessantemente em contentor e nessa reversibilidade dá-se uma alteração permanente, porque aquilo que somos hoje, que sabemos hoje, que queremos hoje, assim como o nosso saber hoje quem somos, altera o nosso fomos, como nos é entregue pela lembrança, pela culpa, pelo desejo – pela saudade.

Perante este paradoxo e a carga disruptiva que ele representa para o papel da memória na construção de identidades estáveis, na construção do nosso presente, a resposta de muitos (psicólogos, políticos, filósofos, homens de religião) é a narração: apenas quando convertemos as nossas lembranças em histórias, apenas quando moldamos a memória em dispositivo hermenêutico de fazer sentido numa intriga que institui os factos como acontecimentos, em redes de razões (explicativas, motivacionais, simbólicas), conseguimos fazer da memória um eixo de continuidade e de saber fiável, conseguimos fazer da memória uma evidência e não um factor de corrosão: lembrança, culpa e saudade devem compatibilizar-se numa narrativa racionalmente consistente e simbolicamente adequada em que passado e presente se compatibilizam como complementaridade estável, em vez de colidirem como alternativa instável.

Por grande que seja o valor desta intuição narrativista, por evidente que seja a sua pertinência psicológica e cívica, ética e religiosa, porque efectivamente sem histórias não há humanidade, ela torna-se, todavia, ilusão ideológicasepretendeserco-extensivaaoespaço da memória, abrangente da totalidade das suas dinâmicas. As histórias de certeza ajudam, são um dispositivo para contrariar a carga corrosiva da lembrança, mas a ambiguidade fundamental da memória não pode ser eliminada, apenas contrariada. Nenhuma história leva a cabo a tarefa de funcionalizar inteiramente a relação entre passado e presente como harmónica convergência e pacífica interdependência. A melhor, a mais poderosa das histórias não põe a palavra fim à possibilidade de contar de outra forma aquele fantasma que é o mesmo: o que aconteceu. Todo o reencontro entre passado e presente (toda a tentativa de manter uma continuidade de memória) é necessariamente um desencontro, é desencontro necessário: entre passado e presente haverá sempre, irredutivelmente, uma luta de que somos teatro permanente, alimentada incessantemente precisamente pelo passar do tempo, pela mudança imparável que ele acarreta.

A narração, dizem-nos igualmente Resnais e Belo, dizem igualmente o cinema e a poesia (como linguagens que podem utilizar a narração, mas não são constitutivamente narrativas –voltaremos a este ponto na segunda seção desta reflexão), não é um antídoto definitivo a este problema. Afinal, até a nossa narração de nós mesmos se altera ao longo do passar do tempo: na guerra entre passado e presente (Qual dos dois terá a última palavra sobre a nossa identidade? Quem realmente decidirá quem somos? O nosso passado ou o nosso presente?) não há vencidos nem vencedores, mas também nenhuma paz que uma bela história possa definitivamente instituir. Temos que conviver com esta incessante tensão, com esta contradição, com o facto de que em certos momentos da nossa vida, por exemplo, o hoje parece tão forte, tão poderoso que ‘acaba’ com a lembrança, a varre embora como lixo (por isso ecoa em nós com justeza inesquecível o magnífico hino ao esquecimento que cantava Edith Piaf: “Non, rien de rien, non, je ne regrette rien” ), enquanto em outros momentos o passado parece prevalecer na definição daquilo que somos, parece expropriar-nos radicalmente do nosso presente. Isto acontece principalmente quando é um passado de culpa, como no caso de Bernard: a culpa tira-nos o futuro; ou quando é passado de perda como no caso da Hélène, ferida pela dupla perda do primeiro amor e a seguir do marido – perdas reiteradas obsessivamente no jogo, na desesperada pulsão a matar o passado, mudando a sorte que o determinou e, uma vez, finalmente ganhar.

Há situações tão extremas de poder do passado sobre o presente (por ele ser condição de trauma, na intensidade da responsabilidade ou do sofrimento, do pecado ou da falta), que a lembrança não se deixa articular em narração: a memória bloqueia toda a narrativa, mina-a no acto mesmo de se produzir. É algo que se deixa reconhecer ao olharmos com sinceridade para as nossas vidas, para a resistência que ocasionalmente podemos ter em relação à confissão, como expressão narrativa do mal que fizemos ou dum sofrimento extremo que tivemos. O filme de Resnais foca precisamente esta dimensão de inefabilidade narrativa da lembrança como culpa ou como perda extrema (quem quer contar o amante que o abandonou, a recusa de amor que sofreu?) que assombra o nosso presente, o assujeita à força emocional do não dito e indizível, do não confessado e inconfessável, daquilo que a palavra não domina, mas domina a palavra e por isso domina o dono da palavra, o sujeito. O sujeito que não consegue dizer o passado é as-sujeitado a ele e está despido do próprio presente, que se torna irreal perante o poder do que foi, porque a factualidade não chega para garantir a realidade, que, do ponto de vista da experiência, se dá só como inerência subjectiva de um conjunto de referências perceptivas, conceptuais e sociais que se encaixam coerentemente. Do ponto de vista da experiência, o irreal é um estado de incoerência hermenêutica entre estes quatro aspectos – o subjectivo, o perceptivo, o conceptual e o social.

Experimentar o mundo e experimentarmo- nos a nós mesmos como ‘irreais’ é um estado insustentável, e o sujeito não poupa estratégias, geralmente ineficazes, para sair desta angustiante condição de perda do próprio presente assinalada por situações de inefabilidade narrativa da memória, ferida pela perda ou pela culpa. Um dos expedientes mais comuns, ainda que não dos mais proveitosos, é – como expõe o filme de Resnais – tentar ‘sair’ literalmente do presente insatisfatório, danificado, e voltar ao passado, predispondo um mecanismo de repetição.

Leia-se, a este propósito (num paralelo ulterior entre o realizador e o poeta), aquele outro grande poema de Ruy Belo que é“Madrid revisited”, que descreve o ‘voltar’ como metáfora da abordagem espacial à lembrança, na tentativa de fazer dela um reencontro com o próprio passado, à luz da grande, desesperada pergunta/esperança: a distância temporal poderá ser compensada, anulada, pela re-conjunção física com o lugar?

Se a separação temporal se sobrepôs a uma separação espacial, a disponibilidade da recuperação espacial – o facto que posso voltar ao sítio de que me separei – pode parecer uma vantagem, um dispositivo que facilita a reunião com o passado, sugerindo a possibilidade do milagre de a lembrança se tornar repetição. Não é este porém o caso – como o poema realça na sua desolada, chuvosa beleza, como o filme de Resnais expõe na delicada melancolia do fracasso de Hélène, cujo voltar ao primeiro amor no corpo reencontrado do amante não dá em nada, como esperado desde o começo pelo espectador. Afinal, a melhor maneira de lidar com o passado falhado é liquidá-lo, mas Hélène não é boa no seu negócio de vender móveis antigos:

Não sei talvez nestes cinquenta versos eu consiga
o meu propósito
dar nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim
habitual
a externa ordenação desta cidade onde regresso
Chove sobre estas ruas desolada e espessa como esmiuçada
chuva
a tua ausência líquida molhada e por gotículas multiplicada
0 céu entristeceu há uma solidão e uma cor cinzentas
nesta cidade há meses capital do sol núcleo da claridade
É outra esta cidade esta cidade é hoje a tua ausência
uma imensa ausência onde as casas divergiram em diversas
ruas
agora tão diversas que uma tal diversidade faz
desta minha cidade outra cidade
A tua ausência são de preferência alguns lugares
determinados
como correos ou café gijón certos domingos como este
para os demais normais só para nós secretamente rituais
se neutros para os outros neutros mesmo para mim
antes de em ti herdar particular significado
A tua ausência pesa nestes loca sacra um por um
os quais mais importantes que lugares em si
são simples sítios que em função de ti somente conheci
e agora se erguem pedra a pedra como monumento da
ausência
/…/
Aqui foi a cidade onde eu te conheci
e logo ao conhecer-te mais que nunca te perdi
Deve haver quase um ano mais que ao ver-te vi
que ao ver-te te não vi e te perdi ao ter-te
Mas a esta cidade muitos dão o nome de Madrid

(“Madrid revisited”, RB: 459-460)

Quando emperra o mecanismo hermenêutico de conciliação da lembrança com o nosso presente como história da nossa vida (porque o trauma do sofrimento, da perda, da culpa paralisam a memória na inefabilidade narrativa de uma ferida não sarada e não exprimível), o cansado de lembrar deixa-se facilmente capturar pela ilusão de uma tentativa tão sedutora quão impossível, esforçando-se por converter a lembrança em repetição graças ao suporte da permanência espacial: voltar ao lugar do crime10 (notoriamente esta é uma pulsão interior dos culpados e dos criminosos seriais: a culpa não assumida produz uma dificilmente resistível coação à repetição); voltar ao lugar da felicidade; voltar ao corpo do amor perdido.

O reencontro, porém, é sempre, inevitavelmente, um desencontro. Voltar revela-se um fracasso. A conversão da lembrança em repetição falha, porque (como diz Kierkegaard naquela grande obra que tem como título precisamente A repetição) a repetição é impossível11 se for projecto, operação voluntarista de reconstituição do passado no presente a partir de uma descontinuidade recusada, se não resultar antes de uma continuação renovada em que o passado se mantem como atualidade, como parte do presente.12 O espectador de si mesmo nunca pode identificar-se consigo como actor, porque o passado se torna objecto do desejo (ou do trauma) por ser irrecuperável (irreparável), pela duplicação do sujeito em conteúdo da própria representação. Além de toda a eventual (indemonstrável) razão ontológica (o agora do depois nunca será o agora de então), é esta a essencial razão hermenêutica pela qual o depois é sempre diferente do antes, e a iteração espacial (permitida pela permanência do lugar) não ajuda, pelo contrário, realça a irrealidade do presente-repetição na comparação com o passado. Se na lembrança é o passado que se torna irreal, na repetição é o presente que se torna irreal perante o poder (de catalisador de sentido e de desejo) de que é revestido o passado.

Vimos como esta diferença, esta variação, é identificada com extraordinária precisão e objectividade (a poesia é indeterminação, mas não inexactidão. Ruy Belo reivindica-o explicitamente: “nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim habitual”) nos poemas “Muriel” e “Madrid revisited”, que visam expor estas duas condições, de lembrança e de tentativa de repetição.

Na lembrança é o passado (de que Madrid é uma sinédoque) que se arrisca a tornar-se irreal: “e um dia decerto mesmo duvidamos/ dia não tão distante como nós pensamos/ se estivemos ali se madrid existiu”. (“Muriel”, RB: 751) Na repetição, pelo contrário, o sentimento de irrealidade produz-se em relação ao presente (de que Madrid é uma sinédoque): “É outra esta cidade esta cidade é hoje a tua ausência/ Mas a esta cidade muitos dão o nome de Madrid”. (“Madrid revisited”, RB: 460) Na repetição, o presente arrisca-se a implodir em imitação baça do passado (é esta a decepção de Hélène na sua tentativa infeliz de repetição amorosa) e as imitações, sabemo-lo bem, são ficções, falsificações.

Que fazer, então, da memória em que o passado não pode ser nem narrado nem repetido, mas tem uma tal carga de significado que o presente se torna pura e simplesmente ausência?

A tua ausência são de preferência alguns lugares
determinados
como correos ou café gijón certos domingos como este
para os demais normais só para nós secretamente rituais
se neutros para os outros neutros mesmo para mim
antes de em ti herdar particular significado

(“Madrid revisited”, RB: 459)

No caso desta memória tão ferida pela perda que se torna irredutível, tanto à reconciliação narrativa entre passado e presente, como à repetição, não há como a poesia (da literatura, do cinema) para dizer o passado de forma que a lembrança não resulte destruidora do sentido, aniquilaçãodopresente,masresultecompanheira dele, na melancolia resignada e firme de todo o encontro que se sabe desencontro. Nestes casos não podemos recorrer senão a palavras que são coisas (“And immediately Rather than words comes the thought of high Windows”): imagens que não são nem lembranças (conteúdo do passado inalcançável) nem repetições (imitações presentes do passado), mas partes constitutivas daquilo que fomos e somos, porque vindo do passado se tornaram condições de sentido do presente, continuam actuais. Entretanto “Misturei muitas coisas com a tua imagem”, diz Belo, mas como imagem “Tu és a mesma”: continuas a representar para mim o que representaste na altura, sem que o passar do tempo altere este papel existencial e simbólico que o passado te deu, que o presente continua a renovar.

É o que podem fazer a poesia (da literatura, do cinema): salvar as imagens da lembrança e da repetição, torná-las algo que continua, evitando reduzi-las a objecto (de saber, de desejo) contemplado e exterior, evitando a deslocação duplicativa do eu na memória, do eu na imaginação, mantendo-as como condição subjectiva de sentido. É este, diz Belo, o justo relacionamento poético (não diretamente, redutivamente autobiográfico) do artista com a própria palavra e com o papel da própria vida na escrita, é este o justo relacionamento hermenêutico (não narcisista), do leitor e do espectador com a expressão artística, acolhida não no voyeurismo esquizofrénico de colecionismo casuísta, mas num envolvimento reflexivo produtivo de sentido e não apenas de frustração e reiteração interminável:13

Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda

(“Muriel”, RB:752)

II. O DESENCONTRO NECESSÁRIO CONNOSCO – ENTRE CINEMA E POESIA

Mas como consegue a poesia (da literatura, da música, do cinema, das artes plásticas) esta façanha de salvar, romanticamente, alguns momentos da nossa vida, tornando-os imagens que não são nem repetição nem lembrança, nem imitação nem objecto perdido, mas condições de sentido, situações atuais de compreensão e expressão de nós mesmos que continuam, em que continuamos, em que andamos, em que vivemos?

e talvez venham aqui para salvar este momento
para salvar romanticamente este momento

(“Esta Rua é alegre”, RB: 305)

Como consegue a poesia fazer daquele desencontro que é todo o encontro connosco algo de dolorosa, magnificamente necessário? Esta pergunta encontra na lírica de Ruy Belo uma resposta tão discreta quão eloquente, tão elusiva quão exemplar.

A última obra publicada em vida por Ruy Belo, Despeço-me da Terra da Alegria, conclui-se com uma secção constituída por um único poema longo: “Enganos e desencontros”, escrito em Madrid em 1977. Pode ser meramente casual (sendo a morte de Ruy Belo tão violentamente prematura que não nos é fácil aceitar que ela tenha sido longamente preparada, como o poeta irónica-aziagamente declara: “Entramos no inverno. Quantos são?/ Tenho uma vasta obra publicada/ e tenho a morte em preparação” (“Mudando de assunto”, RB: 320).14 Mas quando são carregadas de significado, as coincidências ganham o poder simbólico da fatalidade. Assim se torna singularmente poético (daquela poesia dolorosa que as vidas dos poetas podem ter, ao escrever não apenas os próprios textos mas também as próprias existências como poesia) que o derradeiro poema do derradeiro livro com que Ruy Belo se despede desta terra de alegria e de sofrimento que é estar no mundo tenha este título, emblemático de todo o seu percurso artístico e biográfico, em que muitos foram os desencontros: com o catolicismo, com a instituição académica, com a política (sendo ele alguém que foi visto com suspeita por todos os poderes), com as intermitências de um coração vulnerável em todos os sentidos.

A vida é uma cadeia de enganos, autoenganos e desencontros (sobre si e consigo, sobre e com os outros, as circunstâncias, as coisas), diz este título que a sua colocação editorial torna testamentário. Sendo, todavia, que este lema nos é dado não numa afirmação filosófica, nem como trecho de uma conversação com o nosso parceiro de viagem no comboio, na verdade inconfutável da banalidade (afinal, poderíamos objectar “Isto porém são coisas que há já algum tempo se sabem” [“Esta Rua é alegre”]), mas como título de um poema, a questão que o poema levanta e à qual tem que responder é: como é dito isto na poesia? Porque é dito como poesia? Mais profundamente: haverá uma necessidade, seja porventura artística seja existencial, de o dizer como poesia? Será poesia precisamente uma forma de lidar com o problema designado por esta afirmação?

A questão posta pelo poema, por outras palavras, não é a pertinência biográfica ou filosófica desta afirmação (a sua justeza particular e individual ou universal), mas a sua pertinência poética: o seu tornar-se condição de escrita. Porque é que o poeta precisa, como consegue fazer poesia da condição de desajustamento cognitivo (engano) e existencial (desencontro)15 que é viver? E o que se torna viver ao ser dito como poesia?

Notoriamente, Ruy Belo reivindicou como “princípio fundamental da sua estética” (E.H.P.s, RB: 253) o facto de que “[Não] costumo por norma dizer o que sinto/ mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa” (“Esta Rua é alegre”), acarretando isto que a escrita é essencialmente um desencontro consigo, um desencontrar-se de si (daquilo que se sente) para se re-encontrar em algo de diferente, como algo de diferente (como palavra do texto: a coisa que é dita, porque as palavras são coisas representadas,16 que se diferenciam das coisas vividas numa obliquidade17 tão irredutível18 quão necessária para as salvar como coisa da vida e não apenas do texto). Desencontrar-se na escrita (separar-se do que se sente e da actualidade da experiência para os converter em escrita, em expressão: “Escrever-te é a maneira de te ter presente” (“Enganos e desencontros”, RB: 847) é a condição para que o que se vive ganhe sentido. Atraiçoar a vida, perdê-la, “suicidar- se nas palavras”, é reconhecê-la “condição indispensável do poema” e, reciprocamente, reconhecer o poema como indispensável condição de sentido da vida: “ilustrar um pouco desta vida que se perde/ e não só ao viver-se mas ao pensar-se sobre ela/ ao atraiçoá-la tantas vezes como condição indispensável do poema” (“Esta Rua é alegre”, RB: 305).

O ponto é que, como diz “Enganos e desencontros”: “Sem alteridade não há unidade” (RB: 846). É preciso separar-nos de nós mesmos, ou melhor: é preciso reconhecer esta diferença – temporal, representativa, pulsional – que nos atravessa, e dar-lhe expressão textual, para recuperar, na exterioridade da palavra, uma unidade que a nossa consciência do eu nos recusa, um sentido da experiência que nos percorre e nos divide.19 Por esta razão, este “encontrar” sentido no desencontro da palavra com a vida não acontece por adição, mas por subtração.20 A palavra poética não explica, não conta, não reconstrói, não acrescenta algo, apenas vê: pronuncia a verdade tão recalcada do nosso despossessamento, do nosso não termos lugar nem no tempo nem no espaço nem na nossa interioridade, porque tudo nos é dado como perda. Da perda, que nos tira todo o lugar, a palavra faz o próprio lugar, desajustada de nós ao fazer sentido da nossa falta de sentido (da nossa falta de algo que seja nosso), enunciando esta falta como lei do tempo – em que o agora é aquilo que passa, sem voltar – e da consciência – em que ao vermo-nos nos tornamos outros de nós: “Às vezes se te lembras procurava-te/ retinha-te esgotava-te e se te não perdia/ era só por haver-te já perdido ao encontrar-te” (“Muriel”, RB: 74).

A vida em si é passar, nada senão passar, numa condição universal que não pode ser reduzida a síndrome individual e psicológica, porque é cariz metafísico do estar no mundo:

Em certa casa certa coisa certa causa eu precisamente eu
homem que em ver cair a água põe a sua maior mágoa
a mágoa de algum dia a ter de deixar de ver
e de a deixar de ver por deixar de viver
vejo com mágoa que incessantemente passa a água
E eu que passo quando vejo que ela passa
que sou eu próprio água que circula e passa
vejo passar também vizinhas e amigas árvores

(“Pequeno périplo no fim do ano fim do mundo”, RB: 488)

Homem-água, homem-passar, “homem que em ver cair a água” se vê a si mesmo e tudo o que é, o testemunho que não tira o olhar do anjo do apocalipse, derramando a taça do fim no rio do tempo, o poeta sabe que não há nada a fazer contra este passar (sendo ele suprema certeza perceptiva, ontológica e científica: certa casa certa coisa certa causa); não há mais nada a fazer do que dizer a circularidade entre este passar e vê-lo, a circularidade entre ver e ser o que se vê não sendo ele, sendo, mais fundamentalmente do que toda a substância, apenas o passar comum a todas as ‘substâncias’ (ser humano, água, árvore) – “E eu que passo quando vejo que ela passa/ que sou eu próprio água que circula e passa.”

O sol a sombra a cal os pássaros os pés
o adro a pedra o frio os plátanos… Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? – Nada

(“O jogador de pião” [e “Variações”], RB: 219 [-226])

Que importância pode ter a diferença de substância (ser água, homem, árvore) se afinal tudo não é mais do que passar, vertiginoso rodopiar? Nenhuma importância: a diferença ontológica é puramente irrelevante. O que faz diferença para o homem é a mágoa que ele sente e a palavra que a exprime: o dizer-se da mágoa como desencontro do homem com o próprio desencontrar-se, a resignada não aceitação de ser mais nada do que água que passa:

Que posso eu fazer por tudo isso agora?
Talvez dizer apenas
chovia e vi-te entrar no mar
E aceitar a irremediável morte para tudo e todos

(“Através da chuva e da névoa”, RB: 340)

Dizias qualquer coisa? Esta manhã? Perfeitamente

(“Enganos e desencontros”, RB: 859)

“Mas que dizia eu? Dizia apenas “esta rua é alegre” “

(“Esta rua é alegre”, RB: 305)

Para termos sentido, o que é preciso é apenas dizer/dizer apenas. Dizer é em si perfeito (isto é: completo, definitivo), se conseguir manter o silêncio em relação ao mais que não cabe no olho apertado da agulha da palavra (que, afinal, confirma-se em silêncio, “Enganos e desencontros”, RB: 845).21 Dizer apenas é seleccionar, pôr fora do discurso “[O] mais que é só comigo e com a subjectiva forma como passo a minha vida” (“Esta rua é alegre”, RB: 305), que excede essa forma objectiva e até mesmo impessoal que é o propósito da poesia ao focar-se na visão do essencial (de não sermos mais do que um agora que incessantemente passa), descartando o ruído que apaga a forma na negação do limite e da perda (porque a forma é finitude irrevocável do limite, é renúncia, assunção da falta como condição necessária); na ilusão do possesso, do lugar, da permanência; na ilusão de tudo o que preenche, levando- nos a acreditar que a vida seja nossa; na ilusão de uma euforia que não é alegria (porque a verdadeira alegria sabe-a só o homem triste), mas ocultamento e negação.

A mágoa e a palavra são dadas ao homem como possibilidade de fazer sentido do não ter sentido nenhum o seu passar como água, como “árvore, como coisa que dorme (o morto dorme o sono das coisas, convivendo com minerais”, RB: 868)22 ao interceptar o agora (que é uma única forma de viver que nos é dada) precisamente tal qual ele é: corte em que desparecemos, incessante separação de nós mesmos, diferença.

Dizê-lo faz sentido do não sentido do agora ao tornar-se forma de vê-lo tal qual ele é: momento de singularidade irrepetível, que exactamente pela própria efémera unicidade necessita de ser salvo não na simples lembrança (na sua reprodução mnemónica, puramente mimética), mas na visualização irrevocável da palavra que não permanece mas dura, continua.23

Todo o poema será então uma colina do instante (RB: 382), um instante tornado colina, tornado lugar que se destaca no horizonte da vida e que continuamos a ocupar depois de o instante ter passado, não porque simplesmente o lembramos (como passado perdido que reconstituímos na falsificação da imitação, na reprodução estéril da sua cópia mental), mas porque nele continuamos a viver como dimensão que define o nosso estar no mundo, nele continuamos a viver não como passado lembrado, mas como actualidade que não permanece, mas dura. Nem todo o nosso passado pode tornar-se este lugar em que continuamos a habitar, nem todos os instantes podem tornar-se colinas, podem ser salvos na palavra como o sentido que nos define. Por isso, é importante saber ver, diz Belo, saber identificar o que está em frente de nós na diferença qualitativa das nossas experiências, conscientes de que aquilo que podemos salvar são apenas instantes, não vidas:24 momentos que dão forma, sentido, àquilo que somos. Por isso, o cinema é, diz Belo,25 uma escola de visão, um meio incontornável de aprendermos este ver que salva o momento como sentido: os grandes filmes são poemas onde o cinema nos ensina a ver, RB: 250.26 Os filmes são poemas porque o que eles fazem basicamente e melhor não é contar histórias (para isso temos os romances, temos as biografias, os mitos e a historiografia), mas selecionar, separar, reconstruir o limite das situações como condições de sentido, capturando-as como num diapositivo:27 “Mesmo poemas realistas como‘Aos homens do cais’ e‘Os estivadores’ foram escritos sobre diapositivos, com o campo do olhar já claramente delimitado.” (E.H.P.s, RB: 250)28

É essencial, para entender a ligação profunda de Ruy Belo com o cinema como escola em que aprendemos a ver, reconhecer esta dinâmica poética e não narrativa de concentração, selecção, condensação, que ele reconhece como dispositivo fundamental da linguagem cinematográfica. É um aspecto que foi já evidenciado ao discutir o encontro desencontrado entre “Muriel” e “Muriel”, filme e poema, mas que resulta nitidamente perceptível também na sua descrição do filme de Elia Kazan Esplendor na relva.

Não é a história poderosa do amor infeliz de um par de adolescentes-flores decepados pela cegueira e os preconceitos dos adultos, nem o retrato genial de uma geração oprimida pelos tabus sexuais, as convenções sociais e os imperativos do sucesso e do desempenho, que interessa primariamente a Belo,mas a capacidade do filme de representar de forma meta-simbólica a peculiar função simbólica comum à palavra poética e à representação cinematográfica na sua expressão da experiência humana:

É de notar que, em «Esplendor na relva», se recolhe o momento preciso em que Natalie Wood, actriz maravilhosa, que no filme encarna a delicada e fresca figura de Deanie Loomis, muito bem dirigida por Elia Kazan, procura em vão comentar numa aula um excerto de um poema de Wordsworth sobre a fugacidade da vida, e a necessidade, como condição de felicidade, de colher a flor no próprio instante que floresce.

(E.H.P.s, RB: 250)

É de notar, é preciso colher, aqui, a cascada de paralelismos instituídos por esta descrição e as suas consequências:

  • se a necessidade de colher a flor no próprio instante que floresce é a condição de felicidade;
  • se a palavra poética é (auto-reflexivamente) condição de reconhecimento e de expressão simultaneamente desta condição e do seu fracasso (como exposto na cena em que Deanie Loomis, ao ler, ou melhor, ao não conseguir ler o poema de Wordsworth, chega a ver exactamente o que lhe aconteceu; como acontece connosco ao ler o poema de Wordsworth ou ao ver Natalie Wood-Deanie Loomis);
  • se o que torna o cinema uma escola em que aprendemos a ver é a sua capacidade de recolher o momento preciso em que se manifesta a nossa incapacidade de o fazer (porque quem é capaz de ser feliz, de colher a flor no próprio instante em que floresce, atire a primeira pedra), o nosso reconhecimento dela, assim como a nossa incapacidade de considerar esta sua expressão simbólica (a palavra poética) como compensação adequada do instante não colhido29 (porque a poesia, a arte, “não substituem” a vida, apenas ajudam a dar-lhe sentido ao dizê-la);30
  • se isso tudo é verdade, então, é precisamente na articulação da diferença e interdependência entre experiência de vida como incapacidade de colher o instante do florescer e expressão artística (palavra poética e representação cinematográfica) como capacidade de recolher o momento preciso da consumação e do reconhecimento desta incapacidade existencial,que se institui o sentido, numa imagem que não é imitação mnemónica do passado, lembrança, mas visualização da nossa situação actual. Imagem como sentido, identificação do momento preciso em que nos é dado reconhecermo-nos por aquilo que somos, numa impotência de felicidade que não se resgata em palavra, mas na palavra reconstrói a própria dignidade de condição humana:

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

(“Como quem escreve com sentimentos”, RB: 671)

A poesia nasce de uma flor do instante, que fere quem a vê para a seguir imediatamente se apagar. O que fica é a ferida de ter visto, é a ferida rubra da palavra que testemunha que quem viveu não apenas lembra, mas viu o que se deu, o reconheceu por aquilo que é, e neste reconhecimento se conhece: “(e aquele que no auge a não olhar/ que saiba que passou e que jamais/ lhe será dado a ver o que ela era) (“Esplendor na relva”, RB: 333). Nunca seremos capazes de “colher a flor da felicidade”, mas podemos – temos de – ser capazes de “ver o que ela é, de olhar para ela no seu auge”, porque “[N]inguém, nos perdoará não termos sabido ver, esse verbo que tão importante era para os gregos” (E.H.P.s, RB: 250). O que tira todo o sentido à vida (ao instante, em que ela se oferece a nós) não é que ela passa (que ela “murcha, morre de repente”), mas desistir dela porque passa, de nós porque passamos:

A vida passa e em passar consiste
e embora eu não tenha a que tinha
ao começar há pouco esta minha
evocação de Deanie quem desiste
na flor que dentro em breve há-de murchar?

Ai de quem “desistiu na flor do instante” só porque condenada a passar. Ai de quem desistiu de olhar, frontalmente, directamente, a ferida que o instante nos inflige ao passar. Afinal, o que temos da vida é precisamente este olhar de frente a sua inultrapassável passagem, este seu inexorável perdê-la:

Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os
gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia

(“Muriel”, RB: 75032)

Na verdade, a bem dizer, nem ver nos é dado com a plenitude que quereríamos: também o acto de olhar está absorvido no processo entrópico da passagem. Ver é um instante que passa, não podemos ter nenhuma certeza dele. A bem ver, “nunca se vê (nunca a bem dizer te vejo)”: ver é um perpétuo desencontro consigo (“Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo”), porque o instante em que o ver se dá é o mesmo instante em que ele começa a ruir (“pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te”). Contudo, estar dentro do ver (do seu incessante desmentir-se e desencontrar-se) é a única forma de ter a vida que passa, de se reconhecer parte dela, é a única forma de lhe dar sentido (criar uma relação com ela de que nós sejamos autores e não simples, passivos, efeitos): “se fosse além de ver-te sem remédio te perdia.”33

Recortar o instante – da vida, da visão – como lugar da nossa inserção de sujeitos no mundo é o que faz a arte; não nos reduzir a objectos (de lembrança, de repetição, de desejo), mas manter-nos sujeitos de sentido. E o cinema ensina-o à poesia, aprende-o da poesia, como em Kazan, numa mútua circulação de aprendizagem de olhar. A poesia deve escrever como o cinema filma: “sobre diapositivos, com o campo do olhar já claramente delimitado” (identificando coisas34 e mulheres recortadas,35 seres e coisas como objectos recortados,36“deixados a si mesmos”, sem pretensão de acrescentar nada – explicação, qualificação, determinação – ao seu simples ser vistos).37 Cortar momentos na passagem do tempo sem pretender pará-la é o grande desafio do cinema (como forma musical da modernidade), da literatura: a passagem não é negada, porque as imagens correm, passam, ruem, mas encadeiam-se no olhar que as segue (interceptando o seu auge e o seu repentino morrer) numa evolução que se desenha como uma linha (pura) que resiste à, recusa ser desqualificada a, (pura) imaginação.

e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação pura resiste

(“Esplendor na relva”, RB: 333)

A linha evolutiva dos poemas longos de Ruy Belo é uma pura sequência de olhares que colhem momentos. A sucessão temporal assinalada pela insistida iteração de Quando, quando, quando, como de outras expressões temporais — Às vezes, Mil vezes, Hoje, Esta noite, Nunca, Há — torna-se o ritmo semântico do longo poema “A Margem da Alegria”: a escansão temporal isola momentos que se sucedem numa passagem incessante, mantendo contudo a própria unicidade, realçada pela nitidez pictórica da sua apresentação. Similarmente,“Aquele grande Rio Eufrates” é texto designado pela figura do rio, desde Heráclito epítome filosófica da passagem do tempo, corrida secada pelo fim derramado pela taça da ira divina ministrada pelo sexto anjo do Apocalipse. Todo o poema é, neste sentido, apenas poema de um dia (“Aquele Grande Rio Eufrates”, RB:121), porque, como todo o dia, traz em si o fim do homem (por isso Todos os dias são poucos para chorar o homem).

Todo o poema diz apenas o dia, no arrogante grácil triunfo do agora, que não há coisa que não abra, porque a vida não se dá se não como agora, e diz este triunfo como perda (porque o agora repentinamente morre tendo triunfado), ferida, linha que perfura o céu (abala a eternidade) e ao dizê-lo nesta dolorosa, despida precisão (resistindo à imaginação) de olhar, salva-o não da morte, mas como visão que prossegue, como evolução, linha que dividindo se desenrola, não pára, produzindo uma continuidade na sucessão das descontinuidades dos fotogramas, dos diapositivos, dos recortes de imagens, precisamente como faz o cinema, sublime educador do olhar. Se for verdade, como afirmava Deleuze, que o cinema produz “imagens-movimento” que instituem “blocos de movimento-duração”,40 o segredo comum do cinema e da poesia será a força criativa desta contradição que une o que é incompatível em parcelas de visão, será a ambição impossível (terrível, para utilizar uma palavra essencial para Belo)41 de produzir um tempo que se renega continuando a ser o que ele é, que se nega (como permanência) ao afirmar-se (como passagem):

Eu quero para mim parcelas de manhã
delas farei um tempo para mim
um tempo de porvir que se detenha
tempo que se renegue e seja tempo
e que ao negar-se afirme a sua condição

(“Um dia uma vida”, RB: 739)

EM JEITO DE CONCLUSÃO

A quem o quisesse encontrar, Ruy Belo deixou um recado: “Alguém que me procure tem de começar – e de se ficar – pelas palavras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei.” (“Não Sei Nada”, RB: 354).

Talvez tenhamos vindo a saber alguma coisa sobre Ruy Belo ao longo desta procura pelas suas palavras, não sei. Mas sei que estas reflexões têm uma conclusão inevitável no reenvio ao já citado prefácio à segunda edição do Homem de Palavra[s]. O autor faz nele uma afirmação tão forte que se torna título do texto e soa como uma reivindicação tão final como o derradeiro poema do derradeiro livro – um paradoxo que não surpreende num poeta, porque, como já observámos, a figura da contradição que rege a poesia é oximórica e não dialéctica. Pode ser que toda a vida e toda a poesia sejam uma forma de desencontro, mas, como poeta, Ruy Belo não se desencontrou:

Um crítico [João Gaspar Simões]“disse que, com este Homem de Palavra[s], eu, como poeta, me havia desencontrado. Ora eu creio que isso não aconteceu, embora só agora o diga. O que aconteceu foi que mais uma vez a crítica /…/ se ficou num livro passado de um autor para o voltar contra os seus livros futuros como se seus não fossem igualmente.

/…/O que eu procuro evitar a todo o custo é repetir um livro, se possível um simples poema ou processos por mim já levados porventura até à exaustão. Cada livro meu, quer-me a mim parecer, é um livro diferente do anterior.

(E.H.P.s RB: 245)42

Afinal, a vida não é só lembrança e repetição. Não é só o falhar da repetição e da lembrança. Não é só procura retrospectiva, não é só caminho de regresso,43 mas é também aventura prospectiva, futuro, novidade, diferença instaurada pela criação. “Ai [do poeta] se ….não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã” (“Breve programa para uma iniciação ao canto”, RB: 368).44

Na palavra da poesia, que salva, romanticamente, a rubra ferida aberta pelo agora, ao torná-la visão em que continuamos, prossegue a primavera e nela vemos Ruy Belo – de que sabemos que existiu, mas cuja vida passou para o dicionário em que ele se tornou e que agora só podemos procurar nas palavras –45 caminhar entre os mais:

Eu sei que Deanie Loomis não existe
mas entre as mais essa mulher caminha
e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação pura resiste

A vida passa e em passar consiste
e embora eu não tenha a que tinha
ao começar há pouco esta minha
evocação de Deanie quem desiste

na flor que dentro em breve há-de murchar?
(e aquele que no auge a não olhar
que saiba que passou e que jamais

lhe será dado a ver o que ela era)
Mas em Deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais

(“Esplendor na relva”, RB: 333)

ELENCO DOS POEMAS e TEXTOS DE RUY BELO CITADOS

  • RB: Ruy Belo, Todos os Poemas. Assírio & Alvim, Lisboa 2014 
  • “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição”, Aquele Grande Rio Eufrates – RB: 15-22 
  • “Para a dedicação de um homem”, Aquele Grande Rio Eufrates (1961) (19722) – RB: 25 
  • “Canção do lavrador”, Aquele Grande Rio Eufrates – RB: 62 
  • “Ah poder ser tu, sendo eu!”, Aquele grande Rio Eufrates – RB: 105 
  • “Aquele Grande Rio Eufrates”, Aquele Grande Rio Eufrates – RB: 119-132 
  • “Portugal sacro-profano – A charneca e a praia”, Boca Bilíngue (1966): 187-188 
  • “Ácidos e Óxidos”, Boca Bilíngue – RB: 211-213 
  • “O jogador de pião” (e “Variações sobre O jogador de pião”), Boca Bilíngue – RB: 219 (-226) 
  • E.H.P.s – “De como um poeta acha não se ter desencontrado com a publicação deste livro. Explicação preliminar à sua segunda edição”, Homem de palavra[s] (1970, 19782) – RB: 245- 253 
  • “Literatura explicativa”, Homem de palavra[s] – RB: 259 
  • “Eu vinha para a vida e dão me dias”, Homem de palavra[s] – RB: 279 
  • “A rapariga de Cambridge”, Homem de palavra[s] – RB: 293 
  • “Esta Rua é alegre”, Homem de Palavra[s] – RB: 305 
  • “Mudando de assunto”, Homem de palavra[s] – RB: 319-320 
  • “Nada consta”, Homem de palavra[s] – RB: 325 
  • “Esplendor na relva”, Homem de palavra[s] – RB: 333 
  • “Através da chuva e da névoa”, Homem de palavra[s] – RB: 340 
  • “Idola fori”, Homem de palavra[s] – RB: 341-342 “Não Sei Nada”, Homem de palavra[s]: 
  • Imagens vindas dos dias – RB: 354
  • “Os fingimentos da poesia”, Homem de 
  • palavra[s] – RB: 360
  • “Breve programa para uma iniciação ao canto”. Prefácio de Transporte no Tempo (1973) – RB: 367-368 
  • “Na colina do instante”, Transporte no Tempo – RB: 382 
  • “Nau dos corvos” , Transporte no Tempo, RB: 450-452. 
  • “Madrid revisited”, Transporte no Tempo – RB: 459 
  • “Pequeno périplo no fim do ano fim do mundo”, Transporte no Tempo – RB: 488 
  • “A Margem da Alegria” (1973), A Margem da Alegria (1974) – RB: 555-619 
  • “Há domingos assim”, Toda a Terra (1976) – RB: 663-666 
  • “Como quem escreve com sentimentos”, Toda a Terra – RB: 669-671 
  • “Sim um dia decerto”, Toda a Terra – RB: 672- 675 
  • “Uma árvore na minha vida”, Toda a Terra – RB: 676-681 
  • “Agora o verão passado”, Toda a Terra – RB: 728-735 
  • “Um dia uma vida”, Toda a Terra – RB: 739 “Muriel”, Toda a Terra – RB: 749-752 
  • “Ao regressar episodicamente a Espanha. Em Agosto de 1534, Garcilaso de La Vega tem conhecimento da morte de Dona Isabel Freire”, Toda a Terra – RB: 757-770 
  • “Enganos e desencontros” (1977), Despeço- me da Terra da Alegria (1977) – RB: 845-859 
  • “[um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri]”, Dispersos – RB: 867-868 

Notas

1 Investigadora. Professora universitária.

2 MURIEL, ou LE TEMPS D’UN RETOUR (Muriel ou o tempo de um regresso), de Alain Resnais (1963, 116 min) e “Muriel”, de Ruy Belo (Toda a terra, 1976).

3 “Ah poder ser tu, sendo eu!”, Aquele grande Rio Eufrates, RB: 105. Com este poema Belo desenvolve uma variação subtil e irresistivelmente irónica de um dos grandes poemas de Pessoa, “Ela Canta, Pobre Ceifeira”, monumento insuperável ao mecanismo de desdobramento voyeurista do próprio eu no fantasma do outro: “Ei-lo que avança/ de costas resguardadas pela minha esperança/ Não sei quem é. Leva consigo/ além de sob o braço o jornal/ a sedução de ser seja quem for/ aquele que não sou/ / E vai não sei onde/ visitar não sei quem/../ Há uma parte de mim que me abandona e me edifica nesse vulto que/ cheio de ser visto por mim/ é o maior acontecimento da tarde de domingo.”

4 Sendo que: no inverno é que o verão existe verdadeiramente, “Da poesia que posso”, RB: 339.

5 Apenas de passagem, seja lembrado um poema muito próximo a esta projecção beliana da felicidade como um fantasma exterior, para nós inalcançável, mas concedido aos outros: “High Windows” (1967/1974) de Philip Larkin (Collected Poems. Farrar Strauss and Giroux, New York 2001):“When I see a couple of kids/ And guess he’s fucking her and she’s / Taking pills or wearing a diaphragm,/ I know this is paradise// Everyone old has dreamed of all their lives— /Bonds and gestures pushed to one side/ Like an outdated combine harvester,/ And everyone young going down the long slide// To happiness, endlessly. I wonder if / Anyone looked at me, forty years back,/ And thought, That’ll be the life;/ No God any more, or sweating in the dark// About hell and that, or having to hide / What you think of the priest. He/ And his lot will all go down the long slide / Like free bloody birds. And immediately// Rather than words comes the thought of high windows: / The sun-comprehending glass,/ And beyond it, the deep blue air, that shows/ Nothing, and is nowhere, and is endless.”

Quão central seja este tópico para Ruy Belo é confirmado pela reapropriação meta-textual do célebre poema de Álvaro de Campos, “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra” (1928), na lírica “A autêntica estação” (cf. “Rosa Maria Martelo, “Alegoria, Fragmento e Montagem nos poemas longos de Ruy Belo”, em Manaíra Aires Athayde (Org.), Literatura explicativa. Assírio & Alvim, Lisboa 2015: 111-126. Cf. também Gastão Cruz,“Ruy Belo e «a importância misteriosa de existir»”, Revista de Filologia Românica, 2008, vol. 25: 47-53). No poema de Álvaro de Campos, porém, o mecanismo de desdobramento é duplicado num jogo de espelhos de reciprocidade: o olhar do poeta cruza-se com e espelha-se no olhar do outro observado e imaginado, num rasto de sonhos dispersos que é tudo o que deixa a passagem – do tempo, do carro: “À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto./ A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha./ Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz./ Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima/ Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real./ Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha /No pavimento térreo,/ Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,/ E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi./ Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?” (Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos. Ática, Lisboa 1944/1978).

“O meu reino pela rapariga de Cambridge/ Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia/ sentindo agora o que à distância sinto/ pode dizer-se que seria feliz/ Só assim o seria finalmente/ há uma força obscura que mo diz.” “A rapariga de Cambridge”, RB: 293

6 “O meu reino pela rapariga de Cambridge/ Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia/ sentindo agora o que à distância sinto/ pode dizer-se que seria feliz/ Só assim o seria finalmente/ há uma força obscura que mo diz.” “A rapariga de Cambridge”, RB: 293

7 A proximidade de Belo a Resnais, nesta dolorosa denúncia da memória como vetor de dissolução do eu e da realidade mais do que como cemento identitário, consta, literalmente, na menção de uma outra obra prima absoluta do realizador francês – O ano passado em Marienbad (1961) –, no poema “Nada consta”:“Ainda este ano talvez em marienbad/ eu vi mulheres curtidas pelos lutos” (RB: 325). O filme de Resnais, mais uma variação magistral sobre o engano da lembrança, é evocado aqui como aviso meta-textual contra toda a ilusão de definitividade biográfica, que esvazia a relevância confessional da construção do auto-retrato do poeta para o entregar por completo àquela forma objectiva e até mesmo impessoal que é habitual e devida na poesia autêntica, na sua capacidade de dizer a memória não como legado imutável e irreversível do passado, mas como parte de um presente que sempre muda e nunca fica, em que nada consta. Porque afinal, no universo do homem, à diferença do universo físico, que se mantem na sólida lei da autoconservação (sendo que a energia não pode ser criada nem destruída: a energia pode apenas transformar-se), a única grande certeza é a da perda – “Continuo a dizer: se alguma coisa há/ que podias perder e ainda não perdeste/ de que já a perdeste podes estar certo.”

8 “Mais tarde olhei-te e nem te conhecia/ Agora aqui relembro e pergunto:/ Qual é a realidade de tudo isto? / Afinal onde e que as coisas continuam/e como continuam se é que continuam?”

“Através da chuva e da névoa”, RB: 340.

9 “Non, rien de rien, non, je ne regrette rien/ Ni le bien qu’on m’a fait, ni le mal/ Tout ça m’est bien égal/ Non, rien de rien, non, je ne regrette rien/ C’est payé, balayé, oublié, je me fous du passé /…/ Je reparts à zéro /…/ Car ma vie, car mes joies/ Aujourd’hui ça commence avec toi.”

10 “Volto como quem volta ao local do seu crime/ e nem a morte me afastará disto”, “Portugal sacro-profano – A charneca e a praia”, RB: 187.

11 “A única coisa que se repetiu foi a impossibilidade de uma repetição. /…/ Depois de isto se ter repetido durante alguns dias, fiquei tão irritado, tão aborrecido com a repetição, que decidi voltar para casa. A minha descoberta não era significativa, e contudo era curiosa; pois havia descoberto que simplesmente não existe repetição e tinha-me convencido disso à custa de o ver repetido de todas as maneiras possíveis.”, Søren Kierkegaard, A Repetição (1843). Tradução, Introdução e Notas de J. Miranda Justo. Relógio d’Água. Lisboa 1997, pp.75-76. Para uma ulterior evocação da proximidade desta obra de Kierkegaard com a escrita de Ruy Belo, numa intuição singularmente convergente com esta leitura, cf. João Bray, Ruy Belo: Alegria em Preparação,

(http://www.letras.ulisboa.pt/images/areas-unidades/literaturas-artes-culturas/programa-teoria-literatura/documentos/bray1.pdf)

12 Por isso a repetição é impossível, mas ao mesmo tempo “se não houvesse a repetição, o que seria a vida? Quem poderia desejar ser uma ardósia na qual o tempo inscrevesse a cada instante um novo texto, ou ser um memorial de coisas passadas? Quem poderia desejar deixar-se mover por tudo o que é efémero, pelo novo, que constantemente entretém a alma, amolecendo-a? /…/ [P]or isso continua a haver mundo, e continua a haver pelo facto de ser repetição. A repetição é a realidade, e é a seriedade da existência” (Ib.: 4) A repetição em que o mundo procede, para Kierkegaard, é o oposto da tentativa de fazer da vida um memorial do passado, de fazer do presente uma incessante reiteração do passado: é salvar no presente o que do passado continua actual.

13 É importante reconhecer a natureza hermenêutica e não pessoal desta salvação. Na sua humildade de poeta pós-messiânico, Belo realça continuamente que este resgatar a vida como sentido, esta forma poética de continuar, não é, de todo, do ponto de vista existencial, uma vitória sobre a morte. Leia-se, por exemplo, a até meteorologicamente emblemática, já citada, elegia “Através da chuva e da névoa”:“Que importa que algures continues?/ Tudo morreu:/ tu eu esse tempo esse lugar.” A divergência insanável entre sobrevivência do poema e morte do poeta é uma obsessão beliana. O autor foi demasiado cabalmente católico para se render a formas substitutivas e incompletas – porque não integralmente corpóreas – de salvação estética: a sua condição de desistente (da fé) proíbe-lhe a fé em todas as alternativas menores (E.H.P.s, RB: 250).

14 Em “Breve programa para uma iniciação ao canto”, prefácio de Transporte no tempo, a escrita é explicitamente qualificada – de forma auto-transgressivamente autobiográfica – como uma opção de morte: “Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me /…/ Ao escrever mato-me e mato. A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conveniência como a ordem, qualquer ordem estabelecida. //…// O poeta, sensível e até mais sensível porventura que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo a vida privada,” (RB: 367-368).

15 Sobre o desencontro como figura central da poesia beliana, cf. Golgona Anghel, “Figuras do desaparecimento”: o fugitivo, o intervalo, o desencontro”, Literatura explicativa, op.cit.: 289-299.

16 “Estou sozinho e então converso com a noite/ das palavras que nos subjugam nos submetem/ As coisas passam e em vez delas é aceite/ o nosso sistema de signos onde as metem (“Como quem escreve com sentimentos”, RB: 669)

17 A poesia diz toda a verdade, mas di-la slant, obliquamente, declara Emily Dickinson (cf.“Tell all the truth but tell it slant -/ Success in Circuit lies” [F1263]/J1129): não há correspondência biunívoca entre as palavras e as coisas e é nessa não especularidade que as palavras se autonomizam, pondo em questão a verdade das coisas, as coisas como verdade, mas dando-lhe a única forma de sentido que podem ter para quem as vive.

18 Coisas ditas que não são coisa maior do que as vividas, mas de que o poeta não escapa: impõem-se-lhe como inevitáveis: “Sei que isto não é grande coisa/mas nenhuma outra coisa me é dada” (“Idola fori”, RB: 342)

19 A qualidade oximórica – de contradição inultrapassável – e não dialéctica desta unidade é que determina a sua enunciabilidade poética e não conceptual:“O agora do corpo une-nos à morte, porque todos os paraísos se baseiam no presente/ mas ao matar a morte matam o prazer” (“Enganos e desencontros”, RB: 845).

20 Leia-se aquele pequeno manual de instruções poéticas que é o poema em prosa “Os fingimentos da poesia”, RB: 360, em que Ruy Belo descreve como escrever poesia seja tirar matéria da vida, “isolando” palavras num processo de ‘objectivação’ que é percebido por alguns como desumanização, como falsificação do vivido, quando é pelo contrário a pura, simples visão, o puro dizer apenas, que são visados: “Semelhante descrição parece-me ilustrar um dos caminhos do poeta. Arranca esse senhor à linguagem quotidiana aquelas palavras que lhe faltavam para fechar um poema. Como é que lá chega? Pegando naquilo que vê, pensa ou sente e sacrificando-o ao fio da sua meditação. Despreza aquele conjunto de circunstâncias que rodeavam a palavra e dá nova arrumação à palavra liberta. Tanto faz que se fale de desumanização, como de falsidade, como de fingimento.”

21 Porque se “o silêncio é o sinónimo da vida” (“Como quem escreve com sentimentos”, RB: 669), uma poesia viva só pode ser uma poesia silenciosa como aquela que Ruy Belo esperava que fosse a sua (cf. RB: 22, em “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição”, prefácio à segunda edição, de 1972, de Aquele Grande Rio Eufrates).

22 Assim o poema disperso encontrado depois da morte do poeta, em que o poeta se descreve no depois da própria morte: “[um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri]”, RB: 867-868. O devaneio do olhar profeticamente póstumo de si mesmo é tópico recorrente em Ruy Belo (próximo nisto a Emily Dickinson, que nesta chave de antecipação post mortem escreveu algumas das suas obras primas absolutas. Cf. “Because I could not stop for Death”, F479/J712, e “I heard a Fly buzz – when I died” (F591/J465), mas também “I heard, as if I had no Ear” (F996/J1039).

23 Sendo que a única forma de permanência nos é dada pela morte: “A morte é a promessa: estar todo num lugar/ permanecer na transparência rápida do ser” (“Ácidos e Óxidos”, RB: 213).

24 “Eu vinha para a vida e dão-me dias” (RB: 279)

25 Há uma vasta literatura sobre a ligação da poesia de Ruy Belo ao cinema. Entre muitos, cf. Diana Pimentel, “Notas sobre cinema em Ruy Belo”, em Literatura Explicativa, op. cit.: 145-154.

26 “De como um poeta acha não se ter desencontrado com a publicação deste livro. Explicação preliminar à sua segunda edição”, Homem de palavra[s], RB: 245-253 (a seguir, citado como E.H.P.s). Neste texto escrito em Abril de 1978, poucos meses antes da morte, Ruy Belo dá algumas indicações poetológicas fundamentais sobre a própria escrita em geral e também, em particular, sobre a sua relação com o cinema.

27 O poder icónico do cinema, esta sua capacidade de criar imagens definitivas, pode ser tão forte que se afirma até quando o filme fica não realizado, apenas fantasma imagético do realizador. Leiam-se os versos de “Uma árvore na minha vida” (RB: 676):”Fora uma pessoa despreocupada ao longo de toda / a vida um dia porém conheci a mulher alada/ por charlie chaplin somente em the freak conhecida e transfigurada / conheci-a e desde esse dia nunca mais fui nada”. The Freak, evocado no poema, é um filme em que Chaplin começou a trabalhar em 1969 sem chegar à sua realização. Deveria ser a história de uma rapariga sul-americana a quem nasce um par de asas e a sua protagonista devia ser a filha de Chaplin, Victoria, na altura estupenda adolescente. Fotos de Victoria com grandes asas brancas são publicadas no livro de Chaplin My Life in Pictures (1974).

28 “Aos homens do cais” RB: 269;“Os estivadores” (RB: 282). Outros poemas referenciados na E.H.P.s, como explicitamente relacionados com o cinema são: “Humphrey bogarth”, RB: 270;“No way out”, RB: 276;“Vício de matar”, RB: 280 (todos em Homem de palavra[s]), e “Na morte de Marylin”, RB: 443 (em Transporte no tempo).

29 “Que importa que algures continues?/ Tudo morreu:/ tu eu esse tempo esse lugar/ Que posso eu fazer por tudo isso agora? /Talvez dizer apenas/ chovia e vi-te entrar no mar/ E aceitar a irremediável morte para tudo e todos” (“Através da chuva e da névoa”, RB: 340).

30 Que esta interdependência entre experiência de vida e expressão artística, em que se constitui o sentido, seja por sua vez apenas uma convergência desajustada, uma forma de desencontro, é condensado de forma tocantemente inesquecível no bloqueio de Deanie, na sua incapacidade de levar a cabo a leitura: a poesia não salva, em Elia Kazan, em Ruy Belo. Apenas diz a nossa perdição como condição de sentido, em que, melancolicamente, se dá a nossa condição humana.

31 “Tu eras como a flor do momento/ colhia-te e perdia-te e nasci no campo/ e todos lá morreram e ele hoje é para mim/ mais real do que então pois é só pensamento” (“Ao regressar episodicamente a Espanha. Em Agosto de 1534, Garcilaso de La Vega tem conhecimento da morte de Dona Isabel Freire”, RB: 761-2).

32 Sweet Hunters (Tendres chasseurs) é um filme de 1969 dirigido por Ruy Guerra, com Sterling Hayden, Stuart Whitman, Maureen McNally, Susan Strasberg. O filme apresenta em chave não narrativa o trágico desencontro entre um fugitivo ferido e a família de um ornitólogo que se transferiu para uma ilha deserta para estudar as aves migratórias. A sua menção em “Muriel” como exemplo da música do séc. XX é mais um testemunho significativo da importância do cinema para Ruy Belo.

33 “Creio que a bem dizer não fiz mais do que olhar/ e há tão pouca gente que só saiba olhar” (“A Margem da Alegria”, RB: 612).

34 “O nevoeiro nesses domingos é como um vasto lençol no qual eu recorto coisas extintas há muito” (“Há domingos assim”, RB: 664)

35 Que voltam pelo menos em dois poemas – “Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém/mulheres recortadas nas vidraças/ oliveiras à chuva homens a trabalhar/ coisas todas as coisas deixadas a si mesmas (“Literatura explicativa”, RB: 259) – em que é realçada a captura da simples inteireza da coisa no recorte, no diapositivo da palavra, enquanto no poema posterior o que interessa é como os versos se constroem numa cadeia associativa de recortes visuais: a janela, as mulheres na sua individualidade física e existencial, nitidamente isoladas quais manchas de amarelo no verde (“bouças de tojo”), quais ciprestes, linhas que perfuram o céu (mas que, tornados chopos, enquanto o poema avança, quase não perfuram já o véu do céu, [“A Margem da Alegria”, RB: 612]):“se os crepúsculos caíam numa luz lilás/ que só vi uma vez em portalegre de uma janela da casa de josé régio/ ou os cabelos das mulheres se prendiam nesta ou naquela das mais altas bouças de tojo/ que dão àquele que passa a impressão de terem visto o verdadeiro amarelo/ e as próprias mulheres recortadas no ar crepuscular/ como ciprestes muitas vezes mas talvez umas horas mais tarde/ quando perfuram decididamente a mais escura e/ se temos o pressentimento de que alguma coisa/ vai por fim acontecer” (“A Margem da Alegria”, RB: 560). Leia-se também em “Sim um dia decerto” (RB: 672):“não saberei destes dias de nevoeiro no verão/ Quando as pessoas no ar se recortam rígidas nas silhuetas”.

36 “Sei apenas que lê não sei o quê/ / e é simples objecto recortado/ na margem verde imensamente verde/ após a água mansa que reflecte os edifícios” (“A rapariga de Cambridge”, RB: 293).

37 “Quanto eu não dava por multiplicar a multidão do mar/ quanto ó seja quem for eu não daria por ser coisas/ como aqui como cá como cada coisa aqui/ como uma cada coisa mais coisificadamente coisa” (“Agora o verão passado”, RB: 730).

38 Num gesto profundamente anti-metafísico de reapropriação poética de ‘pedaços’ de experiência marcados pelo próprio cariz corpóreo. Sobre esta vertente, cf. Manaíra Aires Athayde, “Efeitos de sentido e efeitos de presença na poesia de Ruy Belo”, in Ángel Marcos de Dios (ed.). La lengua portuguesa. Vol. I Estudios sobre literatura y cultura de expresion portuguesa. Ediciones Universidad Salamanca, 2014: 345-356.

39 “Quando o sexto anjo lançou a sua taça sobre o grande rio Eufrates, as suas águas secaram, de modo a preparar o caminho aos reis que vêm do Oriente” (Apocalipse, 16, 12).

40 L’image-mouvement. Cinéma 1. Minuit, Paris, 1983. L’image-temps. Cinéma 2. Minuit, Paris, 1985.

41 Terrível é a palavra inaugural de Ruy Belo, a primeira palavra do primeiro poema publicado, o justamente celebrado “Para a dedicação de um homem” (RB: 25): “Terrível é o homem em quem o senhor/ desmaiou o olhar furtivo das searas/ ou reclinou a cabeça/ ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina/ Não há conspiração de folhas que recolha/ a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro/ quando caminha pela tarde acima/ A morte é a grande palavra para esse homem/ não há outra que o diga a ele próprio/ É terrível ter o destino/ da onda anónima morta na praia”. A palavra-fetiche volta sempre, ao longo de toda a produção de Belo, assumindo o peso de uma qualificação metafísica: “Viste noites e dias, estações, partidas/ E tão terrível tudo, porque tudo/ trazia no princípio o fim de tudo” (“Ácidos e Óxidos”, RB: 213);“Toda a vida é terrível estes dias assassinam-me” (“Agora o verão passado”, RB: 734).

42 Para uma ampla panorâmica do trabalho crítico sobre Ruy Belo, cf. “Fortuna crítica de Ruy Belo”, Literatura explicativa, op.cit.: 369-387. A amplitude deste catálogo e o título escolhido realçam uma intenção de compensação retrospectiva relativamente à objetiva falta de sorte de Ruy Belo, poeta e homem muito amado mas não sempre compreendido e em vida muito pouco ajudado. Entre os textos críticos de referência, é incontornável Pedro Serra, Um nome para isto: leituras da poesia de Ruy Belo. Angelus Novus, Coimbra 2003.

43 Como declarado pelo ainda jovem poeta de Aquele Grande Rio Eufrates: “Todos os gestos/ carregados com vinte e quatro horas de história/ de ventre ferido na aventura do restolho/ petrificaram inevitavelmente/ na face orientada de uma estátua/ aqui ou noutro jardim/ Todo o caminho é de regresso/ Amanhã serei outro” (“A história de um dia”, RB: 69-70).

44 E é precisamente ao futuro da leitura, dos leitores, desterritorializados naquele espaço sem lugar que é o texto (alternativo ao portugal paradisíaco–infernal em que ele foi condenado, elegido a viver), que Belo confia a possibilidade de o encontrar autenticamente: “Se tu que és meu amigo porventura um dia/ no estrangeiro me viste foi por estar aqui e/ se me encontraste é porque não me viste (“Agora o verão passado”, RB: 734)

45 “A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar — e de se ficar – pelas palavras” (“Não Sei Nada”, RB: 354). Afinal: “Os versos que faço sou-os( “Canção do lavrador”, RB: 62). Que a morte converta todos os homens em palavras (pelo menos palavras dos outros, para os que não tiveram palavras próprias que perdurem além do seu silêncio), é melancólica convicção enunciada no poema epónimo da recolha: “Quando o silêncio um dia nos unir/ então seremos todos nós palavras” (“Aquele Grande Rio Eufrates”, RB: 123). Que haja um poema ulterior, atrás das palavras de que são feitos os poemas e os mortos, é interrogação sem resposta, ou pressentimento, que o poema – nau soturna de quem não consegue escolher entre a pedra e o mar, entre o tempo e a eternidade – entrega ao despedir-se, quem sabe?, definitivamente: “finalmente me fosse lícito fechar/ definitivamente os olhos apesar de tanto olhar/ não conseguem optar entre a pedra e o mar/ E só agora findas as palavras eu ressinto/ pela primeira vez haver talvez algum poema/ por detrás do poema pura coisa de palavras” (“Nau dos corvos”, RB: 452).