Edição: Janeiro 2023

Um bom ano novo para todos! Tendo nós iniciado esta newsletter há cerca de seis meses, agregando sempre um resumo das publicações e actividades durante os passados trinta dias, verificamos agora que é aquilo que mais se assemelha a uma “edição”, no sentido clássico, da nossa revista. Portanto, aqui deixamos a primeira deste ano!

Primeiro, artigos inéditos. Um ensaio de Marta Silva de Almeida acerca da dicotomia entre belo e sublime em Kant, que se propõe a observar o cinema de Andrei Tarkovsky através de uma visão do conceito de sublime. E de Carla Gonçalves Feliciano, uma breve revisão acerca de um dos argumentos mais influentes em favor do realismo científico, e também sobre três ataques ou desafios que lhe foram dirigidos.

Várias interessantes reflexões sobre os compromissos médicos e filosóficos entre fisioterapia e cirurgia, da autoria de Luís Filipe Coelho, e uma crónica de Ricardo Fortunato sobre como afirmações vulgares podem estalar o clamor acéfalo das multidões, sobre como a pandemia terá exacerbado visões completamente erradas do que é “a ciência”, e como na psiquiatria e na psicologia hoje existe tanto um problema de sub-diagnóstico como um problema de sobre-medicação.

Academia e Tablóides

Algumas estatísticas demolidoras sobre o trabalho de publicação “científica” nas humanidades: 82% não é citado; dos citados, só 20% são lidos; e metade do total só é lido pelos revisores e editores. Isto deve-se, entre outras razões, aos critérios de produtividade “científica”, decalcados das ciências exactas, e claramente desadequados às humanidades. Artigo na Intellectual Takeout.

E um pequeno lembrete sobre a cultura tablóide em Portugal e o facto da não dependência económica do estado ou de grupos comerciais, ou seja, a independência em si, poder facilitar certo tipo de investigações jornalísticas. É o preço a pagar (o do sensacionalismo)? Na Grã-Bretanha, nos EUA e noutros países da Europa, a cultura tablóide é mais acentuada, também provavelmente fruto das democracias mais duradouras e maduras em muitos casos. Deixamos aqui a nossa saudação a essa tradição que é frequentemente desprezada pelas elites intelectuais, aquelas que muitas vezes se deitam nas mesmas camas de certos interesses económicos e culturais/sociais que os tablóides recorrentemente atacam (elites económicas, artísticas, nobiliárquicas, etc.). Ler aqui e aqui.

“Okupações” e Migrações

Primeiro, um breve resumo de alguns episódios da história recente de ocupações de edifícios governamentais, em democracias consolidadas do pós-guerra, sem que isso tenha representado propriamente uma credível ameaça de golpe de estado ou colapso da democracia. É bom lembrar que para a existência de autênticos golpes de estado é fundamental que as forças militares participem ou pactuem com os mesmos, o que não sucedeu de todo ou inteiramente nos casos que a seguir referimos. É também absolutamente ingénuo pensar que tanto estes episódios, mais semelhantes a motins, com mais ou menos violência, como também autênticos golpes de estado bem planeados, sejam exclusivos de uma ideologia política, embora as dos extremos do espectro estejam sempre mais disponíveis para tal. Eis a lista: cerco da Assembleia Constituinte, Portugal, 1975; Euromaidan, Ucrânia, 2014, cujas ações não foram fundamentais mas empurraram o parlamento para a deposição do então presidente; invasão na câmara dos deputados em Brasília em 2006 pelo movimento dos sem-terra; invasão do Parlamento da Califórnia pelos panteras negras em 1967; invasão do capitólio dos Estados Unidos em 2021; e, finalmente, invasão de Brasília em 2022. Temos a certeza que alguns poderão sugerir que recordar estes acontecimentos é “passar pano” em cima dos acontecimentos de há algumas semanas, no Brasil, e têm toda a razão: é passar o pano da história, da perspectiva literata e informada, e da metodologia científica por cima das reacções inflamadas, mal-informadas e politicamente comprometidas que fazem parte da espuma dos dias e que não nos interessam para nada.

Depois, sobre fronteiras e migrações. Existem dois sítios no mundo neste momento onde se tratam as fronteiras em grande escala com uma permissividade tal que se dão ao luxo de serem usadas como armas políticas: a União Europeia, no Mediterrâneo, e os Estados Unidos, junto ao México. Por um lado, certas forças políticas aproveitam para agitar fantasmas do medo do estrangeiro e fazerem figura de guardiões da identidade nacional, enquanto por outro lado outras forças usam a ideia de fronteira aberta como bastião de tolerância e inclusividade, mesmo passando por cima de qualquer cálculo de sustentabilidade dessas migrações. Apresentamos aqui o World Migration Report 2022 da Organização Internacional para as migrações, da ONU.

Anti-depressivos e Ansiolíticos: Dependência e Auto-defesa

Regularmente as chamadas “redes sociais” acordam e, dominadas por um qualquer impulso claramente sub-civilizational, resolvem comportar-se como matilhas de hienas, escolhem um alvo que tenha expressado, feito ou sido algo que consideraram, de forma básica e instintiva, de algum modo moralmente censurável ou somente ridicularizável e dedicam-se a atacá-lo durante um período que em geral anda entre um dia ou dois. Foi o que sucedeu há dias. Uma rapariga, de seu nome Alice Santos, produtora de conteúdos do Instagram e do Tiktok, foi atacada, gozada e provavelmente assediada de modo geral por ter tido a ousadia de dizer, num dos seus conteúdos, que a administração de anti-depressivos merece algumas reservas e que hábitos de vida saudável podem também ser uma excelente terapêutica para quadros de desânimo ou pré-colapso psíquico. Como já referimos, Ricardo Fortunato escreveu sobre como afirmações vulgares — não propriamente inteiramente certas nem inteiramente erradas — podem estalar o clamor acéfalo das multidões, sobre como a pandemia terá exacerbado visões completamente erradas do que é “a ciência”, e como na psiquiatria e na psicologia hoje pode existir tanto um problema de sub- diagnóstico como um problema de sobre-medicação.

Em complemento a este tópico, duas referências importantes sobre o problema da sobre-medicação de índole psiquiátrica: um artigo da American Psychological Association e uma obra editada na Palgrave-Mcmillan sobre o assunto. Há dois pontos extraordinários ao que veiculámos na publicação anterior que convém aqui ressalvar: primeiro, existe, actualmente, em Portugal, e possivelmente no mundo ocidental em geral, um pico de uso de anti-depressivos e ansiolíticos, derivado não só da tendência já existente mas também particularmente agravada pelas ansiedades despoletadas pelo período pandémico. Segundo, muitas das pessoas, não todas, que se manifestaram raivosamente contra o vídeo de Alice Santos são pessoas que fazem elas próprias parte desse grupo que referimos: estão medicadas e não gostam que se fale contra isso. Mas o mundo do espírito crítico não serve para apaziguar uns e calar outros sem razão discernível: qualquer prática a que uma pessoa se entregue na sua vida está sujeita a questionamento; em particular essa, que, mesmo que veiculada por profissionais da área, está sujeita a discussão, inclusive dentro da própria psiquiatria e psicologia. Portanto sugerimos a todos esses que tenham a mente um pouco mais aberta, pois é perfeitamente possível a estar medicado mas manter um espírito crítico e consciente: o objectivo das terapias de medicamentação psíquica deve ser sair delas, não perpetuá-las infindamente.

Duas Expressões Problemáticas

Destacámos também, esperando que os algoritmos anglófonos não nos levassem a mal, a história de uma palavra sem qualquer importância no mundo lusófono (nenhuma se compara) mas de carga negativa muito complicada entre os falantes de inglês, ao nível de um palavrão ou pior: a palavra nigger. Ao contrário do que alguns pensam, não foi “criada” por “racistas”: é uma deturpação de “negro” que só no século XX ganhou conotação pejorativa: no século XIX o uso coloquial normal da palavra alternava com conotações negativas ou depreciativas, embora ambos os sentidos convivessem, e apenas no século XX é que a palavra ganhou um significado exclusivamente pejorativo. Aliás, o estatuto de completo tabu em relação à sua pronúncia só surge realmente no final do mesmo, muito recentemente. Actualmente, o termo habita uma espécie de estado bipolar: se numa certa coloquialidade ela é praticamente um termo interdito, ao ponto de que se alguém a pronunciar fica com a carreira/vida/reputação arruinada, no mundo musical do hip-hop e noutro certo tipo de coloquialidade urbana ela foi subvertida de modo a se tornar quase sinónimo de “pessoa“ ou até mesmo “amigo“. Alertamos ainda para o fenómeno curioso: certa gerações no mundo dos falantes do português, mais recentes, parecem ter adotado a ideia, não sem uma certa dose suspeita de sede de censura, de que esta palavra deveria também ser em absoluto evitada e/ou rasurada no discurso nesta língua, o que não faz qualquer sentido. Deixamos por fim uma excelente obra unicamente sobre a dita palavra, e não há muitas que tenham a honra de ter um livro inteiramente dedicado a elas, assim como uma recensão sobre a mesma e um artigo do NY Times.

Depois, abordámos outra expressão, neste caso tão ou mais duvidosa. Frequentemente, o termo “trickle down economics” (uma descrição de um sistema económico que encoraja a prosperidade dos já afortunados e teoriza sobre como essa riqueza acaba por chegar aos menos afortunados através de um mecanismo de pequena distribuição das “sobras” desses primeiros; ou seja, acaba por “pingar”, “escorrer” para os “pobres”) é usada no debate político mais como arma de arremesso do que como descrição fidedigna e séria de como o liberalismo clássico e o neoliberalismo económicos funcionam. Nenhum economista respeitável desses campos jamais descreveu o sistema dessa maneira: “trickle down” é um termo pejorativo que não é usado pelos proponentes da teoria económica do supply side, não é certo que descreva o funcionamento da teoria de maneira correcta, e deixamos aqui três referências sobre o assunto: da Foundation for Economic Education, do jornal Economic Development and Cultural Change e do Institute of Economic Affairs.

Racismo “Estrutural” e “Machos Alfa”

Recentemente tem-se vindo a anexar à evocação do conceito de racismo certa terminologia científica como “sistémico“ e/ou “estrutural“, que parece ser uma adequação da teoria de luta de classes marxista, o que pode ser ou não adequado. É possível que a função do uso destes termos seja melhorar o marketing do activismo anti-racista. Vejamos porquê: seria concebível falar-se numa estrutura ou num sistema racista em casos como o da África do Sul pré anos 90, por exemplo; e é possível usá-los em relação ao patriarcado numa sociedade em que a mulher necessitaria de autorização do marido para sair do país, como no Portugal de há 60 anos atrás e noutros países. Mas não é possível usar os termos hoje num sentido sério referente a direitos civis, pois estão garantidos nos quadros legislativos das sociedades ocidentais em geral. Em que sentido, então, estão a ser usados? Só podem estar a referir-se a vieses de discriminação de determinados grupos (mulheres, velhos, outras raças, etc., o que for) existentes de modo vincado ou residual nas sociedades. É a isto que estão a chamar de “estrutura“ e “sistema“. Mas é dúbio que seja um uso forte e credível de palavras com raiz tão científica, sendo insultuoso para os cidadãos que tenham passado por regimes de discriminação institucional sugerir que os vieses sociais, conscientes ou inconscientes, sejam no fundo a mesma coisa. Aliás, o argumento de que uma sociedade é distinta de outras por ser estruturalmente racista/machista/etc., querendo isso dizer que existem exemplos de discriminação, cai por terra perante a pergunta: em que a sociedade no mundo é que isso não ocorre? Se a resposta é, como cremos que é, nenhuma, então a substância do conceito esvazia-se e deixa de fazer sentido. Deixamos duas referências: o livro do recém empossado ministro dos direitos humanos e cidadania no Brasil, Silvio Almeida, mais político do que académico, e a desmontagem das falácias do conceito num artigo de jornal e subsequentes polémicas levantadas, de António Riserio.

Noutro tópico, a introdução do conceito importado da biologia animal de “macho alfa” aplicado à sociologia humana, fenómeno de popularização relativamente recente, é maioritariamente desadequada porque as interações humanas não são absolutamente idênticas nem substancialmente comuns às dos restantes seres vivos. Outros fenómenos sociais animais podem ter transpostos de semelhante maneira imperfeita para a realidade das interacções entre pessoas (como “marcar território”, “ritual de acasalamento”, comportamentos de grupo, etc), que existem não só no reino animal como também em muitos seres vivos, mas resultarão sempre numa adaptação à existência humana que é mais figurativa do que literal. Aconselhamos por isso enormes cuidados com visões substancialistas de hierarquias alfa/beta/etc. no caso da existência masculina como também em visões parecidas aplicadas a qualquer subgrupo da espécie humana, de muito maior complexidade não só que a vida animal comum mas também que a descrição que a biologia dela faz. Deixamos duas referências sobre o assunto: aqui e aqui. Na imagem está Ernest Khalimov, origem da famosa imagem da internet que realça alguns dos traços mais comuns da masculinidade superficial.

Duas Sugestões

Primeiro, um livro que tem sido amplamente citado desde há mais de cinquenta anos, em Portugal e no resto do mundo, por boas razões: uma das bíblias, talvez a principal, que serviu para desmontar o sonho utópico e desconectado da realidade, muitas vezes partilhado por iludidas elites intelectuais do ocidente, quanto às realidades dos sistemas comunistas da segunda metade do século XX, e que descreve ao pormenor as máquinas de opressão, tortura e morte que os constituíam. A maior parte não durou mais de cinquenta anos após o final da grande guerra; outros foram remodelados/reconstruídos em versões igualmente autocráticas e tendencialmente imperialistas, mas já com a ideologia original completamente de rastos.

Propusemo-nos também, no encerrar da quadra natalícia, em que a ficção com que somos mergulhados contém frequentemente elementos mágicos e sobrenaturais, lembrar o pioneiro autor oitocentista, E. T. A. Hoffmann. Foi um homem excêntrico que, além de juiz, função que exerceu intervaladamente ao longo da vida, e de compositor, se notabilizou principalmente como escritor de contos infantis, em cujo repertório se destacam os artifícios do sobrenatural. Foi um percursor do realismo mágico na literatura e a sua vida inspirou a afamada ópera Os Contos de Hoffmann, de Jacques Offenbach, que selecciona alguns dos momentos mais emblemáticos da obra do autor, com o próprio a desempenhar a personagem principal numa saga de episódios sucedâneos que procuram sublimar o protótipo de uma imagem feminina. Nesta ópera, a traços largos se romanceia a figura histórica do autor, que se funde com as fábulas que escreveu. Um excerto da ópera, aqui, e Martin Scorsese sobre a mesma, aqui.

Harry Partch e Instrumentos Inventados

Partilhámos um percurso criativo ímpar que une duas artes afins: carpintaria e música. O compositor Harry Partch (1901-1974) deixa aos seus auditores um legado de criação inovador, complexo e singular que se inicia com a construção e uso vanguardista de instrumentos convencionais e não convencionais. Em relação aos primeiros, relembramos a adaptação de guitarras, violas, marimbas, como a Eucal Blossom que apresenta 33 ressoadores, e os Chromelodeons, pump organs acomodados ao seu sistema microtonal. No que concerne aos instrumentos não convencionais, basta resgatar alguns exemplos paradigmáticos, tais como: Cloud-Chamber Bowls construído em 1950-1951 a partir de material do Berkeley Radiation Laboratory e tocado na première da sua dança-sátira na Universidade de Illinois em Março de 1957 no Festival of Contemporary Arts; Zymo-Xyl, um xilofone de carvalho combinado com garrafas de vinho, licor e ketchup (1963); Gourd Tree and Cone Gongs, que apresenta doze sinos de igrejas e dois cones de nariz de bombardeiro Douglas Aircraft (1964), e Quadrangularis Reversum, construído em 1965, com a colaboração de Erv Wilson.

Romances do Coração

Por último, apresentamos um divertido sortido de capas geralmente berrantes de um género de menor representação em Portugal mas de monumental sucesso no mundo anglófono em geral: a chamada romance novel, ou, em português, “romance do coração”, talvez. Em geral dirigidos a um público feminino, têm as suas raízes em Jane Austen e Emily Bronte, mas depurados ao ponto da produção serializada contemporânea: tratam de paixões assolapadas, estereótipos do cavaleiro andante e da donzela em perigo, histórias de grandes amores. Vendem-se tanto nas livrarias como nas bombas de gasolina,

estão geralmente nos tops de vendas, e têm entre alguns dos seus representantes as lendárias chancelas Harlequin, Avon, e, no mundo lusófono, a lendária colecção Sabrina. Alguns autores que destacamos são Danielle Steele e Nicholas Sparks. Alguns tópicos comuns que podem ser observados nas capas são a figura do highlander escocês, a vida sentimental da nobreza, muitos troncos nus masculinos, alguma cavalaria e muitos vestidos compridos.

Submissões

Desejamos, como sempre fazemos, bons trabalhos, boas leituras, e, como já dissemos, enormes desejos de prosperidade para o novo ano que se inicia. Está sempre em aberto o convite para nos enviarem as vossas propostas de artigos, seja em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia. Aceitamos, como já sabem, todos os temas de relevo, mas podem consultar algumas sugestões de tópicos aqui. Até breve!

Amália Rodrigues, cantora de fado e patrona das artes e da literatura.