Um resumo das nossas publicações e actividades no mês de Junho de 2022. Imagem: retrato de Ileana Sonnabend.
O Papel da Ciência Durante as Pandemias
Um texto de Miguel Prudêncio, do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, sobre os desafios e as mudanças que o contexto pandémico mais recente trouxe à investigação científica e à sua relação com o público.
Relações entre Fotografia e Poesia no mesmo Objeto Artístico
Uma abordagem de Vítor Alves Silva à semiótica e ao hibridismo que identifica diferentes tipos de relação entre a poesia e a fotografia, quando coexistem no mesmo objeto artístico.
The Magician Longs to see: o Enquadramento Literário da Obra Visual em David Lynch
Ana Sérgio escreve sobre o papel da literatura na obra de David Lynch: apesar de ter origem numa formação de artes visuais, e acabando como cineasta apenas de modo acidental, o trabalho do autor depende fortemente da dimensão literária.
Destacamos ainda uma bem humorada e audaz crónica de Nuno Margalha, psicólogo e presidente do Instituto Português de Relojoaria, com uma proposta utópica para equilibrarmos a pequeníssima diferença etária entre partes do nosso corpo, e revisitamos um ensaio de Hélio Ricardo Santos sobre caricaturas de D. Pedro II na imprensa brasileira do final do século XIX, da autoria de Rafael Bordalo e Angelo Agostini, entre outros.
Três avisos
Acerca da reversão — e inédita divulgação ilícita — do Supremo Tribunal dos EUA da decisão Roe VS Wade, que liberalizava o aborto a nível nacional. A decisão original está agora revertida, e os estados voltam a ter o poder de decidir sobre a matéria. O carácter federalista dos EUA, os equívocos que rodeiam assunto e a por vezes fraca cobertura da imprensa portuguesa impõem alguns esclarecimentos:
- a reversão não proíbe o aborto a nível nacional, mas devolve a cada estado o direito a decidir — treze avançaram desde já para a sua proibição;
- o critério da decisão original era muitíssimo liberal e distante daquele usado na maior parte dos países: legalizava o aborto até às 24 semanas (!), quando um feto sobrevive independentemente;
- e não é inédito este Supremo Tribunal, ou qualquer outro, voltar atrás numa decisão; a existência de precedente judicial é significativa mas não absoluta.
Sugerimos vários artigos do fantástico agregador www.realclearpolitics.com:
— Bari Weiss sobre o preocupante activismo judicial de secretaria das novas gerações;
— Glenn Greenwald sobre a diferença entre protecção constitucional de um direito ou protecção constitucional do direito a decidir;
O assunto do aborto, muitíssimo sensível e conducente a todo o tipo de paixões desnorteadas e antagónicas, é, do ponto de vista legal, de enorme interesse, complexidade e importância. Sugerimos aos leitores que o abordem sem aquele peso de crucificação moral que reveste assuntos relacionados com a vida humana, a autonomia do indivíduo e do seu próprio corpo, o drama e a morte, mas sim com genuína curiosidade intelectual em relação às complexidades próprias da nossa condição humana e do nosso mundo terreno, imperfeito e inconclusivo.
Voltamos a chamar a atenção para o facto de a leitura do famoso “paradoxo da tolerância” de Karl Popper, popularizada por um famoso cartoon que circula na internet (pode ver-se na primeira banda da imagem, a vermelho) ser uma distorção grosseira das palavras do filósofo, que nunca advogou cancelamentos nem restrições do discurso. É provável que venhamos a perder a conta das vezes que o fazemos. A melhor fonte para verificá-lo será mesmo o pequeno trecho em que Popper fala do assunto: colocamo-lo aqui em baixo, e será fácil verificar como é quase oposto ao ponto do cartoon original. Reforçamos assim a preocupação com essa referência a Popper, e com a exibição do cartoon demagógico enquanto sugestão de silenciamento/censura/opressão daqueles de quem discordamos. Lendo a passagem, é fácil constatar como o filósofo não estava perto de sugerir tal comportamento.
Less well known is the paradox of tolerance: Unlimited tolerance must lead to the disappearance of tolerance. If we extend unlimited tolerance even to those who are intolerant, if we are not prepared to defend a tolerant society against the onslaught of the intolerant, then the tolerant will be destroyed, and tolerance with them.— [sublinhado nosso]In this formulation, I do not imply, for instance, that we should always suppress the utterance of intolerant philosophies; as long as we can counter them by rational argument and keep them in check by public opinion, suppression would certainly be most unwise. But we should claim the right to suppress them if necessary even by force; for it may easily turn out that they are not prepared to meet us on the level of rational argument, but begin by denouncing all argument; they may forbid their followers to listen to rational argument, because it is deceptive, and teach them to answer arguments by the use of their fists or pistols. We should therefore claim, in the name of tolerance, the right not to tolerate the intolerant. We should claim that any movement preaching intolerance places itself outside the law and we should consider incitement to intolerance and persecution as criminal, in the same way as we should consider incitement to murder, or to kidnapping, or to the revival of the slave trade, as criminal.
— Popper, Karl, The Open Society and its Enemies, Vol. 2, 1945. London: Routledge.
Por último, existe por vezes um desentendimento entre advogados de teorias liberais — desenvolvidas a partir de leituras do direito natural — e as teorias marxistas em geral quanto ao conceito de propriedade, que é discutido com grandes desencontros: de modo sumário, enquanto que para os partidários do liberalismo clássico a propriedade privada é apenas de um tipo, para Marx e para os marxistas — herdeiros de uma ambição do Iluminismo que aplica o método científico às interacções humanas — existe uma diferença entre propriedade pessoal (que é para eles admissível), como uma escova de dentes, e propriedade privada, como, por exemplo, um poço de petróleo. Essa grande fé na capacidade humana para determinar com precisão a diferença entre uma e outra deriva da visão que o marxista tem sobre o que é o ser humano. No liberalismo clássico, mais aberto e menos científico, a distinção é bastante mais problemática — e mesmo até inteiramente ignorada. Deixamos aqui algumas leituras acessíveis sobre o assunto, de Matt Bruenig e da publicação The Libertarian Catholic.
Sugestões: seitas e estadistas
A propósito da ficção Keep Sweet: Pray and Obey (Netflix) e do documentário The Vow (HBOmax), destacamos o mundo dos cultos, das seitas, dos falsos profetas. Keith Raniere, líder do grupo NXIVM, e Warren S. Jeffs, da Fundamentalist Church of Jesus Christ of Latter-Day Saints, pertencem à mesma tradição de Marshall Applewhite (Heavens gate), Jim Jones (People’s Temple), Shoko Asahara (Oumu Shinrikyō), entre muitos outros. Começam como ajuntamentos de pessoas com carências espirituais que procuram uma salvação miraculosa (apregoada muitas vezes como “científica”) apresentada por um iluminado profeta com talentos para a comunicação e para a manipulação psicológica e emocional. Acabam, quase sempre — ou melhor, sempre — em catástrofe geral, deboche sexual e/ou suicídio colectivo.
Poderá ser descortinado aqui um padrão: commumente, os falsos profetas tendem a vender a felicidade, a alegria, o êxtase terreno de satisfação imediata, enquanto que os profetas maiores, validados pelo teste do tempo — os verdadeiros, portanto —, nos vendem o sofrimento, a paciência, a derrota, e isto é curioso. No panorama americano, com um ethos muito dado ao sucesso, à ascensão e à vanguarda do mundo, o problema é ainda mais acentuado, e esses cultos encontram terreno fértil, dado que a competição é feroz e é necessário ser-se especialista no sucesso, na “alienação” (no sentido marxista), e ao mesmo tempo na felicidade, no bem-estar, na endorfina. Deixamos aqui algumas sugestões sobre literatura acerca de cultos da New York Mag e da Rolling Stone.
Recomendamos, por último, quatro tomos biográficos dos mais recentes presidentes dos Estados Unidos da América: Bill Clinton, Ronald Reagan, George W. Bush e Barack Obama. Cada um diferente, mas todos no mesmo estilo: um relato tão preciso quanto possível dos eventos da presidência, baseado nas notas diárias de cada um — ou contendo mesmo as próprias notas, como no caso de Reagan — onde evidentemente se pretende também engrandecer o que cada um acha notório e menorizar os eventuais problemas e erros que terão ocorrido durante as administrações. São quatro excelentes livros, na tradição das memórias de estadistas, importantes para a democracia em geral.
Duas chalaças
Há cerca de doze anos, dois economistas, oradores e comediantes resolveram criar uma sátira sobre as duas visões económicas mais influentes no pós-guerra do século XX: a de John Keynes e a de Friedrich Hayek. Fizeram-no sob a forma de um videoclip musical, no estilo “batalha de rap”. O resultado foi muitíssimo bem sucedido e é, até hoje, uma das mais acessíveis perspectivas sobre as filosofias destes autores.
E, por fim, apresentamos um exemplo de como a realidade ultrapassa a ficção em termos de improbabilidade e implausibilidade: o político André Ventura, em tempos, escreveu um romance erótico que “tem como protagonista um homem chamado ‘Luís Montenegro’ que é toxicodependente, seropositivo, intelectual, ninfomaníaco e vencedor da Volta a Espanha.” A coincidência de o nome do protagonista ser o mesmo do actual líder do PSD e possível parceiro de entendimentos e coligações é por si só motivo de interesse, mas chamamos também a atenção para o muito bizarro elenco de características da personagem principal. Parece ser este mais um caso de “ave rara literária”, sobre a qual convidamos interessados a escreverem uma crítica/recensão. Espreitem o artigo da Sábado, se tiverem acesso.
Agradecemos também as submissões que nos têm feito chegar, e encorajamos todos a continuar a fazê-lo. Desejamos um excelente resto de mês de Julho a todos, com muitos refrescos. Até breve!
Ileana Sonnabend (1914-2007), patrocinadora e coleccionadora de arte de vanguarda, num retrato de Robert Mapplethorpe, 1978.
Revista Minerva Universitária
This email was sent to {{contact.EMAIL}}
You’ve received this email because you’ve subscribed to our newsletter.
Unsubscribe