Esta é uma nota editorial sobre um aniversário de vinte e cinco anos, ou melhor, perdão, cinquenta anos — já tudo parece o mesmo, tal é a lentidão conceptual, histórica e tudo o mais deste pequeno país que alguns descrevem como atrasado, ortodoxo, retrógrado e conservador, a que chamamos de por-tu-gal. A questão aqui a tratar hoje é a Revolução de 1974 e o romantismo/saudosismo/modo de ser atrasado/vigília constante na espera de um pai salvador da espécie mais adequada ao tempo histórico/etc., l que a evocação do “dia inicial inteiro e limpo” frequentemente oferece, mas também o carácter especificamente maniaco desta era em que vivemos, em que um sistema democrático de sufrágio universal acaba por encerrar exactamente os mesmos problemas a nível conceptual que já eram evidenciados pelo antigo regime e por todos os outros antigos regimes. A democracia liberal não resolve todos os problemas, nem é necessariamente o regime que mais agrada a todos e a qualquer um.
Correcções históricas de facto e de categoria
Em poucas linhas, permitam-nos começar por estabelecer correcções de raiz histórica quanto a factos e de categoria relacionados com a data: (1) os movimentos que se opunham ao antigo regime tinham em comum o apreço pelo liberalismo cívico e não eram necessariamente de “esquerda” nem de “direita”; (2) o golpe de estado que finalmente o derrubou partiu de uma questão corporativista militar, e os movimentos políticos a ele ligados não tiveram um papel de todo fundamental; (3) forças de extrema-esquerda, como, principalmente, o partido comunista, não queriam nem nunca quiseram, pela própria natureza da sua ideologia, a implantação de uma democracia liberal “burguesa”, como eles dizem; não os devemos parabenizar por isso; (4) ainda assim, questões de poder político e militar fizeram com que o clima intelectual nesse Portugal de 74, sempre atrasado em relação ao resto do mundo, criassem um artificial consenso de que Portugal iria ser uma sociedade “socialista”, seja lá o que isso for; (5) partidos políticos de direita foram proibidos logo a seguir à revolução, e inscreveu-se um artigo na constituição nesse sentido, para evitar que forças ligadas ao antigo regime tivessem participação na nova democracia; (6) como todas as democracias, esta começou de forma imperfeita e tendenciosa e, como todos os golpes de estado em Portugal, quase nenhum espaço à mesa foi dado à parte vencida. De resto, a data é mais um menos unânime entre os portugueses como bem-vinda, apesar de algumas fortes asneiras logo posteriores.
Quase ninguém “celebra abril”
Sendo nós uma ponte entre o mundo académico e a sociedade civil, gostamos que as coisas circulem nos dois sentidos. Por isso, tantas vezes vemos o que as elites intelectuais pensam e dizem como um perfeito conjunto de disparates longe da vida real das pessoas. E vemos a vida real das pessoas com grande respeito, apreço e proximidade. Apesar de estarmos todos, por profissão ou vocação, no grupo dos primeiros, sabemos reconhecer as limitações tremendas do mesmo, da sua vida, das suas contingências sociais, da sua metodologia, do seu corporativismo e dos seus preconceitos. Conhecendo as pessoas reais, estamos à vontade para dizer o seguinte: só existem três ou quatro celebrações realmente transversais na sociedade, e o 25 de Abril não é uma delas. O Natal, os aniversários, a Páscoa e porventura o Carnaval são quatro celebrações verdadeiramente transversais e unânimes, talvez existam outras, além do conjunto de festividades locais, muitas delas associados a costumes pagãos traduzidos para a linguagem católica e transformadas em feiras, procissões, festivais. Mas, modo geral, ninguém “celebra abril” pela simples razão de que tudo o que essa mudança de regime unanimemente propôs fazer ficou feito poucos anos depois da sua implantação. Fez-se uma democracia liberal, onde vigora a liberdade de expressão e pensamento, a liberdade de associação e o primado do indivíduo. Livraram-se das colónias, bem ou mal. E abrindo os cordões à bolsa e terminando o isolamento e conservadorismo financeiro do antigo regime, investiu-se largamente, bem ou mal, dinheiros públicos, dívida e conversa fiada na modernidade, sendo a adesão à comunidade europeia uma continuidade disso. Tudo ficou cumprido. Não há qualquer necessidade de celebrar abril, uma mudança de regime bem-sucedida ou em que, pelo menos, os prós superam os contras — é a opinião da maioria da população — mais do que há necessidade de celebrar o cinco de outubro ou o primeiro de dezembro — importantes datas que celebram eventos políticos cuja celebração mais entusiasmada é acompanhada apenas por uma minoria dedicada, tal como a de abril. Só que a de abril inclui um credo largamente acompanhado e incentivado pela comunicação social.
A Comunicação Social
Os mediadores, neste caso a comunicação social, à semelhança dos anteriores equivalentes mediadores, tecem os louvores do regime atual. Parecem vinculados a uma dependência do mesmo, talvez sob a crença de que é só graças à instauração de uma democracia liberal que têm a liberdade de realizar a sua profissão em plenitude, consideração que compreendemos. Mas nunca se ouve da boca dos mesmos uma única palavra crítica face ao regime. Aos políticos em específico, sim: ao regime, não. É proibido. Não se percebe porquê: se o mesmo mudasse — para um regime presidencialista, para uma democracia musculada, mas seguramente não para uma ditadura, praticamente impossível no quadro ocidental hoje —, poria em causa a sua própria sobrevivência? Ou simplesmente se tornariam os mesmos mediadores sicofantes que são hoje adaptados à conjuntura de então? Quanto à população em geral, manifesta-se inicialmente apoiante do regime corrente mas depois progressivamente céptica (no caso presente, os níveis de abstenção nas eleições assim o atestam, é à chepelo menos atgada receénte de um partido parcialmente de protesto de enorme sucesso). Modo geral, fora de parvoíces, não existe qualquer dúvida de que vivemos numa democracia e de que antes não vivemos numa democracia nem nada que se parecesse. Mas, nesta descrição das coisas — que não parece ser de grande modo pouco exacta — existe assim tanta diferença entre uma pseudo-democracia que mais concretamente poderia ser descrita como uma ditadura, o regime do estado novo, e uma democracia imperfeita que nunca em termos normativos poderia ser descrita como uma ditadura, mas cujos cidadãos, cujas elites, e cuja natureza humana dos seus participantes incide exatamente de modo geral no mesmo sentido?
Todo o passado permitiu chegarmos aqui
Esta é a questão que queremos deixar, com enorme saudações a todos os regimes históricos e sistemas sociais existentes desde sempre e que também nos permitem estar aqui nesse preciso ponto e neste preciso lugar. Neles incluímos o feudalismo, a idade da pedra, a escravatura, as tropelias do totalitário marquês que tem direito a estátua no centro de Lisboa, a ocupação filipina, a guerra colonial, os referendos do aborto e da regionalização, alcácer-quibir, a ocupação muçulmana, a reconquista, a expulsão dos judeus, a cloaca da primeira república, os protozoários, a vida unicelular e o grande nada que antecedeu a explosão ontológica que nos deu origem a todos há mais de milhões de anos atrás.
Os “valores de abril” não são a extrema-esquerda
Importa dizer que a proibição dos partidos políticos de direita pelo MFA que resultou num regime inquinado à partida, extraordinariamente esquerdista em todas as suas representações. O povo, ignorante dessas coisas, portanto enormemente cheio de sabedoria de outros tipos, foi votando no que lhe mandavam votar, aplicando também o seu próprio critério intuitivo modelado pelos séculos de existência comunitária. E também dizer que a instauração de uma democracia liberal não implica de modo nenhum, e é muito larga medida é oposta, à ideia de uma agenda marxista de transformação da sociedade. Apesar de por vezes parecer, e mesmo por vezes não parecendo, é necessário voltar a sublinhar aqui que a maior parte das pessoas em Portugal não se identifica todo com uma distribuição absolutamente igualitária da riqueza material, e nem sequer vê a vida exclusivamente como redutível a riquezas materiais. E muito menos vê a política como solução salvífica para todos os seus problemas. Quem vê as coisas assim, no presente momento histórico, são os avós, os pais, os netos e os sobrinhos de certas classes intelectuais que encontraram na teoria marxista a maneira mais entusiasmante de juntar o caráter ocioso da sua atividade intelectual e o carácter inútil da sua atividade social, num composto através do qual convenceram tais agentes que seria possível fazer um mundo melhor. A teoria marxista é hoje um rotundo falhanço a quase todos os níveis, para não dizer mesmo todos, tem a mesma utilidade e a mesma idade da locomotiva a carvão e deve continuar a ser estudada como artefacto histórico mas seguramente não como uma teoria válida de transformação do mundo, dada a total falência das suas aplicações práticas. Em Portugal, alguns dados objetivos que fundamentam tudo isto que estamos a dizer incluem: a taxa de abstenção presente, a votação da extrema esquerda no seu todo nunca ter ultrapassado os 20% e em geral se situar numa média entre os 10 e os 15, a classe média, mesmo que remediada, ser numerosa, e não existir adesão significativa a coletivos ideológicos, apenas à igreja católica apostólica romana e aos clubes de desporto.
Música de intervenção
A liberdade académica no estado novo
Um aspecto que é particularmente importante e relevante para nós é a possibilidade de se discutir, sem fantasmagorias nem romantismos, a real situação da liberdade académica durante o estado novo. A impressão que temos, pelo que nos transmitem as pessoas que viveram a época — não temos ninguém na nossa equipa de faixas etárias que tivesse a possibilidade — é que as universidades, ou melhor, os conteúdos leccionados nas salas de aulas das mesmas, não era um objeto de muito particular repressão política. É importante distinguir isto, é claro, do facto de as universidades, como pontos de conglomeração de novas gerações, terem sido o palco de discussões sobre o regime, a democracia, sistemas alternativos de governo, e naturalmente de movimentos formais ou informais de resistência ao sistema vigente de então. Dado isso, existiram naturalmente crises, perseguições e e exercícios de violência concreta que tiveram como palco a universidade, ou melhor, o campus. Mas não nos referimos a isso: essa é a dimensão contingente da existência universitária, sendo esta uma instituição que, ao contrário do que muitos pensam, não nasceu para “mudar o mundo“, mas sim para pensa-lo. Esta é a nossa posição. Assim, por terem existido muitas pessoas que estavam na universidade a exercerem atividades de resistência contra o regime tendo muitas vezes como palco o campus da própria universidade, não quer isso dizer que isso represente a atividade principal das universidades, tal como trocas comerciais não representam atividade principal das igrejas ou relações de amizade não representem atividade principal do ginásio, embora sejam coisas que possam coexistir. Quanto a liberdade académica tout court, era possível discutir o que era o regime, o que era igreja, que outros tipos de regimes é que existiam, o que era o comunismo, o que era o capitalismo, o que era o colonialismo, tudo o mais. O que não era possível, como também não era possível cá fora, era fazer propaganda política que pusesse em causa os fundamentos do estado ditatorial que se vivia.
Galeria de Monumentos do 25 de Abril: uma panóplia de aberrações
Convidamos todos a espreitarem o artigo que publicámos há uns meses com um brevíssimo panorama de uma desgraça nacional: os ajustes directos feitos por câmaras municipais para feitura de obras de arte de duvidosa qualidade, subordinadas a todos os tópicos, mas neste panorama em particular, dedicadas à data da revolução de 1974. Galeria em baixo:
Uma democracia liberal tem necessariamente de incluir forças anti-democráticas
Voltando atrás no raciocínio, na continuação da celebração de abril, desenvolvamos o seguinte tópico: uma democracia liberal tem necessariamente de incluir forças anti-democráticas.Em certa medida, os idealistas metafísicos que clamam pelos “valores de abril” são como quem clama pelos valores do estado novo: estão a pensar num sectarismo político totalitário muito específico e não numa democracia plural. A democracia liberal quer dizer precisamente que a vontade popular é absolutamente livre de escolher uma sociedade com participação forte do estado em áreas como saúde e educação ou se prefere um estado mínimo, autoritário e nacionalista. Nesse sentido, nenhum quadro basilar de princípios necessários à cidadania colhe obrigação, se incluir sistemas políticos desenvolvidos além da soberania do indivíduo. Sistemas compulsórios de saúde ou educação são como serviço militar obrigatório, nesse sentido. De resto, uma democracia liberal, o regime das possibilidades por excelências, que não inclua no seu quadro a possibilidade da sua própria negação é uma contradição em princípio e em termos: convém aliás lembrar que, de acordo com o progressismo que parece animar tantos entusiastas do sistema, se algum dia descobrirmos um regime que seja superior à democracia liberal mas ao mesmo tempo de algum modo anti democrático, não o conseguiremos implantar através de meios democráticos (por muito complexo e contraditório que este estado de coisas seja). Por isso uma democracia liberal que não inclua a possiblidade da sua própria contradição não é uma democracia liberal.
Dois pontos ainda: liberdade é prosperidade? E uniformidade e descontinuidade no Estado Novo
Se não é próspero, não é livre? Se não está livre, não é próspero? O regime chinês, com o “comunismo de características chinesas”, reformulou a partir de tradição oral o dogma marxista: a teoria científica foi transformado numa caça de ratos com gatos. Depois, faz sentido falar de todo o período do estado novo como uniforme em certas coisas (censura, falta de liberdade de expressão e associação em geral) mas não noutras (desenvolvimento económico, liberdade de actividade universitária — que não é “activista”, etc)? Outros pontos em que o progresso chegou antes da revolução de abril e que reflecte um movimento de desenvolvimento social e económico, também ligado ao capitalismo e à globalização: o estatuto da mulher; a liberdade académica; algumas liberdades políticas, sempre imperfeitas; o desenvolvimento económico, muito forte a partir da segunda grande guerra; a neutralidade neste conflito, gerida de forma muito benéfica, este ponto algo de bom sobre Salazar, a sua persistência na segunda guerra, mas a incapacidade de se adaptar depois, Caetano também; etc.
Epilogo: Waterloo
Waterloo. Um enunciado possível para o anterior regime ou para o novo, igualmente: “I feel like I win when I loose”. Nada mudou.