Será que o advento do cinema implica uma rotura com tipos de representação mais familiares (i.e. as artes figurativas ditas tradicionais, como a pintura e a escultura) que existiam antes? Antes pelo contrário. Na época, ao mesmo tempo que as artes canónicas estavam a passar por um momento de rebelião, tal como podemos observar no Impressionismo de Manet, rompendo com a linearidade e o naturalismo, era o cinema que sobressaía, encarregando-se de preencher o vácuo daí emergente, através da consolidação das engenhosas produções de George Méliès e dos filmes mudos da produtora Pathé, entre outros pioneiros, nos horizontes do final do século XIX. Este novo meio visual era assim um substituto das antigas formas de representação de linearidade narrativa e figuratividade visual de que no fin de siècle os movimentos de vanguarda pretenderam emancipar-se — como, por exemplo, na pintura de Manet ou na ficção mais tardia de Joyce — estabelecendo-se assim no cinema um novo porto seguro para a manutenção da narrativa tradicional e da linearidade diagética.
Há dois teóricos sobretudo que se destacam pelo modo como abordam estas questões ao nível da Teoria da Arte; Michael Fried, que a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa já teve a honra de receber em conferência, e um outro Clement Greenberg. O primeiro sublinhou várias vezes a destruição da linearidade operada, por exemplo, por Manet, em que, apesar de a pintura reter aparente figuratividade, o desenho das linhas apontava novas possibilidades plásticas e anti-narrativas antes não existentes; o segundo destaca como, no processo modernista que decorreu desde o final do século XIX e durante o século XX, as artes tradicionais passaram a não conseguir ser definidas ortodoxamente e puseram em causa tudo da sua prática, inclusive o próprio meio. Tornaram-se espaços meta-artísticos, de certo modo. O cinema não: acabado de nascer, possuía a força de uma arte que conseguia impressionar com muito pouco, com pura figuratividade e narrativa mimética e ficcional — veja-se os primeiros filmes dos irmãos Lumiére, estritamente documentais — e também a liberdade do experimentalismo, sendo capaz de, com artifícios muito simples — inclusive a génese dos “efeitos especiais” em Meliés, derivada, de entre muitas coisas, dos números de circo — impressionar vivamente o espectador.
Há que notar, adicionalmente, como o cinema primitivo fez isto particularmente com os artifícios da analogia relacionada com a passagem da imobilidade para o movimento, tudo dentro do universo figurativo e linear, dado que ainda não entrava nos domínios da arte abstracta nem da meta-arte que veio a dominar mais tarde as correntes vanguardistas no século XX em relação às práticas tradicionais. Estes aspectos podem ser vistos em alguns exemplos de produções do período mencionado: Métamorphoses d’un Magicien (1897), da Pathé, Le Magicien (1898) e Le Diable Géant (1902) de Meliés e The Haunted Curiosity Shop (1901), de Robert W. Paul.
Os dois primeiros abordam o tópico do mágico, o ilusionista que faz aparecer e desaparecer, à imagem da luz do cinema, e que entronca noutras figuras de circo e vaudeville populares entre o público da época, trazendo à tela uma familiaridade facilmente identificável. A narrativa era muito básica e pretendia explorar as possibilidades do novo meio visual, fazendo aparecer e desaparecer objectos e pessoas, polvilhando a tela de truques de corte e inserção visual. A câmara não se movia, os planos eram fixos e davam ao espectador a impressão de estar diante de um palco teatral, sendo esse um dos apanágios dessa tradição: era o espectador que seleccionava, com os olhos, aquilo que queria ver, destacando partes específicas do plano, coisa que hoje não acontece nas produções cinematográficas, em que nos deixamos levar pelos planos e pelo corte rápido que por nós selecciona o que há a destacar da cena.
No terceiro, Meliés brinca com mobilidade e imobilidade das figuras no plano, apresentando uma espécie de Mefisto surgindo do nada e uma estátua que adquire movimento, ambos à imagem da magia cinematográfica das imagens cinéticas que emergem da tela bruta; simultaneamente bíblico e de herança teatral clássica, muito arreigado a essa postura, de recorte fantástico e rocambolesco, encarna um perfeito entretenimento para as massas da altura. O último exemplo tem como protagonista um antiquário, misto de cientista e de mágico, que encontra na sua loja várias figuras inanimadas que se tornam animadas, mais uma vez mimetizando o processo cinematográfico; pode-se de resto dizer que as figuras de conotação arqueológica que ali vão surgindo, assim como a mise en scène, parecem advir da idade de ouro dessa prática, ocorrida precisamente no final do anterior século.
Uma última nota deve impor-se para apreço: não deixa de ser curioso que estas produções primitivas apresentem durações tão curtas, tão digeríveis e tão rápidas como uma “película” de tiktok na contemporaneidade.