O contagioso (e o seu feedback)

 Esta proposta encontra no SARS-CoV-2 uma contaminação de outro género: a do vírus da palavra e o feedback gerado pela sua retransmissão. Procura-se, na leitura que fazemos aos efeitos da pandemia Covid-19, revisitar a ideia chave de William Burroughs em A Revolução Electrónica, misturando com filmes, vídeos e pintura, para percebermos como o vírus da palavra domina desde sempre a produção do discurso e, procurando avidamente replicar-se, infiltra-se nas rotinas das gentes. PALAVRAS-CHAVE: Vírus da palavra, desejo, discurso, contagioso, Covid-19. Texto de Catarina Patrício[1].

Images. Millions of Images. That’s what I eat.

William S. Burroughs

na imagem: film still de Epidemic (1987) de Lars von Trier.

 

Uma máquina de escrever bate E-P-I-D-E-M-I-C. Os caracteres avançam. É o gesto tipográfico que atende quando a tarefa é começar do zero. O primeiro guião do filme, “The Inspector and the Whore”, perdeu-se porque um vírus se alojou na floppy disk. Para o superar, melhor fora bater tudo de novo mas à máquina, como se esse gesto segurasse melhor as palavras ao real (uma certa manualidade trabalha no teclar da typewritter por ser visível a ação da ferramenta – precisamente os tipos que dela se soltam e que, como martelos comandados pelo fervilhar dos dedos, golpeiam com tinta o papel). Falo de Epidemic[2] (1987) de Lars von Trier, tenso e infeccioso filme em torno de um guião dactilografado por dois cineastas amigos, Lars Von Trier e Niels Vørsel, que interpretando o seu próprio papel contam uma história com improvisos ao género docuficção.

A máquina de escrever bateu EPIDEMIC. A palavra permanecerá mecanograda a vermelho no canto superior esquerdo do ecrã o tempo que o filme durar. Uma maneira de mostrar que a ficção escreve o real – ou que ao golpear o presente (com a palavra escrita) o futuro daí há de escorrer [3].

Desdobra-se a história, entremeada entre o bater das teclas e as cenas do guião que se vai escrevendo. Evidentemente, a epidemia alastrou. O Doutor Mesmer, também interpretado por Von Trier, procura obstinadamente a cura para a doença viral, mas acaba por propagá-la ainda mais. Curioso notar no personagem o apelido de Franz Mesmer do Lebensmagnetismus – teoria do vitalismo ou magnetismo essencial entre as coisas animadas ou inanimadas; o mesmo Mesmer de mesmerismo e hipnose. Hipnose que viera afinal a ser essencial para o desenlace de Epidemic: é o corpo da medium que lê o guião que se oferece como meio de passagem da ficção ao real, contaminando todos os convidados do jantar, guionista e realizador incluídos, instalando definitivamente a doença num festim de gritos, esguichos, borbulhagem e copos partidos.

A máquina escreveu Epidemia vaticinando que a palavra é um vírus[4] e quer expandir-se, conquistar territórios. Essa é uma nota verdadeiramente política, instalando Epidemic como alegoria e trauerspiel às pragas da história da Europa, a todas elas, da peste negra às ideologias. E sob esse aspecto é o discurso que projeta o desejo de poder:

“Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, a sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Cf. Michel Foucault, A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada a 2 de Dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio (São Paulo: Loyola), 10.

Porque o discurso é da ordem do desejo, o vírus da palavra será o condutor a estas considerações sobre o que há de contagioso na palavra (e o seu feedback).

Comum a um qualquer animálculo, a um prolífico vírus, a uma planta em polinização, a uma ideia – à palavra – é essa vontade de projetar-se em todas as coisas. A avidez é o facto total[5], pensara Gabriel Tarde, enfatizando que as coisas são o que querem e o que têm. O verbo ser, imperativo da condição permanente, não poderia dar conta da voraz realidade processual das coisas e do desejo que as anima. Porque qualquer coisa, uma vez existente, quer projetar-se, e só será detida no seu caminho se deparada com um rival igualmente forte[6] – discorre Tarde sobre o objetivo fundamental das mónadas, fundando uma sociologia de tudo.

Assim se percebe como a história e a história antes da pré-história, continuamente, revelaram choques entre sociedades de coisas distintas que, por terem o mesmo objetivo, colidem – portanto a verdadeira história é a história do desejo.[7] Nessa colisão dá-se o “sim” ou o “nunca”[8] e de tempos a tempos ocorrem verdadeiros “choques civilizacionais”, i.e., quando com violência sociedades de tempestades derrubam sociedades de objetos naturais ou sociedades de construções humanas; ou quando sociedades de cometas extinguem sociedades de criaturas (como os Dinossauros); ou quando sociedades de humanos se apropriam à força de outras sociedades de humanos. Contudo, e mais silenciosamente, note-se como sociedades distintas cooperaram entre si, aliando-se, por exemplo, para travar um rival comum. Um historiador lê estes acontecimentos – ou como ideias, pessoas, furacões, tabelas Excel, exércitos, objetos [9] (de consistência mais rija ou mais soft, mais cristalinos ou mais compostos), fazem coexistir ou colidir o desejo que os anima. E isso é procurar pela vida social das coisas.[10]

Afinal um vírus, na sua micropolítica de infra-organismo acelular infeccioso, pode não ter a finalidade social de destruir o ambiente que parasita, não se fazendo então notar em sintomas malignos. Podemos mesmo nem ter como saber da sua presença. Esses são os chamados casos assintomáticos e a sua propagação pode alcançar resultados consideráveis.

SARS-CoV-2. Não é apenas este parente da família dos coronaviridae que contagia, são também os seus efeitos. Contagioso, sim. Mas eis o seu feedback.

Porque o vírus, sendo palavra, é também código e programa e, por esse motivo, é susceptível de ser trabalhado laboratorialmente, é passível de ser copiado e retransmitido; mas continuamos sem sair do domínio escrita, das antropotécnicas.[11]

E o que faz um vírus? Come. Come para fazer cópias exatas de si mesmo, mais e mais, fabricando novas cópias de si e assim, substituindo o hospedeiro, programa-se um corpo vazio. Espreite-se o depoimento técnico do poder do vírus:

“Gentlemen, it was first suggested that we take our own image and examine how it could be made more portable. We found that simple binary coding systems were enough to contain the entire image however they required a large amount of storage space until it was found that the binary information could be written at the molecular level, and our entire image could be contained within a grain of sand. However it was found that these information molecules were not dead matter but exhibited a capacity for life which is found elsewhere in the form of virus. Our virus infects the human and creates our image in him. […] This virus released upon the world would infect the entire population and turn them into our replicas […]. ” Cf. William Burroughs, Nova Express (New York: Grove Press, 1992), 49.

Um vírus, uma tapeworm[12], é também uma unidade ínfima de palavras e imagem. E “[a]ssim concebido, o vírus pode ser feito de encomenda no laboratório”. (Burroughs, A Revolução Electrónica, 64).

Pois bem, Covid-19, o contágio começa. E o vírus disse “Images. Millions of Images. That’s what I eat”. Este vírus é uma tapeworm e a sua influência está em ser gravador. Atente-se ao discurso:

— O Gravador 1 diz “I can’t breathe”[13].

— Gravador 2 retransmite “I can’t breathe”…. Everywhere. Anywhere (“retransmitir gravações de um acidente pode provocar outro acidente.”)

— Gravador 3, em modo megafone, “Black lives matter!” – diante desta desolação seria inevitável que Adão (gravador 1) recordasse a árdua caminhada que fez depois de o Senhor o ter expulsado do Jardim do Éden[14].

Sabemos como no princípio era a palavra escrita e depois a palavra foi vírus, suscitando a palavra falada, dita, clamada, reclamada, exorada. Gritar é um direito e o sítio de uma desobediência civil conquanto a agitação dos vectores seja colectiva[15] – porque uma mónada[16], um vírus, um indivíduo, nada pode sozinho. Daí que a palavra tenha de ser reinscrita, reproduzida, replicada, de forma a poder operar novas distribuições e inaugurar novos ciclos de contágio. Deveras contagiante: os efeitos sonoros de um motim, se retransmitidos em situação de tumulto, geram um verdadeiro motim, “apitos de polícia gravados atraíram os chuis. Disparos gravados e fá-los-á puxar pelas armas”.[17]

Mas a retransmissão abre também novas possibilidades de atualização do papel de informadores e agentes provocadores na tarefa de minar por dentro um movimento social (ou um aparelho instituído). Não é uma inovação, a utilização política de delinquentes é uma prática bem antiga e “que atingi[u] o seu pleno florescimento com a tomada de poder por Luís Bonaparte.”[18] Pois bem, “primeiro como tragédia, depois como farsa”[19] e, com novas roupagens, lá se há de tornar a repetir a história para voltar a ser tragédia. Ou farsa. Seja o que for, pois “todas as revoluções somente aperfeiçoaram a máquina em vez de a destruir[20] – o aforismo de Marx na sua fulgurante atualidade.

Se a ilusão é uma arma revolucionária,[21] a farsa também o é, podendo, enquanto máquina, servir qualquer um[22], em qualquer situação, com uma qualquer intenção, mesmo que nenhuma. Daí que na tapeworm se reúnam news, fakenews, avanços da ciência laboratorial[23], product placement e opinião publicada – e lá esteja o vírus da palavra a dominar a produção e a intrometer-se nas rotinas das gentes, fazendo com que o hospedeiro seja “[…] atacado simultaneamente por um vírus aliado, que lhe diz que tudo está bem, e por um vírus de dor e medo”. Atenção, este vírus sabe mesmo utilizar “o velho método de entrada do chui violento e do chui compincha[24].

O vírus da palavra infiltra-se. Diz Giorgio Agamben, acompanhando evolução da Covid-19 que

[…] é a própria linguagem como lugar de manifestação da verdade que é confiscada aos seres humanos. Agora, apenas podem observar mudos o movimento verdadeiramente real da mentira. Por isso, para deter este movimento, todos devem ter a coragem de procurar sem compromissos o bem mais precioso: uma palavra verdadeira.” (Agamben 2020, 37)

Entre verdadeiro e falso, mas também entre montras partidas e pilhagens[25] – no fim de contas que destino terá o flâneur no século XXI? – fica por perceber se assistimos a uma tragédia, se a uma revolução, se a uma farsa (ou tudo ao mesmo tempo). De Chicago, entretanto apelidada de Chiraque[26], mas também de Baltimore, de Los Angeles[27], de Nova Iorque, chegam notícias de tumultos e violência, efeitos de uma total desorientação. Lembremos Michel Foucault quando diz que [a] organização de uma ilegalidade isolada e fechada na delinquência não teria sido possível sem o desenvolvimento dos controlos policiais.[28]

Se a polícia não funciona, constituem-se milícias civis, os vigilantes[29]Batman onde estás? “Já tivemos a nossa quota de morcegos por agora,”[30] talvez seja melhor perguntar por Joker (2019), porque o filme de Todd Phillips mostra bem a matéria de que se alimentam as convulsões e as suas condições de possibilidade. Vemos esses sinais de forma oblíqua nos valores de fundo de Gotham: o acumular de sacos de lixo pela cidade, as paredes gastas, os tecidos desbotados, as lâmpadas tremulantes, as atmosferas densas e irrespiráveis, mas também as greves prolongadas e instaladas, a massa de desempregados amotinados, a precariedade dos vínculos, a solidão generalizada, em suma, os homo sacer[31] do capitalismo. Lá está, “Comedy is subjective, Murray”. E subjetivante. Daí que a figura de Joker seja capaz de desencadear a “forma colectiva da economia do desejo”[32]: o vilão já não está nele mas no canibal corporativismo do capitalismo[33] figurado nos bullshit jobbers[34] da Wayne Enterprises.

Se a política é “a arte de garantir uma unidade da cidade no seu desejo de futuro comum” (Stiegler, 2018: 18), pergunte-se se este deslaçamento do comunal não prefigura a Morte das Grandes Cidades Americanas.[35] A avaliar pelas notícias,[36] a fuga já começa: Escape from New York; Escape from L.A [37] – as cidades que John Carpenter filmou enquanto enclaves ou cidades-prisão, onde vale tudo menos sair. Um projeto técnico bem diferente da prisão-castigo ou prisão-aparelho, mas não menos engenhoso do que aqueles que o antecederam[38].

É muito mais fácil desencadear um sarilho do que pôr-lhe termo – dizia Burroughs e sabia bem do que falava. Este contágio está para durar, e fugir do vírus da palavra não resolve. Pode lembrar o bucólico retorno dos artistas ao campo no tempo da escola de Barbizon, mas até no quadro de Millet lá está o vírus a acenar: em L’Angélus (1857-59) dois camponeses suspendem o trabalho no campo para recitar a famosa anunciação do anjo Gabriel a Maria – deve ser rezada três vezes por dia, e lá atrás o bater do sino da igreja lembra a obrigação. Uma Tapeworm, e das antigas. Demasiado contagioso, o vírus da palavra, a intrometer-se nas rotinas diárias e a contaminar a produção no real. Desde o princípio.

na imagem: L’Angélus (1857-59), tela a óleo de Millet.

Referências:

Agamben, Giorgio. Homo Sacer: Il Potere Sovrano e la Nua Vita. Torino: Einaudi, 1995.

Appadurai, Arjun. “Introduction: commodities and the politics of value.” In The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective, 3-63. Cambridge University Press, 1986.

Arendt, Hannah. Desobediência Civil. Trad. João C. S. Duarte. Lisboa: Relógio D’Água, 2017. Publicado originalmente em 1972.

Burroughs, William. Nova Express. New York: Grove Press, 1992.

Burroughs, William. A Revolução Electrónica. Translated by Maria Leonor Teles and José Augusto Mourão. Lisboa: Vega, 2010. Publicado originalmente em 1970.

Burroughs, William, and Brion Gysin. The Third Mind. New York: The Viking Press, 2010. Originally published 1978.

Deleuze, Gilles, and Félix Guattari. “Capitalism: A Very Special Delirium.” In Félix Guattari Chaosophy, texts and interviews 1972-1977, edited by Sylvère Lotringer, 36-38. Los Angeles: Semiotext(e), 2009. Publicado originalmente em 1973.

Foucault, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada a 2 de Dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola.

Foucault, Michel. É Preciso Defender a Sociedade – Curso no Collège de France 1975-1976. Trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Lisboa: Livros do Brasil, 2006.

Graeber, David. Bullshit Jobs: A Theory. New York: Simon&Schuster, 2018.

Knorr-Cetina, Karin. Epistemic Cultures: How the Sciences Make Knowledge. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999.

Lispector, Clarice. A Hora da Estrela. Lisboa: Relógio d’Água, 2002. Publicado originalmente em 1977.

Marx, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. Publicado originalmente em 1852.

Schmitt, Carl. “The Age of Neutralizations and Depolitizations.” In The Concept of the Political, Trad. M. Konzett and J. McCormick, 80-96. Chicago: The University of Chicago Press, 2007. Publicado originalmente em 1929.

Shaviro, Steven. “Coda (de Post-Cinematic Affect).” Trad. Manuel Bogalheiro. Revista de Comunicação e Linguagens 45-46 (2017).

Sloterdijk, Peter. Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o Humanismo. Trad. José Óscar Almeida. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. Publicado originalmente em 1999.

Tarde, Gabriel. Monadology and Sociology. Trad. Theo Lorenc. Melbourne: Re.press, 2012. Publicado originalmente em 1893.


  1. Universidade Lusófona, CICANT, Lisboa, Portugal; https://orcid.org/0000-0002-1904-2775 ; p4113@ulht.pt



  2. Um dos 3 filmes da trilogia “Europa” do realizador dinamarquês, antecedido de “Element of Crime” (1984) e sucedido por “Europa” (1991).



  3. Era essa a proposta de Burroughs e Gysin com o cut-up, uma técnica de remistura da palavra inspirada nos procedimentos dadaístas. Reconfigurando novas sequências, o cut-up poderá alcançar uma dimensão profética – ao cortar ou golpear o presente, o futuro há de eventualmente escorrer. Cf. William Burroughs e Brion Gysin [1978], The Third Mind (New York: The Viking Press, 2010).



  4. Para Burroughs, a palavra escrita é um vírus mortífero que se alojou nas gargantas dos primeiros hominídeos e permitiu a palavra falada depois de ter atingido um estado de simbiose estável com o hospedeiro. Cf. William Burroughs [1970], A Revolução Electrónica. Trad. Maria Leonor Teles e José Augusto Mourão (Lisboa: Vega, 2010).



  5. Tarde distancia-se de Durkheim ao admitir que todo o fenómeno é um facto social Cf. Gabriel Tarde [1893], Monadology and Sociology. Trad: Theo Lorenc (Melbourne: Re.press, 2012), 28.



  6. Cf. Tarde, Monadology and Sociology, 60.



  7. Dito por Deleuze e Guattari em entrevista. Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari [1973], “Capitalism: A Very Special Delirium” in Félix Guattari Chaosophy, texts and interviews 1972-1977. Ed. by Sylvère Lotringer (Los Angeles: Semiotext(e) 2009), 36.



  8. Releia-se Clarice Lispector na Hora da Estrela para agarrar esta contingência do encontro no choque entre moléculas: “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve”. Cf. Clarice Lispector [1977], A Hora da Estrela (Lisboa: Relógio d’Água, 2002), 13.



  9. A proposta da teoria do ator-rede (ANT ou actor-network theory) é refundar a sociologia partindo da figura do ator-rede, alargado também a entidades não humanas. Uma boa metodologia, herdeira de Gabriel Tarde. Cf. Bruno Latour, Reassembling the Social (Oxford University Press, 2005).



  10. O antropólogo Arjun Appadurai aponta para a vida social das coisas partindo da relação que se mantém e sustenta na troca económica. É uma boa pista e reforça a relevância metodológica da ANT. Cf. Arjun Appadurai, “Introduction: commodities and the politics of value”, in The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective (Cambridge University Press, 1986), 3.



  11. Cf. Peter Sloterdijk [1999], Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o Humanismo. Trad. José Óscar Almeida (São Paulo: Estação Liberdade, 2000).



  12. Ténia. Mas usamos a palavra inglesa não apenas porque o encontrámos assim em Nova Express, mas também porque lembra tape enquanto cassette – a fita magnética.



  13. Aludimos à trágica morte de George Floyd. O racismo é hediondo e incompreensível, mas para o decifrar, percebendo a forma como atualiza a Guerra, consulte-se Michel Foucault, É Preciso Defender a Sociedade – Curso no Collège de France 1975-1976. Trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira (Lisboa: Livros do Brasil, 2006).



  14. Baseamo-nos claramente no ensaio “Feedback de Watergate para o Jardim do Éden”. Cf. Burroughs, A Revolução Electrónica.



  15. Cf. Hannah Arendt [1972], Desobediência Civil. Trad. João C. S. Duarte (Lisboa: Relógio D’Água, 2017).



  16. Uma mónada nada pode isoladamente, daí a sua tendência grupal. Veja-se como o explica Tarde: “It comes down to the fact that in a society no individual can act socially, or show himself in any respect, without the collaboration of a great number of other individuals, most of them unknown to him. The obscure labourers who, by the accumulation of tiny facts, prepare the appearance of a great scientific theory formulated by a Newton, a Cuvier, or a Darwin, compose in some sense the organism of which this genius is the soul; and their labours are the cerebral vibrations of which this theory is the consciousness. Consciousness means in some sense the cerebral glory of the brain’s most influential and powerful element. Thus, left to its own devices, a monad can achieve nothing. This is the crucial fact, and it immediately explains another, the tendency of monads to assemble”. Tarde, Monadology and Sociology , 34.



  17. Uma metodologia da Revolução Electrónica. Cf. Burroughs, A Revolução Electrónica., 40.



  18. Cf. Michel Foucault [1975], Vigiar e Punir, O Nascimento da Prisão. Trad. Pedro Elói Duarte (Lisboa: Edições 70, 2013), 323.



  19. Aqui aludindo a Karl Marx e ao 18 de Brumário de Luís Bonaparte, ensaio em que analisa meticulosamente os acontecimentos que levaram ao Golpe de Estado no qual Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, se autoproclamou imperador. Cf. Karl Marx [1852], O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider (São Paulo: Boitempo, 2011).



  20. Cf. Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, 141.



  21. “A ilusão é uma arma revolucionária. Eu salientaria algumas utilizações específicas das fitas pré-gravadas e seccionadas (cut-up), transmitidas nas ruas, como arma revolucionaria: para espalhar boatos […] para desacreditar adversários […] como arma de primeira linha para produzir e atiçar motins”. Cf. Burroughs, A Revolução Electrónica, 40.



  22. Precisamente porque serve qualquer um e para qualquer finalidade, Carl Schmitt escreve em 1929 n’“A Era das Neutralizações e Despolitizações”, que a técnica não poderá ser neutra. Contudo volteia-se o argumento logo de seguida, pois mesmo que a técnica tenha sido “capturada” ou mobilizada ao serviço de um fim preciso, os seus efeitos sociológicos sempre escapam ao controlo dos aparelhos de poder. Veja-se a dedução, algo encoberta, na seguinte passagem: «[…] it is because technology is magically linked to morality on the somewhat naive assumption that the splendid array of contemporary technology will be used only as intended, i.e., sociologically, and that they themselves will control these frightful weapons and wield this monstrous power. But technology itself remains culturally blind. Consequently, no conclusions which usually can be drawn from the central domains of spiritual life can be derived from pure technology as nothing but technology—neither a concept of cultural progress, nor a type of clerk or spiritual leader, nor a specific political system.» Cf. Carl Schmitt [1929]. “The Age of Neutralizations and Depolitizations,” In The Concept of the Political. Trad. M. Konzett e J. McCormick (Chicago: The University of Chicago Press, 2007), 92.



  23. A este propósito veja-se a noção de culturas epistémicas de Karin Knorr-Cetina, definidas enquanto “[…] amalgams of arrangements and mechanisms – boned through affinity, necessity, and historical coincidence – which, in a given field, make up how we know what we know. Epistemic cultures are cultures that create and warrant knowledge, and the premier knowledge institution throughout the world is, still, science.” Karin Knorr-Cetina, Epistemic Cultures. How the Sciences Make Knowledge. (Cambridge & London: Harvard University Press, 1999), 1., e de como, no centro das culturas epistémicas se destaca a figura do laboratório. Permitimo-nos citar mais uma passagem: “Laboratories not only improve upon natural orders, but they also upgrade social orders, in a sense. […] Yet the social is not merely ‘also there’ in science. Rather it is capitalized upon and upgraded to become an instrument of scientific work. Laboratory processes align natural orders with social orders by creating reconfigured, workable objects in relation to agents of a given time and place. But laboratories also install reconfigured scientists who become workable (feasible) in relation to these objects. In the laboratory it is not ‘the scientist’ who is the counterpart of these objects. Rather, counterparts are agents enhanced in various ways to fit a particular emerging order […]. Not only objects but scientists are malleable with respect to a spectrum of behavioural possibilities.” Cf. Knorr-Cetina, Epistemic Cultures, 28-29.



  24. Burroughs, A Revolução Electrónica, 46.



  25. Veja-se a massa de gente a partir montras e a roubar. Poderia supor-se que diante de uma profunda crise estivessem com fome. Não roubam comida mas roupa de marcas de grife como Dior ou Yves Saint Laurent. Real footage: https://www.youtube.com/watch?v=4Zv3l6HSwgE. Acedido a 13 de Agosto de 2020.



  26. Numa alusão ao cenário de guerra e destruição da guerra no Iraque. A violência torna-se num inescapável ciclo vicioso, algo ventilado por um dos elementos dos gangs que já é, nos seus vinte e poucos anos, um veterano de guerra. Veja-se esta reportagem para a BBC em https://www.bbc.com/news/world-us-canada-37323969. Acedido a 13 de Agosto de 2020.



  27. Veja-se este artigo do The American Journal of Emergency Medicine em que se analisam as tendências da violência relacionada com o uso de armas de fogo em grandes cidades americanas durante a pandemia provocada pela COVID-19. https://www.ajemjournal.com/article/S0735-6757(20)30344-2/fulltext. Acedido a 13 de Agosto de 2020.



  28. Foucault, Vigiar e Punir, 323.



  29. Os gangs terão começado assim, protegendo os bairros da criminalidade. Veja-se este vídeo, também chegado de Chicago, onde se vê o Gang Chicago Latin Kings protegendo o seu bairro das pilhagens aleatórias: https://www.youtube.com/watch?v=dD1DB3-e798 acedido a 13 de Agosto de 2020



  30. Veja-se o relato, de 30 de Março de 2020, do escritor Joshua Cohen: “Mas não há nenhum esquadrão de mutantes patriotas de capa que salvem Gotham desta vez. O melhor que podemos fazer é encolher-nos num canto, com o nosso pijama do Batman enquanto racionamos o nosso papel higiénico do Batman e nos lembramos de que muito provavelmente uma experiência interespécies, ou um acidente interespécies, que nos meteu nesta confusão. Já tivemos a nossa quota de morcegos por agora”. Cf: https://observador.pt/especiais/caos-em-nova-iorque-nao-ha-super-herois-que-salvem-gotham-desta-vez/ Acedido a 14 de agosto de 2020.



  31. Usando aqui o conceito de Agamben. Cf. Giorgio Agamben Homo Sacer: Il Potere Sovrano e la Nua Vita, 1995 2005, Torino: Einaudi*



  32. Para perceber a figura de Joker, leia-se Guattari: “Take desire in one of its most critical, most acute stages: that of the schizophrenic – the schizo who can produce something within or beyond the scope of the confined schizo, battered down by drugs and social repression. It appears to us that certain schizophrenics directly express a free deciphering of desire. But how does one conceive a collective form of the economy of desire? Certainly not at the local level. I would have a lot of difficulty imagining a small, liberated community maintaining itself against the flows of a repressive society, an addition of individuals emancipated one by one. But if desire constitutes the very texture of society in its entirety, including its mechanisms of reproduction, a movement of liberation can “crystallize” within the whole of society”. Cf. Guattari, “Capitalism: A Very Special Delirium”, 41.



  33. “Corporate Cannibal” é o título da música de Grace Jones que serve a Steven Shaviro para uma análise ao capitalismo. Em Post-Cinematic Effect (2010) diz que a Jones do videoclip “[…] consome qualquer pessoa e qualquer coisa que conheça, seguindo a lógica interna do próprio capital. Ela espera, desse modo, «fazer o mundo explodir». O mesmo é dizer, que faz uma jogada perigosa: aposta na possibilidade extrema do niilismo virulento do próprio capital poder conduzir à sua própria queda.” O último capítulo do livro de Shaviro, “Coda”, de onde extraímos a expressão e a analogia, foi traduzido por Manuel Bogalheiro para a Revista de Comunicação e Linguagens 45-46. Cf. Steven Shaviro, “Coda (de Post-Cinematic Affect),” in Movimento e Mobilização Técnica, Ed. José Bragança de Miranda e Catarina Patrício (Lisboa: Alêtheia, 2017).



  34. Na área da antropologia do trabalho destacamos o importante contributo de David Graeber, não apenas na sua grande obra dedicada à dívida, Debt: the first 5,000 years (New York: Mellvillehouse, 2011), mas auxilia aqui particularmente a leitura de Bullshit Jobs: A Theory (2018), onde distingue entre trabalho efetivo – de enfermeiros, médicos, professores, operários, pessoal de recolha de resíduos, pessoal das cadeias de distribuição de mercadorias, etc., do trabalho sem sentido ou da “treta” –dos flunkies (pessoal administrativo que existe para que “o chefe se sinta bem”, os goons (lobbistas e telemarketers que combatem outros lobbistas e telemarketers), duct tapers (pessoal de frontdesk cuja função consiste em resolver temporariamente um problema, engonhando), box tickers (aqueles que criam a aparência de coisas supostamente úteis) e “taskmasters” (o lugar das lideranças intermédias onde se geram mais bullshit jobs). Graeber não critica tanto o bullshit jobber em si, que muitas vezes tem de “fingir” ser necessário o posto de trabalho que ocupa, o que acaba por justificar toda esta cadeia onde proliferam sobretudo os chefes e os C.E.O. O centro da crítica é o sistema que recruta este trabalhador “da treta” para uma espécie de managerial feudalism, alertando com seriedade para as suas consequências: o alargamento do velho fosso entre ricos e pobres, a precariedade dos vínculos e, sobretudo, a desvalorização e degradação do trabalho efetivo. Cf. David Graeber, Bullshit Jobs: A Theory (New York: Simon&Schuster: 2018).



  35. Talvez um bom momento para revisitar o clássico – Jane Jacobs [1961], The Death and Life of Great American Cities (New York, Vintage Books: 1992).



  36. A título de exemplo, consulte-se https://edition.cnn.com/2020/05/02/us/cities-population-coronavirus/index.html. Acedido a 3 de novembro de 2020.



  37. Escape from New York (1981) e Escape from L.A. (1996), filmes de John Carpenter que parecem estar em vias de acontecer: no episódio de Nova Iorque, face ao aumento brutal do crime, Manhattan é encerrada sob muros e feita uma enorme prisão de alta segurança. No episódio de L.A., a cidade descola-se do continente depois de um forte sismo, convertendo-se numa ilha-prisão.



  38. Foucault. Veja-se a passagem completa: “Do ponto de vista da lei, a detenção pode ser realmente privação de liberdade. O encarceramento que a assegura envolveu sempre um projeto técnico. A passagem dos suplícios, com os seus rituais espetaculares, a sua arte misturada com a cerimónia do sofrimento, para penas de prisão enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das administrações, não é a passagem de uma arte de punir para outra, não menos engenhosa do que aquela. Mutação técnica.” Cf. Foucault, Vigiar e Punir, 295.