O Papel do Treinador na Formação e Educação de um Praticante Desportivo

Alexandre Duarte, PhD.

(ICNOVA, Universidade Nova de Lisboa)

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2665-864X

A função e responsabilidade de um treinador pode ser vista de vários e diferentes ângulos. Se nos detivermos exclusivamente na sua essência funcional, podemos afirmar que treinar pode ser entendido, de forma simplista, como o ato de fazer aprender e desenvolver capacidades, i.e., como um conjunto de ações organizadas, com a finalidade específica de promover intencionalmente a aprendizagem e o desenvolvimento de alguma coisa, por alguém, ao que poderíamos acrescentar, ainda, e com os meios adequados à natureza dessa aprendizagem e desse desenvolvimento.

Ou seja, o treinador pode ser visto exclusivamente como o profissional, cuja finalidade específica é conduzir esse processo de treino, e cujas funções se definem, então, com base num conjunto de competências resultantes da mobilização, produção e uso de diversos saberes pertinentes (científicos, pedagógicos, organizacionais, técnico-práticos, etc.), organizados e integrados adequadamente em função da complexidade da ação concreta a desenvolver em cada situação da prática profissional (Rosado e Mesquita, 2007). Até aqui, tudo bem. Mas um treinador é (ou deveria ser) mais do que isso.

Um treinador é também, por definição, um formador. E é olhando para a etimologia da palavra, que verdadeiramente compreendemos todo o seu significado: formar é isso mesmo, é moldar, é partir de um ponto inicial e ir evoluindo, construindo, adaptando, dando forma num determinado sentido. Com uma determinada intenção, com um objetivo. E isso pode ser mais ou menos facilmente alcançado em função da relação de cumplicidade estabelecida entre o treinador e o atleta, ou seja, é especialmente importante que essa relação seja agradável e que se estabeleça um clima de afetividade positiva e de confiança mútua (Rodrigues, 1997).

Quando passamos para a área específica do desporto de competição, entramos literalmente num outro campeonato. Dir-se-ia que é natural que se relacione a busca incessante da alta performance e superação de limites individuais com recordes desportivos, quer em competições nacionais, quer em internacionais e olímpicas. Sim, é natural. Mas é precisamente aqui que o problema muitas vezes começa. Talvez seja essa, precisamente, a motivação que estimula os atletas, mas que envolve também treinadores e médicos na busca desses novos recordes, no sentido de obter a glória, mesmo que para isso seja necessário transpor os limites da capacidade humana. E aqui coloca-se a questão de “um milhão de dólares” (para usar o proverbial anglicismo vertido para a língua portuguesa): será que todos os recordes conhecidos e registados até hoje, foram batidos apenas com o uso natural do corpo, através do treino, e desempenho físico e psicológico? Infelizmente não é isso que a história nos tem mostrado, ao vermos noticiada, amiúde, a anulação de recordes e a retirada de medalhas e títulos a tantos atletas que são (eram?) ídolos de milhões de pessoas no mundo inteiro e cujo exemplo, precisamente pelo alcance e impacto que tem, deveria ser imaculado.

Poucos meses antes dos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, o chefe da equipa médica canadiana, William Standish, assumiu que o ideal olímpico, livre de drogas, já não era possível, declarando: “temos sólidas informações que confirmam que o uso de drogas que melhoram o desempenho atlético é uma epidemia”. E mais: Standish afirmou, ainda, que “há um uso crescente, entre os jovens atletas, de esteroides anabolizantes e outras substâncias que melhoram o desempenho” (Waddington, 2006, p. 14).

Efetivamente, o doping é uma temática que representa um dos problemas com maior destaque e dos mais preocupantes da realidade desportiva, não apenas pelo facto de falsear a “verdade” da mesma, mas também porque apesar de potenciar o rendimento, poderá colocar em risco a saúde dos atletas (Teixeira, 2019). O facto é que, apesar da lei nº38/2012 de 28 agosto aprovar a legislação antidopagem no desporto, de acordo com as regras estabelecidas no código mundial antidopagem, infelizmente, só por si, a presente regra continua a não ser suficiente para dissuadir muitos atletas do consumo de substâncias ilícitas, como o provam os inúmeros casos que não raramente vemos, lemos e ouvimos nos OCS.

E qual é, ou deverá ser, então, o papel dos treinadores no meio deste flagelo? Num estudo realizado por Patriksson & Eriksson (1990, cit. in Gomes, 2005), cujo objetivo era o de avaliar o programa de formação dos treinadores na Suécia, os atletas foram questionados sobre vários assuntos, entre os quais, precisamente, como é que viam a importância do papel do treinador. Curiosamente (ou talvez não), a figura do treinador foi considerada a mais importante do fenómeno desportivo, especialmente para os jovens atletas, em particular aqueles com características de liderança, como o carisma.

Ainda segundo Gomes (2005), o aspeto mais surpreendente do contacto com líderes carismáticos é a forma simples e clara como apresentam aquilo que pretendem dos seus grupos de trabalho, facto este muito associado à firmeza com que são comunicados os melhores caminhos a seguir. Esta definição está em linha com os escritos de Conger e Kanungo (1994) que descrevem os líderes carismáticos como pessoas que procuram alterar os problemas que prejudicam o exercício das suas atividades, parecendo vocacionados para funcionarem como “agentes de mudança”. Este conceito é fundamental, uma vez que tem implícita a noção de capacidade de influência. E como afirmado por Howell & Avolio (1995), são estes líderes, denominados também de “indivíduos transformacionais”, que se preocupam em pautar o seu comportamento por padrões éticos e morais aceitáveis, que muitas vezes defendem a necessidade de todos os elementos da equipa assumirem uma atitude honesta, tanto com os colegas de equipa como com os adversários e árbitros.

É aqui que reside a chamada filosofia de um treinador, que não é mais do que um conjunto de padrões pelos quais vai influenciar, ensinar e modelar os seus atletas. De acordo com Hardman e Jones (2013, cit. in Resende, 2018), essa filosofia deve ser edificada sobre quatro conceitos, a saber: a axiologia (o que o treinador valoriza), a ontologia (o sentido que atribui ao processo de treino), a fenomenologia (reflexões sobre a experiência de ser treinador) e a ética (o que o treinador ajuíza sobre o que é moral e imoral). E falar de ética, no desporto, significa refletir acerca dos valores orientadores da ação, dos ideais que presidem à atividade desportiva.

Em jeito de conclusão, este é então, para mim, a par da sua importância no desporto, o verdadeiro papel de um treinador: liderar pelo exemplo, pelo compromisso, pela motivação e pela busca da superação, mas sempre, sempre, com respeito por todos os intervenientes, e pautando a sua conduta por valores, pela verdade, e pela ética. Afinal, como vimos, um treinador forma, molda, influencia. As crianças e os jovens, que são, nada mais nada menos, que a sociedade que queremos ver e ter amanhã, não estão isentas dessa influência.

Referências

Conger, J. A. & Kanungo, R. (1994). Charismatic leadership in organizations: Perceived behavioral attributes and their measurement. Journal of Organizational Behavior, 15, 439-452.

Gomes, A. R. (2005). Liderança e relação treinador-atleta em contextos desportivos. Tese de Doutoramento, Universidade do Minho

Hardman, A., & Jones, C. (2013). Philosophy for coaches. In R. L. Jones & K. Kingston (Eds.), An introduction to sports coaching: Connecting theory to practice (2 ed., pp. 99-111). NY: Routledge.

Howell, J. M. & Avolio, B. J. (1995). Charismatic leadership: Submission or liberation? Ivey Business Journal, 60, 62-70

Resende, R. (2018). Filosofia do treinador e sua implementação com eficácia. Journal of Sport Pedagogy and Research4(3), 51-59.

Rodrigues, J. (1997). Os treinadores de sucesso. Estudo da influência do objectivo dos treinos e do nível de prática dos atletas na actividade pedagógica do treinador de Voleibol

Rosado, A., & Mesquita, I. (2007). A formação para ser treinador. In Congresso Internacional de Jogos Desportivos (Vol. 1).

Teixeira, A. (2019). Doping: necessidade ou complemento? Tese de Mestrado, Universidade do Porto

Waddington, Ivan. A história recente sobre o uso de drogas nos esportes: a caminho de uma compreensão sociológica. In: GEBARA, Ademir; PILATTI, Luiz Alberto (Orgs.). Ensaios sobre história e sociologia nos esportes. Jundiaí: Fontoura, 2006. p. 13-44.