A atualidade é ainda marcada pelo mais preponderante movimento ideológico que a Humanidade conhece. Os fundamentos desse movimento político-social residem na segunda metade do século XVIII e na primeira metade do século XIX, o Iluminismo. Apesar da aparente distância cronológica, esta matriz é a causa-mor do panorama atual.
Discutir os fatores que determinaram a origem deste movimento ideológico não é o mais pertinente para a reflexão do presente artigo; mas, sim, perceber os princípios filosóficos que, de modo genérico, o fundamentam. A filosofia das Luzes que teve como premissa principal o desejo de conhecer, de saber a “verdade” poderia parecer — numa leitura muito ingénua à historiografia atual – uma tentativa de aproximação dos olhos para Deus que é o fundamento do mundo (“(…)Dominus Deus illuminat (…)” Apocalipse 22, 5). Pelo contrário, o tal desejo de saber tornou-se antes uma rejeição do pensamento teológico. Ao invés, procuravam uma explicação racional das coisas, sendo que a razão só poderia ser corretamente utilizada se fosse iluminada pelas luzes do conhecimento. Daí o racionalismo. Acreditando na perfeição da Natureza e nas leis que a regiam, aqueles filósofos consideravam que as relações entre as pessoas deviam ser reguladas por normas naturais, sendo que o homem possui direitos naturais e ao reconhecerem a liberdade como um direito natural, condenavam o despotismo régio, a intervenção estatal na sociedade e a intolerância.
O Iluminismo vai apresentar vários matizes e vertentes, mas todas são símbolo de uma grande ruptura com o Antigo Regime. E, naturalmente, sempre que existem mudanças, tomam-se posições. Assim, se por um lado alguns intelectuais produziam bibliografia afirmando o Iluminismo; necessariamente, outros opuseram-se. Esta oposição foi também concretizada de diversos modos; mas designamo-la, de forma generalista, como o Contra-Iluminismo ou Romantismo.
O Contra-Iluminsimo inicia, em 1760, quando pensadores filosóficos começam a opor-se aos princípios do Iluminismo: à revolução das mudanças, propuseram o elogio da tradição e, ao liberalismo e individualismo, contrapuseram a defesa comprovativa da sociedade comunitária. Contra os imperativos da razão universal, impuseram a obra natural do tempo e a ordem empírica, defendendo que a política deveria basear-se no curso natural das coisas e não deve ser constituída sobre a razão, apenas. Adicionalmente, esta corrente critica a total confiança depositada na ciência e a elevação da ideia de progresso acima de tudo, argumentando que nem tudo que escapa ao controle da razão é um engano, pois colocam a tónica na emoção como instância válida de conhecimento.
A forte tensão entre estas duas correntes não cessou e marcou a modernidade e a contemporaneidade. Frequentemente, conclui-se que este conflito é a origem das divisões políticas que hoje conhecemos. O Iluminismo, pelo seu ávido desejo de progresso, associa-se a uma linha ideológica de Esquerda; por outro lado, o Romantismo, pelas suas correntes mais conservadoras, associa-se a uma linha ideológica de Direita. Existem, ainda, teorias que sublinham a influência do Romantismo na ascensão da extrema-direita, fundamentando-se na premissa de que a valorização da tradição, inerente ao Romantismo, é a origem do nacionalismo. Naturalmente, estas divisões de posições políticas entre esquerda e direita são extremamente redutoras, contudo são as instituídas nos parâmetros políticos da atualidade.
É fundamental compreender que o Romantismo é uma reação ao Iluminismo. Não se caia no erro anacrónico de o compreender como um reduto conservador na modernidade. Porque, como a história mostra, este movimento Contra-Iluminista surge após o Iluminismo e não em simultâneo ao mesmo. Ou seja, o Romantismo é aparentemente uma solução conservadora, mas tem como ponto de origem a mesma desordem social e moral que despoletou o Iluminismo.
Posto isto, o Romantismo nas suas diversas vertentes, também será alvo de críticas e de insustentabilidade. Critica-se o Romantismo, entre várias coisas, por possuir uma visão sentimental; por apagar o esforço racionalista; visão que defende o retorno a um estado de natureza que nunca existiu. A consciência sentimental pode conduzir-nos, de novo, ao engano por parecer ser uma aproximação religiosa; mas desvia-se em relação à ortodoxia institucionalizada, o que representa uma não promoção da religiosidade católica tradicional. Muitos românticos procuraram o transcendente e o sobrenatural, mas faziam-no na natureza ou no passado medieval idealizado, em vez de se concentrar na doutrina católica. A exacerbação das sensações, dos sentimentos e das paixões, parece-me ser a causa direta do que hoje designamos de sentimentalismo religioso. O sentimentalismo religioso pode levar à gnose, porque se contradiz ao que o Catolicismo sustenta: a verdade revelada (Fé) deve ser compreendida pela Razão e recebida pela Vontade (adesão), e não apenas sentida. Assim, ao colocar a emoção acima da razão e da doutrina, pode levar a uma religião vaga, subjetiva e inconstante, pois os sentimentos são voláteis.
Devido à sua maior inclinação para o sentimento, o Romantismo demonstrou um impacto e uma produção artística significativamente mais expressivos do que os observados no Iluminismo. A literatura sendo desde sempre um reflexo da história, da política e da cultura é, agora, também exemplo dos ideais românticos. A ênfase exacerbada nos sentimentos, paixões e revoltas — dimensões profundamente interiorizadas no autor e nas personagens, manifestas em poesia e romances — invés de reverterem a ordem social, o Romantismo as agonizou através da subjetividade excessiva da idealização. O sucesso de autores como Goethe, Byron, Hugo, Dumas, e os nomes portugueses como Herculano, Garrett e Camilo, amplificado pela difusão em folhetins na imprensa oitocentista. O período que concebe o romance histórico serviu-se da estética para as tensões sociais da época, solidificando um novo estilo literário que dialogava com a burguesia ascendente, mas cujos temas eram essencialmente uma reação passiva ao racionalismo e ao materialismo que ela promovia.
O Romantismo Alemão defende que a Razão é uma categoria abstracta e promove a individualidade própria, movida pelo Pathos — construindo, assim, a ideia do Eu como uma pessoa única e singular. A inserção do Eu, desloca o fundamento do Eu, dando a expressão de uma singularidade, que difere do Humano categorizado pela Razão. O Romantismo é disruptivo, e defende que cada pessoa é única, e à arte compete esse modo de expressão — o Culto do Eu. Esta filosofia mais normativa foi sentida em diversas nuances em todos os países europeus. O Romantismo é a apologia para não seguir modelos, rejeitar os mestres e os modelos antigos em que a arte era descrita em regras sistematizadas. Em contraponto com a arte calculista, defende-se que, apenas, fora dos princípios clássicos é que a arte é sincera. Por isso, valorizam a arte subjetiva, confessionista e biografista; ideia apresentada pelo Romantismo, como modelo expressionista.
A arte romântica, de modo geral, procurava o Sublime e o ideal; contudo, não procurava o Belo ou refletir a Beleza do Criador. A expressão romântica contrapõe-se à compreensão de arte na filosofia aristotélico-tomista. Nesta última, Santo Tomás de Aquino entendia a beleza como expressão objetiva da Verdade e da Ordem, acessível à razão, ainda que acompanhada de prazer sensível. Para S. Aquino, uma obra é bela quando traduz essas qualidades — integridade, proporção e clareza —, pois o deleite estético (delectatio visus) é, no fundo, um prazer intelectual: aquilo que agrada aos olhos ou aos ouvidos é, na verdade, o reconhecimento da forma bem ordenada captada pelos sentidos. O Romantismo, por sua vez, transformou a beleza em reflexo da individualidade e da emoção.
O Romantismo é considerado por Albert Thibaudet como «a grande revolução literária moderna». Efetivamente, as transformações que este movimento desencadeou foram imensas: para além de ter introduzido o conceito de autor tal como é entendido na atualidade, inaugurou novos géneros literários, temáticas e formas de expressão. A sua natureza revolucionária advém, sobretudo, do facto de ter sido o primeiro movimento literário a basear-se numa linha programática, que permanece indissociável dele até aos nossos dias. O Romantismo é também revolucionário, por ser inovador na medida em que se torna “pai” de todas as outras correntes literárias do século XIX e XX como o Realismo, Modernismo, Neo-Realismo, e, de forma indireta, o Surrealismo. Portanto, é impossível ler um romance contemporâneo que não seja reflexo do Romantismo.
Este movimento está na origem da degradação moral que a literatura atravessa. Estes movimentos literários foram simultâneos, por isso torna-se difícil compreender quais os limites de atuação de cada um deles; contudo, as inovações do Romantismo foram permissivas, por exemplo, à ausência de pudor que se reflete no período naturalista ou no simbolismo com a rejeição dos valores estéticos do belo.
Recorramos ao caso português para compreender o impacto que o Romantismo teve na literatura nacional e europeia. O Romantismo em Portugal começa com o “Prefácio” Camões (1825), Garrett afirma não ter obedecido “a regras nem a princípios”, não ter consultado “Horácio nem Aristóteles” e, demarcando-se de qualquer escola literária (“não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia”), confessa ter seguido apenas “o coração e os sentimentos da natureza”. Importante, esclarecer que a primeira festividade do centenário do nascimento deve-se aos Românticos, que percebiam o poeta como uma figura fundamental por estas razões: poeta exilado, poeta mal-amado pela pátria e poeta incompreendido.
Estas duas citações que apresentam são um ótimo exemplo do que os poetas românticos se consideram e se propõem a fazer:
“A poesia, como tem sido dito, difere, neste respeito da lógica, na medida em que não está sujeita ao controlo das forças activas do espírito, e em que o seu nascimento e recorrência não possuem uma conexão necessária com o consciente e a vontade.” (p.79)
“Os poetas são os hierofantes de uma inspiração inapreendida; os espelhos das gigantescas sombras que a futuridade lança sobre o presente; as palavras que exprimem o que não compreendem; as trombetas que conduzem à batalha e não sentem o que inspiram; a influência que não é movida, mas move.
Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo.” (p.82)
Shelley, A Defesa da Poesia. Prefácio, tradução e notas de J.Monteiro-Grillo. Lisboa, Guimarães Editores. 1986
Se, por um lado, na primeira citação faz a apologia do involuntário, porque imposta a espontaneidade, a arte será mais autêntica e terá mais valor. Mas o que me parece mais gravoso é que esta negação de que a produção poética é fruto da inspiração divina — como poderia dizer S. Tomás, o bom senso estético deve ser inspirado pelo Espírito Santo — contudo, aqui o poeta diz que a própria inspiração é ele; então torna-se ele o próprio Deus. Esta afirmação deverá ser inconcebível em um ambiente católico; mais uma justificação para não se considerar o Romantismo uma verdadeira Contra-Revolução tradicionalista.
Por outro lado, na segunda referência reafirma-se a importância da poesia como um “bem” e do poeta como expansor do conhecimento do mundo; de algum modo, reescreve a cidade de Platão e coloca os poetas como o centro dessa cidade ideal.
Alexandre Herculano — historiador conhecido pelas suas interpretações históricas que conduziram ao erro tantas gerações — publica, em 1837, um ensaio para refletir sobre a relação do poeta/artista com a história e com o seu tempo:
“O poeta, como o artífice ou filósofo, é levado pelas opiniões e costumes do século; porém do âmago dos seus cantos há sempre um ou muitos pensamentos perpétuos e imutáveis: a tradição dos princípios morais que não flutuam, das ideias santas que devem estar gravadas no espírito de todos aqueles que têm pátria, família e deus, está confiada às almas dos poetas.”
Alexandre Herculano, “Poesia”, in O Panorama, vol. I, no8, 1837
Através desta citação pode-se compreender que o Romantismo assumiu um papel central na invenção e consolidação da ideia de Nação, especialmente após a fratura do poder régio imposta pela Revolução Francesa e o consequente abandono do antigo modo orgânico de construção dos reinos. Nesse novo contexto, o movimento dedicou-se a forjar uma identidade do “Eu” em paralelo com a criação de uma “alma nacional”. Os poetas e a literatura não eram vistos meramente como veículos de expressão individual, mas sim como os guardiões e tradutores do sentir e da história da nação; eram eles que viam “mais além” e representavam esse espírito coletivo. Essa narrativa levou a uma incessante indagação da alma portuguesa através da sua própria história literária. A redescoberta e exaltação da Idade Média — e de manifestações culturais espontâneas como a literatura oral— serviram para fundamentar essa identidade em raízes históricas. Para os autores românticos, a arte deve atuar sobre a história, porque se os poetas encarnam a ideia de “bem”, então, pede-se à Arte uma ideia social e de perpetuidade.
Esta concepção de poesia que Herculano apresenta como “poesia histórica” coloca-nos em oposição ao pensamento clássico de Aristóteles. Na Poética, estabelece a superioridade da Poesia sobre a História ao argumentar que a Poesia trata do universal e do que poderia ter acontecido, focando nas verdades sobre a natureza humana e nas contingências da vida, enquanto a História se restringe ao particular e ao que realmente aconteceu. A função da poesia é revelar verdades universais sobre as ações humanas, tornando-a, por lidar com o que poderia ser, mais filosófica e significativa do que o relato factual da História.
Em suma, os românticos estavam conscientes das transformações que queriam exercer na sociedade e da ruptura que queriam provocar nas concepções literárias da Antiguidade. De tal modo, Almeida Garrett, liberal assumido, faz uso do prólogo na obra Viagens na Minha Terra para se afirmar enquanto autor, por isso compara a escrita à sua forma de luta e legitima-se para guiar os seus leitores. Portanto, a literatura deixa de ser a habilidade de fazer bem poesia, para ser um meio condutor e formador, até, de pensamentos políticos, que como se viu muito distantes dos valores virtuosos programados pela Santa Madre Igreja.
Por diversos fatores, o género do Romance apenas toma dimensões mais explícitas no século XIX, nomeadamente, fruto da literatura romântica. Contudo, João Gaspar Simões (1903 – 1987) — considerado o primeiro grande crítico da nossa história literária — procurou no seu livro História do Romance Português (1967) demonstrar a antiguidade da formação de um género (o romance) em que fomos precursores. Apresenta uma antologia de textos conhecidos, outros nem tanto e alguns completamente desconhecidos e discorre sobre eles, para compreender as suas origens e influências na literatura romanesca. Na introdução da mesma obra, alerta-nos que o romance e a ficção ainda têm algumas áreas cinzentas e, para tentar definir o que é o romance, tenta também explicar o que é o conto e a novela. O romance era exigente porque o autor necessitava de se focar no presente e na realidade ao invés da poesia que se focava no espírito e no místico. Este processo foi gradual e precisava de algum engenho e mestria dos prosadores e romancistas. Todavia, não é fácil entender qual será a origem da literatura de ficção; pensa-se que terá origem em parábolas, fábulas, contos e outras formas transmitidas por via oral, especialmente, com um intuito moral, sejam essas temáticas já descritas na Idade Média ou, ainda mesmo, na segunda do século XIV com «Contos e Histórias de Proveito e Exemplo», de Gonçalo Fernandes Trancoso ou os exemplos dos variados romances pastoris.
Com a seguinte afirmação, João Gaspar Simões sustenta que o conto é o princípio de todo o romance:
“ O conto está, pois, na origem de toda a literatura de ficção dos tempos modernos. Eis porque se torna muito difícil conceber o romance em moldes que excluam da sua estrutura esse elemento característico da célula originária: a história, a fábula, a narração, numa palavra a intriga, elemento crítico em bases reais a partir do século XIV, e de então para cá parte integrante de toda a literatura novelística.” (p. 18)
Seria essa a prática corrente da Idade Média, uma vez que na versão portuguesa da Demanda do Santo Graal, pode ler-se algumas passagens como: “ora, diz o conto que quando Galaaz”, que exemplificam a preponderância do conto na narrativa medieval.
Recomendo a leitura desta obra, porque me parece ser bastante instrutiva do trabalho, beleza e genialidade que muitos autores portugueses tiveram nas suas produções literárias. João Gaspar Simões, no presente livro. Apresenta a prosa narrativa da Idade Média, com a literatura arturiana- refere os livros de cavalarias e outros livros discutindo o seu conteúdo literário- menciona, ainda, o início da preocupação artística e sentimental do medieval-tardio e dos inícios do século XVI.
O ponto de conclusão que me parece essencial, e para quem tem apreço pela literatura, é que se compreenda que desde a fundação da nossa língua, pode-se considerar que existe literatura, com uma progressiva mestria literária e estética. Estes poetas e prosadores medievais e quinhentistas não devem ficar ofuscados e desconhecidos em detrimento das produções do Romantismo; inclusive, estes muito lhes devem.
