Oiça: Sabe o que é um Sonhador? – Noites Brancas de Dostoievski

«Uma vida assim é um crime e um pecado»1. Diz o sonhador de Noites Brancas quando aparentemente é honesto com Nástenka (e pela primeira vez consigo mesmo) na segunda noite. Há vários meses que ando a refletir sobre este livro e todo o conceito de sonhador para Dostoievski, um tema importante e recorrente para o autor que Thomas Marullo resumiu como: «Para além de trabalhos de ficção, escreveu uma série de artigos, com o título “Crónicas de Petersburgo”, em que detalhou o seu fascínio com “sonhadores”, indivíduos que se revoltam com o seu destino».2 Para compreenderem a minha interpretação de Noites Brancas há que pensar na “viagem” do sonhador durante a obra. Começa como alguém objetivamente solitário, que se ilude a si próprio (apenas superficialmente), que trava amizades com prédios e cria relações imaginárias com pessoas que encontra na sua rotina para preencher o vazio do seu dia a dia. Termina a história uma pessoa destruída, tendo experienciado uma relação genuína e um interesse amoroso, ambas coisas que ele não considerava possíveis.

O sonhador é alguém que habita um mundo á parte nas mesmas ruas onde habitamos todos, é alguém que vive «uma vida como a que pode existir num reino misterioso dos confins do mundo (…) é um misto de qualquer coisa de fantástico, ardentemente ideal e ao mesmo tempo (…) incrivelmente vulgar.».3 Para o sonhador a vida é alimentada com as ilusões que lhe preenchem o vazio que o próprio não consegue preencher, neste caso em particular a falta de relações e interações sociais que levam á solidão e que é substituído com as ilustres fantasias, romances e grandezas que o sonhador cria para si mesmo. Estas fantasias são, no entanto, periodicamente desafiadas e o sonhador é confrontado com a dolorosa realidade da sua situação, como quando ele descreve que é incapaz de receber a visita de um conhecido, na qual ele torna a situação tão estranha e desconfortável que leva a que a situação não se repita para o dito conhecido. Fora encontros sociais específicos esta realidade atormenta-o, por mais que ele a queira esconder, na primeira noite com Nástenka ele confessa ter o desejo de abordar mulheres na rua e de quebrar este ciclo e quando as pessoas estão a partir para as datchas dá consigo mesmo a desejar ir com elas. «depois das minhas noites fantásticas já me acontecem momentos de lucidez, que são horríveis!».4

O sonhador nasce do trauma. Ambas as personagens (Nástenka e o sonhador) são sonhadores e ambos partilham esta verdade, no caso de Nástenka é mais óbvio qual é o seu trauma, no do sonhador ele apenas consegue comparar a sua situação com a de um «infeliz gatinho» que foi maltratado. É neste contexto de trauma que surge uma “barreira protetora” e necessariamente distanciadora do mundo, deixando os vazios que foram bloqueados pelo trauma a serem preenchidos com sonhos e mentiras doces que confortam a vítima e lhe dão a sensação forte (mas vazia) de ter ali encontrado um substituto para as coisas reais. «Pois se não há outra vida, é forçoso construí-la a partir desses fragmentos. Entretanto, a alma quer e pede outra coisa! E em vão o sonhador se revolve, como nas cinzas, nos seus antigos desvaneios, procurando nessas cinzas ao menos uma fagulha para soprá-la…”»5

 Nesta medida o nosso sonhador ultrapassa uma questão de se resignar com a sua condição miserável apesar de ter capacidade de a alterar (como é evidente no decorrer das noites), é uma pessoa que se ilude (ou tenta iludir) de que não só não consegue alterar nada, como está bem com a sua condição. O ponto fulcral é que através dos sonhos torna-se cada vez mais difícil mudar (que já por si só não seria fácil) a condição em que nos encontramos, cria complacência numa situação que requer arriscar, que requer colocar o “peso do Destino” nos nossos ombros para que a “barreira protetora” possa ser levantada e para que possamos preencher os espaços anteriormente cobertos com aquilo que mais carecemos. Neste sentido o sonhador é uma personagem paradoxal, que se julga feliz e preenchido com as suas realidades sonhadas e que, no entanto, deseja acima de tudo desenvolver relações genuínas (e por isso necessariamente quebrar a realidade sonhada).

O final da história é extremamente ambíguo, deixando aberto á interpretação do leitor o destino do sonhador após as noites brancas com Nástenka. A meu ver o sonhador acaba ciente da sua solidão (como começa a ficar evidente nas duas primeiras noites), do vazio que tem dentro de si, e de como seria o seu futuro se continuasse a sua vida como a fez até ter conhecido Nástenka, é uma descoberta esmagadora que impossibilita o sonhador de voltar ao seu estilo de vida anterior. Os prédios bonitos que numa outra altura considerava seus amigos, passam a ter um aspeto degradado e velho, e nisso ele vê a imagem do seu futuro, questiona o que tinha dito a ele mesmo e a Nástenka (e que desde o início se revela quase ingénuo ele acreditar nisso verdadeiramente) de só precisar de dois minutos de interação para lhe durar uma vida é de facto verdade: «Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Mas será isso pouco para toda uma vida humana?…».6 A realidade é que provavelmente não chegará, uma vez experienciada esta realidade social superior em que se demonstra a si mesmo capaz de criar laços de amizade e até amor com outra pessoa, o sonhador preenche o vazio que há tanto tempo tem ocupado com os seus sonhos, revelando-lhe que subestimou a sua necessidade e o poder da experiência que passou bem como a sua capacidade de alterar a sua realidade. «E o que você me contou daquela vez sobre o seu sonhador não tem nada a ver consigo. Você curou-se, é na verdade um homem completamente diferente daquele que descreveu.»7

O tempo em que a ação decorre tem também significância, Noites Brancas começa num dia de manhã, representando a rotina do sonhador e a sua vida antes de conhecer a Nástenka, explode em exploração da ação durante cinco noites (e quatro encontros com Nástenka). É durante estas noites que a sua vida muda, que a história deixa de ser sobre um homem que vagueia pelas ruas de São Petersburgo a fantasiar relações inexistentes para começar a desenvolver uma relação genuína com uma pessoa pela qual nutre sentimentos reais. Na quarta noite o sonhador conta-nos os eventos da terceira noite, e revê-la que nesse dia devido ás condições atmosféricas Nástenka não vai sair á rua, é uma noite curtamente descrita como sendo muito penosa e difícil para o sonhador, que se sente inútil perante tudo isso.  Na última noite, após a intimidade entre ambas as personagens já estar estabelecida é quando a realidade do sonhador desmorona pois ele passa de ser um amigo de Nástenka que apesar de nutrir sentimentos pela mesma julga que nunca vai poder agir sobre eles (apesar de isso ser o seu desejo mais íntimo) para expressar os seus sentimentos e ter uns minutos de pura felicidade e por fim para uma realidade em que tudo isso lhe é tirado, como se lhe puxassem o tapete debaixo dos pés. O último capítulo da história «Manhã» representa, portanto, o despertar, um novo começo, e é precisamente nesta manhã que o sonhador começa a ver a “névoa dos sonhos a levantar-se”. É para mim um capítulo de mudança inevitável, marcado por eventos fora do seu controlo (para além da situação com Nástenka) está representado nas alterações feitas pela Matriona, que limpa as teias de aranha do apartamento e diz-lhe que agora se pode casar e ter visitas.

A exploração do sonhador como idealizador extremo, como um romântico inegável e acima de tudo como uma pessoa frágil e vulgar é o que torna este livro verdadeiramente interessante, da mesma maneira como Memórias do Subterrâneo nos obriga a revermo-nos no personagem principal (em certos aspetos mais do que outros para cada pessoa), criamos empatia com o sonhador numa leitura que nos transporta para a sua realidade onde mesmo que levada ao expoente máximo somos capazes de encontrar uma ligação com os nossos diversos graus pessoais de sonhador.

1Fiodor Dostoievski, Noites Brancas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2020, pp 36

2Thomas Marullo, Young Fyodor Dostoievski, Cornell Press, 28/10/21, https://www.cornellpress.cornell.edu/young-fyodor-dostoevsky-1846-1847/

3Fiodor Dostoievski, Noites Brancas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2020, pp 26

4Fiodor Dostoievski, Noites Brancas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2020, pp 36

5Fiodor Dostoievski, Noites Brancas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2020, pp 36

6Fiodor Dostoievski, Noites Brancas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2020, pp 737Fiodor Dostoievski, Noites Brancas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2020, pp 57