“El hombre está condenado a ser novelista” (Uma travessia por Ideas y Creencias). Texto de António Rafael Rodrigues.

“A fé é o instinto da ação”

Bernardo Soares

INTRODUÇÃO

Na sua obra “Ideas y Creencias”, José Ortega y Gasset proporciona uma reflexão fundamentada na oposição dos dois termos apresentados no título. É através do estabelecimento de distinções entre esses dois conceitos que Ortega mergulha mais profundamente nas camadas da realidade e na forma como esta é percecionada, legando-nos uma tese passível de ser designada como perspetivismo, ainda que esse termo não seja utilizado neste texto. Nesta obra deparamo-nos com interrogações sobre as atividades humanas (ciência, arte, etc.) bem como estas podem ser inseridas na nossa compreensão da estrutura da realidade, sendo que nos iremos perguntar constantemente sobre em que medida o Homem consegue agarrar o “em si mesmo”. Não sendo exatamente o caso, não consigo deixar de encarar a história de Tântalo como adequada para o que nos acontece na vida deste ponto de vista, ou para me aproximar das imagens do próprio autor, a ideia de que o Homem é um náufrago a morrer de sede rodeado por um imenso mar. O Homem está também ele inundado de realidade por todos os lados, mas a medida em que é ou não capaz de a ingerir é muito problemática. O título escolhido, que é uma citação do próprio texto de Ortega, é, desde já uma pista para a interessante proposta do autor. Procurarei com o auxílio de Ortega mostrar como todos nós somos irmãos da personagem de Daniel Defoe e estamos perdidos numa ilha de enigma e em como a vida humana é um jogo de sobrevivência no interior desse enigma.

OS NÁUFRAGOS SOMOS NÓS

Ortega começa o seu escrito por nos apresentar uma tese que temos possivelmente facilidade em aceitar: Para compreender quer um homem, quer a sua vida, devemos procurar averiguar quais são as suas ideias.

Podemos desde já extrair daqui alguns pontos problemáticos e inquietantes, por exemplo a pergunta sobre o facto de poder ser eu capaz ou não de fazer uma arqueologia das minhas próprias ideias, isto é, reconstituir os passos que levaram uma ideia até mim e saber qual a sua origem primária. Mais, se a resposta for não, o que me parece bastante plausível, se não serei eu inconscientemente um país colonizado de algo ou alguém que eu desconheço.

Ortega verificou justamente isto mesmo, que os inquéritos às ideias de um Homem e de uma época são insuficientemente claros e é para nós muito difícil saber se lidamos com ideias originais ou insufladas por terceiros. Este ponto não se restringe quanto a mim a um problema de eficácia do inquérito, mas toca uma questão mais funda que procura saber se é efetivamente possível um pensamento autêntico e exclusivo, ou se em última instância o pensamento tem um caráter anónimo (e sem donos) e público (qualquer mente tem hipoteticamente a possibilidade de alcançar esta ou aquela ideia). Trata- se de um problema difícil, no entanto não me privo de apresentar um exemplo bastante conhecido no meio filosófico que poderá deixar alguns esclarecimentos: Quer Isaac Newton, quer Leibniz, desenvolveram o cálculo diferencial e integral de forma independente. Existem também histórias conhecidas de como certas ideias surgiram de forma inusitada, como aconteceu no banho de Arquimedes, o que demonstra uma faceta imprevisível no processo humano de “ter ideias”.

A ideia “surge” ao indivíduo vivo, sendo que para este a vida pré-existia a ela. No entanto Ortega constata que para a vida ser viável esta tem que se constituir e montar já sobre certas crenças básicas, uma espécie de inventário de leis não escritas do código legal da travessia de viver. A vida humana carece de um fundamento do mesmo modo que a planta carece de um solo que a sustenha.

Ortega, como se sabe, não fica por este âmbito, o único requisito primordial do viver não é o de frutificar no seio de um fundamento. Um outro fator crucial pode ser encontrado nas ferozes palavras de Bernardo Soares: “A (minha) vida é como se me batessem com ela.” Ou seja, viver é ter que se ver com o mundo e consigo mesmo. A vida é uma constante tentativa de resistir ao embater das vagas que nos ameaçam de forma contínua com o seu poder, poder esse que surge de forma camaleónica, com diferentes graus de força, subtileza e formas de aparição.

A ideia central aqui será a de que a vida tende, pelo menos do nosso ponto de vista, para o caos, e ao caos chegará se nada fizermos para lhe resistir, os objetos têm uma propensão natural para a desordem se não existir uma força que a contrarie, existe uma espécie de entropia existencial, a casa abandonada que tende a tornar-se inabitável, o mendigo que não se alimenta e que começa a perder as forças e a tomar uma configuração esquelética ( a vitalidade começa progressivamente a despedir-se dele), em suma, a vida coloca a obrigação de uma manutenção e reação às suas agressões sob pena de se tornar inviável com o passar do tempo. Uma pintura que creio ilustrar perfeitamente, isto é, A Vida e a Morte (1916) de Gustav Klimt. Nela encontramos uma montanha humana de figuras entrelaçadas, poderiam ser descritas como a Família Humana, que resiste e se ampara na medida do possível frente à violência e manifestação da outra figura que aparece ao seu lado, a exímia jogadora de xadrez do filme de Bergman, o entrópico chicotear desagregador, a Morte.

Mas Ortega dá em seguida um passo que vai além destes dois pontos cruciais na arte de viver. Este Mundo e este “Si Mesmo” com o qual temos que lidar são já eles próprios uma interpretação, são na realidade ideias sobre o Mundo e sobre o “Si Mesmo”.

Torna-se indispensável apresentar o conceito orteguiano de crença:

“Estas «ideias» básicas que llamo «creeencias» — ya se verá por qué — no surgen en tal día y hora dentro de nuestra vida, no arribamos a ellas por un acto particular de pensar, no son, en suma, pensamientos que tenemos, no son ocurrencias ni siquiera de aquella especie más elevada por su perfección lógica y que denominamos razonamientos. Todo lo contrario: esas ideas que son, de verdade «creeencias» constituyen el continente de nuestra vida y, por ello, no tienen el carácter de contenidos particulares dentro de esta.” (Pág.16)

Ou seja, e para usar um termo caro à filosofia de Ortega, uma crença consiste numa ideia radical, ao ponto de ser confundida pelo sujeito com a própria realidade. Importa notar que o termo radical usado aqui está muito mais próximo do seu significado original do que a forma como o mesmo é entendido hoje, algo que não é difícil de entender à luz do que já vimos. A crença é radical na medida em que ela é uma raiz da existência do sujeito, podemos, portanto, dizer que existe um tipo de ideias mais superficiais e outras mais fundas e estruturais, que são as crenças, utilizando a metáfora da árvore que aqui se parece impor, ideias-folha e ideias-raiz. Assim como acontece com as partes que compõem a árvore, estas ideias assumem no Homem além de posições diferentes, papéis igualmente diferentes.

Ortega apresenta-nos então neste momento uma terminologia renovada:

  1. As ideias-ocorrência, que incluem a ciência, que são produzidas, discutidas, propagadas, sublinhando até que podemos morrer por elas. O que não podemos é viver delas, são obra nossa, supõem já a nossa vida.
  2. As crenças. Não as fazemos, nem fazemos propriamente com elas nada, estamos nelas, vivemos delas, algo que não acontece em 1.

Em suma, estamos na crença, já a ideia-ocorrência é algo que se pode ter ou suster, mas não algo que nos tem ou sustém. Neste ponto Ortega estranha que se tenha dado o mesmo nome a duas coisas tão distintas, o que é sintomático de um olhar confuso para dois problemas de natureza interligada, mas diferente.

As ideias são nesta nova perspetiva tudo o que aparece na nossa vida em resultado a nossa ocupação intelectual, como por exemplo as que a ciência

produz para explicar um conjunto de fenómenos, ou as ideias a que um crítico literário recorre para tentar traduzir aquilo que leu numa determinada obra. As crenças por outro lado são como que os motores silenciosos do viver que operam no fundo de nós e nos permitem seguir adiante, ratos de porão que se escondem e movem no barco de nós sem que nos demos conta disso.

Mantemos uma relação primordial com as crenças e secundária com as ideias, que se pode compreender analisando a própria estrutura da vida humana, o Homem pensa em determinadas coisas e conta com determinadas coisas, e embora possamos traçar algumas ligações, “pensar em x” e “contar com x” não são posturas existenciais equivalentes. Ortega vai mais longe nesse aspeto e acusa o passado da Filosofia ter sido responsável em muitos momentos por estabelecer confusão entre estes termos, e ter invertido o valor respetivo dos mesmos. Não pensamos propriamente que haja rua quando saímos de casa, contamos com isso, de modo que se a rua deixasse de existir seria inimaginável o nosso espanto.

“Analice el lector cualquier comportamiento suyo, aun el más sencillo en aparencia. El lector está en su casa y, por unos u otros motivos, resuelve salir a la calle. ¿Qué es en todo este su comportamiento lo que propiamente tiene el carácter de pensado, aun entendiendo esta palabra en su más amplio sentido, es decir, como conciencia clara y actual de algo? El lector se ha dado cuenta de sus motivos, de la resolución adoptada, de la ejecución de los movimientos con que ha caminado, abierto la puerta, bajado la escalera. Todo esto en el caso más favorable. Pues bien, aun en este caso y por mucho que busque em su conciencia no encontrará en ella ningún pensamiento en que se haga constar que hay calle.” (pág.20)

Ortega avança que o psicólogo irá reduzir este problema a uma questão de hábito, na sua compreensão mais pobre, aventando eventualmente com a tese do subconsciente, perdendo de vista segundo este autor o nervo do problema, a confusão e inversão da ordem dos termos a que fiz já alusão.

Temos então nesta obra presente uma crítica ao que o pensador espanhol caracteriza como intelectualismo, que segundo este tende a considerar o mais eficiente na nossa vida como o mais consciente. Sendo importante vincar que Ortega olha para o problema sempre deste prisma ao longo do seu texto, numa

clara atenção ao viver, à inseparável união entre o saber humano e a sua travessia vital, mostrando, como lhe é aliás amplamente reconhecido, uma atenção que coloca o fator vida no topo das prioridades. É neste ponto decisivo que Ortega vê os intelectualistas falharem redondamente, o que é mais decisivo nas nossas vidas é antes pelo contrário aquilo que está latente, aquilo com o qual não pensamos, mas com o qual contamos.

Isso leva-o a fazer uma provocação pertinente, perguntando se não será já claro que é um enorme erro querer compreender um Homem ou uma época à luz das suas ideias, em vez de prestar atenção sobretudo às suas crenças. Voltamos aqui à primeira formulação que apresentei, agora vista com a bipartição do conceito de ideia que Ortega traça. A verdadeira e correta análise possível realiza-se somente mediante uma sondagem ao subsolo da crença.

Podemos chegados aqui avançar mais um passo, retirando uma conclusão de índole ainda mais radical: Os nossos pensamentos não têm valor de realidade em sentido próprio. E é defendendo esta ideia que chegamos ao Ortega mais polémico e telúrico.

Ficamos assim com a pergunta sobre o que significará concretamente então a veracidade ou falsidade de uma ideia ou teoria, sendo que sabemos desde já que uma teoria por mais verídica que seja só existe enquanto é pensada, daí necessitar de formulação.

“Una idea es verdadera cuando corresponde a la idea que tenemos de la realidad. Pero nuestra idea de la realidad no es nuestra realidad. Esta consiste en todo aquello con que de hecho contamos al vivir.” (pág.23)

Não temos muitas vezes ideia das coisas com que estamos a contar, mas essa é que é efetivamente a realidade. Tomo agora a liberdade de recorrer a exemplos clássicos para ilustrar este ponto. Qualquer um de nós contará, pelo menos eu presumo, com a presença constante dos elementos tempo e espaço. Não obstante, quando nos perguntam em que consiste esse tempo e espaço, a resposta será habitualmente embaraçosa e o tempo que levará a ser formulada será muito provavelmente também ele embaraçoso em comparação com a aparente familiaridade que temos com os termos tratados. Poderíamos dar respostas altamente vagas e comprometedoras como por exemplo, que o

tempo é aquilo que se mede com relógios, e o espaço aquilo que se mede com réguas. Poderíamos dar respostas mais sofisticadas e poéticas, mas que ainda assim não conseguem abarcar satisfatoriamente as realidades tão simultaneamente próxima e misteriosa que estamos a tratar. Um poeta diria que o Tempo é o Devorador de Pessoas, Animais, Montanhas e Impérios, ou que o Espaço é o Anfitrião Invisível de todas as coisas.

A intuição poética permite-nos obter algumas respostas com algum valor, mas ainda assim imprecisas e incapazes de esgotar por si só toda a totalidade do que está a ser descrito. No entanto, Ortega não deixa de lhes conferir importância. Notemos atentamente uma outra dimensão deste âmbito, a científica, que é contraintuitiva e não corresponde à nossa íntima e silenciosa crença do que é o tempo e o espaço. Por exemplo de acordo com a Teoria da Relatividade o Tempo não é absoluto, sendo relativo à velocidade e à gravidade, além disso um objeto massivo como uma estrela é capaz de criar uma curvatura no Espaço-Tempo (estas duas dimensões são relativas uma à outra para a Ciência Contemporânea). Ou uma ideia que me parece ainda mais bizarra, ainda que aceite por quase toda a comunidade científica, a de que o espaço não é estático, mas que se encontra em expansão, para onde se poderá expandir o espaço se esse lugar onde ela passa a estar não for já ele também espaço é pergunta para a qual não encontro resposta. Embora Ortega não recorra a estes casos concretos tomei essa liberdade uma vez que me parece ser útil para compreender o que veremos adiante.

O pensador espanhol coloca em cima da mesa o problema que se impõe segundo ele na sua época: O Homem começou a não saber o que fazer com as suas ideias. Uma preocupação que conheço de forma mais ou menos explícita, e com as suas peculiaridades, em outros autores, nomeadamente em Hannah Arendt que como podemos evocar, lança o provocativo aviso de que caminhamos para um estado em que não saberemos do que estamos a falar, neste mundo que Ortega descreveria como o das nossas ideias.

Algumas dúvidas começam a ciciar de forma premente: Que relação mútua será possível entre estas ideias e crenças? De onde vêm estas últimas e como se formam?

Um ponto que é importante não esquecer desde já é que se trata de um equívoco comprometedor chamar crença à adesão que se suscita na nossa mente sob a forma de combinação intelectual. O pensamento, científico, ídolo sagrado dos nossos tempos, não tem este estatuto primordial.

“Lo evidente, por muy evidente que sea, no nos es realidad, no creemos en ello. Nuestra mente no puede evitar reconocerlo como verdad; su adhesión, ese reconocimiento de la verdad no significa sino esto: que, puestos a pensar en el tema, no admitiremos en nosotros un pensamiento distinto ni opuesto a ese que nos parece evidente. Pero… ahí está: la adhesión mental tiene como condición que nos pongamos a pensar en el asunto, que queramos pensar.” (pág.24)

Este ponto é crucial, está nas nossas mãos pensar nisso ou não, depende de uma intervenção da nossa vontade, e, nesse sentido, não é algo sério. A Realidade é para Ortega oposto, isto é, aquilo com que contamos quer queiramos quer não, é aquilo que nos é imposto, a tal vida que é a nos baterem com ela.

Além deste aspeto, o próprio homem em alguns casos reconhece ele mesmo que o seu intelecto se exercita apenas em matérias questionáveis. A verdade das ideias alimenta-se para Ortega, por mais paradoxal que pareça, da sua questionabilidade e por isso diz que a ideia precisa da crítica como o pulmão precisa de oxigénio.

O Homem é um fabricante de ideias, que desejavelmente se apoiam umas nas outras, sendo que a solidez de uma ideia se mede em boa parte pelo valor da relação que esta mantém com as demais que a rodeiam.

Entre nós e as nossas ideias há uma fronteira intransponível que vai do real ao imaginário. Das ideias podemos demarcar-nos, das crenças não. Com as ideias mantemos uma relação de convivência habitualmente descomprometida, embora já tenha citado casos em que efetivamente existem pessoas que escolham morrer pelas suas ideias, casos esses, sublinharia, raros, mas no caso das crenças a relação é claramente de dependência, precisamos delas para a travessia da nossa vida como o nosso corpo precisa de água e pão.

Deixemos estas reflexões um pouco em descanso agora e foquemo-nos num outro alvo muito interessante, que não deixa de estar relacionado com isto e no qual Ortega faz mira e dispara com acerto: O facto de o Homem ter habitualmente uma dificuldade, só superada eventualmente por intervenção do esforço, para conciliar o seu pensamento com o seu comportamento. Será desnecessário dizer como esta consideração é altamente realista, poderíamos observar por exemplo num rosto conhecido da Filosofia Política esse fenómeno, Marx, que terá defendido a abolição das heranças no seu pensamento filosófico oficial sendo que ele próprio aceitou uma herança substancial na sua vida prática, será ainda assim injusto particularizar este caso, serve apenas para ilustrar como o Homem está naturalmente disposto para a hipocrisia e precisa de um rigor e esforço substanciais para corrigir essa disposição. Não é por acaso que, ainda na Política, os regimes, em particular os mais autoritários, tenham tido ao longo da História noção que não é no mero convencimento no âmbito das ideias da população que se produz comportamentos em conformidade com as conclusões e ideias subscritas, como tal nunca existiu um regime político que não tivesse outros recursos, como o Direito ou a Violência (que está sempre em equação mesmo que em último recurso).

Ortega sente necessidade de vincar que não se pode negar, não obstante tudo o que foi dito, que usualmente nos regemos hoje segundo prescrições científicas. O motivo para isso é uma crença na razão e na inteligência, uma fé hoje sobretudo dedicada à Nossa Senhora Ciência. O Homem acredita na eficiência do intelecto, pelo menos em algum grau, aliás não me parece plausível que se desse tamanho empreendimento sem que existisse a crença na possibilidade de em última instância se desfazer o nó da realidade.

Estará Ortega a correr o risco de se estar a contradizer? Não me parece que seja o caso. Para entender como não há aqui contradição temos que distinguir “fé na inteligência” e crença no que essa inteligência produz. Um olhar grosseiro e impaciente para este texto não possibilitaria perceber a diferença do que está a ser aqui dito. É preciso deixar claro que o Homem é hipócrita no sentido estrutural e convive bem com essa hipocrisia cognitiva e existencial, isto é, com ideias que desmentem a sua existência prática. Parece-

me oportuno citar Montaigne, mais concretamente, Da Inconstância das nossas acções:

“Alguma razão parece haver no julgar um homem pelas mais comuns acções da sua vida, mas, atendendo à natural instabilidade dos nossos costumes e opiniões, amiúde se me tem afigurado que mesmo os bons autores erram ao obstinarem-se a conceberem-nos como um todo coerente e constante (…)”. (pág.140)

Aqui Ortega é altamente socrático, a nossa crença refere-se à coisa que entendemos por inteligência, sendo que com um pequeno interrogatório da mosca irritante chegaríamos à conclusão de que não conhecemos minimamente o cavalo em que estamos a apostar o nosso ouro conceptual. Isso é fácil de entender se atendermos ao seguinte: Se a nossa fé na inteligência estivesse diretamente ligada a uma fé nas ideias dela decorrentes, não ocorreria o peculiar fenómeno desta sobreviver a terramotos e revoluções teóricas, as tais mudanças de paradigma na linguagem de Kuhn, como efetivamente ocorre. Se existisse uma correspondência direta entre a nossa fé na inteligência e uma crença em tudo o que a “nossa” inteligência produz, ambas as crenças já teriam caído em forma de castelo de cartas.

O Homem, por muito evoluído e crítico que se queira julgar quando se vê ao espelho, é no fim das contas sempre um crente, as suas raízes existenciais alimentam-se de crenças, a crença é o húmus da existência humana, quer o sujeito queira, quer não (a crença é por este motivo parte do que entendemos por Realidade, é algo inevitável e independente da vontade individual). Não obstante tudo isto, creio importante realçar que Ortega faz questão de deixar em aberto a possibilidade da existência de um fundo metafísico que nem as raízes das crenças consigam penetrar, mas por razões aqui tornadas óbvias é difícil dizer muito sobre tal hipotética e possível camada que não nos é diretamente acessível.

O leitor certamente poderá estar a estranhar uma falta de foco sobre a questão da dúvida. Ortega y Gasset defende que as nossas crenças se abrem por vezes à dúvida (quando essa dúvida não é meramente metódica e intelectual ganha uma dimensão séria), a dúvida é uma figura da crença, apresenta-se no mesmo estrato que esta na arquitetura da vida.

Também se está na dúvida, só que esse estar é assustador, a dúvida é um monstro para a vida, trata-se do abismo, da queda, da instabilidade. Este é um dos pontos mais interessantes deixado pelo autor: A dúvida não seria verdadeira se não acreditássemos nela, duvidar de uma dúvida faria com que ela perde-se o seu efeito, o que explica o que já foi dito, que a crença e a dúvida partilham o mesmo território.

É comum não entendermos a dúvida porque nos esquecemos deste aspeto, isto é, em que medida esta nos põe diante de uma realidade e tem muito de crença. A dúvida põe-nos frente a uma realidade ambígua, bicéfala, instável. Duvidar é por isso habitar o terramoto. Colocam-se em esferas opostas o mar de dúvidas e a terra firme da crença. Sendo que o Homem que duvida é um Náufrago.

Importa deixar claro que o Império da Crença não está de todo beliscado, quem duvida está entre crenças antagónicas, sem saber onde se agarrar, mas aquilo que lhe permitiria a salvação seria sempre a crença. O Homem que reage e tenta sair da dúvida vê-se no problema de não saber o que fazer, o seu salva-vidas, o seu recurso de emergência é esse estranho fazer humano chamado pensar.

Aqui entramos num ponto decisivo, percebemos que nos buracos das nossas crenças habitam as ideias. As ideias são, portanto, uma espécie de segunda instância a que o lesado da vida recorre quando a crença lhe serve de defesa insuficiente. Como se faz isso? Fantasiando, criando mundos, ideia é imaginação. O verdadeiro, inclusivamente o cientificamente verdadeiro não é senão um caso particular do fantástico. A matemática brota da mesma raiz que a poesia. Deste modo, e com base em tudo o que temos visto, consigo concluir que é bastante plausível defender que a ciência não consegue ter de forma plenamente eficaz o sujeito como seu objeto de estudo.

Não conseguimos viver sem pensar que uma instância última pende sobre nós. Nos últimos séculos essa instância era a razão, as ideias. Mas Ortega aponta que essa ideia tem começado a vacilar afetando a estrutura da vida. Contudo, nesta fase em que faz sobretudo um diagnóstico sobre o seu tempo, Ortega deixa um sinal de esperança, se assim o quisermos entender, não será

possível que uma crença morra sem que uma outra nasça no seu lugar. Há, portanto, que fazer um diagnóstico do que se passa.

Voltemos um pouco atrás para recapitular: Quando caminhamos não tentamos passar através dos edifícios. Não temos que pensar se os muros são ou não impenetráveis. A nossa vida está montada sobre um amplo repertório de crenças, que nos poderia levar a um interminável e inesgotável inquérito sobre as mesmas. Quais são? Quantas são? Não fazemos ideia!

Somos além de tudo isto, obrigados a ter ideias sobre as coisas quando não existe uma crença a sustentá-las. Sobre esse estatuto de ideia, habitam toda uma fauna de diferentes espécies de ideias: Comuns, científicas, religiosas, políticas, estéticas, etc. Estas ideias atuam como remendos das nossas crenças, que correspondem para nós à realidade.

Ortega diagnostica, como aliás encontramos em outras obras suas, a ingratidão como o pior defeito humano. O ingrato esquece que a maior parte do que tem não é obra sua, é fruto do esforço de outrem. Ora o Homem, para piorar a situação, é tendencialmente ingrato, o que o impede de perceber a sua verdadeira condição. A ingratidão traduz-se em cegueira filosófica.

Para ilustrar este legado Ortega recorre ao exemplo da Terra, que pode ser aplicado a todas as outras ideias humanas, colocando em oposição duas conceções existentes da mesma, a Terra-Astro e a Terra-Deusa (neste caso Deméter), se quisermos, uma conceção de índole mais científica, outra religiosa, o que importa aqui é que não nos vemos obrigados a perguntar o que é a Terra, e o motivo disso é que recebemos respostas prontas a vestir.

Chegamos neste momento a uma conclusão importante, a realidade em que acreditamos viver é essencialmente obra de outros homens e não a autêntica e primária realidade. Não somos feridos desse modo pela vida com um disparo à queima-roupa.

A própria ideia da Terra como uma coisa, excluindo as especificidades das duas conceções apresentadas, é uma interpretação herdada, uma coisa é desde já algo distinto de um fantasma, corresponde, portanto, a um modo de ser e de comportamento.

Ortega conclui que devemos estar gratos aos nossos antepassados por não vivermos em terror permanente. O Homem produziu um arsenal de crenças que lhe permite viver sem estar em permanente pânico, muito mais decisivo que a domesticação do cavalo ou do cão está a domesticação da própria realidade, que no caso do Terra e restantes coisas não tem figura nem modo de ser, é puro enigma, embora estejamos vacinados de a ver assim.

A Terra não é em si nada de estável, quanto muito, podemos dizer que temos uma biblioteca de ideias sobre ela, bem como um repertório de facilidades e de dificuldades que esta nos impõe. Mas a realidade autêntica é puro enigma, véu (esta poderia a nossa crença aterradora, perigosa, autêntica).

Face ao enigma pré-intelectual, o Homem imagina mundos com o seu aparato intelectual (nasce o mundo físico, matemático, religioso, moral, político, poético, etc.) dotados de uma ordem que não é encontrada no choque cruel com a realidade. É neste momento que aproveito mais uma vez a figura do náufrago e proponho uma outra para este processo que Ortega descreve, o Homem torna-se cartógrafo, procura na medida do possível traduzir e mapear um mundo que lhe aparece selvagem e desconhecido.

Estes (gosto de lhes chamar) mapas são mundos interiores, nossos. São na medida do possível, familiares, no sentido em que neles encontramos harmonia, ordem, e segurança, por mais insondável que seja o relevo que eles descrevem. Os problemas do intelecto nunca são terríveis, ao contrário do que acontece com a realidade constituída como enigma.

O Homem refugia-se da Esfinge abrigando-se dentro de si, ao contrário do animal que está sempre fora de si. O que separa o Homem do animal é que o primeiro tem interioridade e se esconde na mesma. Estamos em condições de identificar agora a vida humana como uma vida-dupla (uma valsa dançada entre a Esfinge e o Homem Fabricante de Ideias).

O que me parece mais curioso é, notemos, que estas realidades imaginárias existam, isto é, também são parte da realidade total e enigmática, e não custa lembrar que nós também. O Enigma é de tal modo tirânico que inclui no interior de si as suas tentativas de solução.

Chegamos neste ponto a uma oportunidade de resposta sobre qual é a função das ideias na vida humana. Sendo que uma crença é uma ideia que deixa de ser tomada como tal e passa a ser incorporada na vida (uma carapaça existencial), é bom lembrar que em dado momento foi a ideia de alguém (a força intelectual não pode ser subestimada).

Ortega faz também no seu texto uma reflexão sobre como se relacionam os diversos mundos interiores, afirmando que o triângulo e Hamlet têm o mesmo pedigree, isto é, são fantasmas. Tornar as ideias como algo mais que fantasias seria confundir o mundo exterior com o interior. A arte não é neste sentido e, como foi muitas vezes entendida, uma imitação, sendo antes um novo mundo produzido pela imaginação (obviamente que não totalmente separado do Enigma). Estamos agora finalmente em condições de entender o título deste trabalho, o Homem está efetivamente condenado a ser um novelista.

Esta conceção da realidade como Enigma poderia inspirar o levantamento da bandeira branca relativamente à esperança de voos mais altos. Ortega, contudo, não chega ao ponto de dizer que nada de real se aprende durante uma vida humana. Não, os nossos erros, os projetos falhados, esses temos como possibilidades riscadas daquilo que será o Enigma, o nosso salão de conquistas evoca gloriosamente todos os nossos erros passados.

O filósofo de Madrid termina mostrando como embora hoje consideremos hoje o mundo da ciência mais sério do que o religioso ou o poético, tal não se verificou sempre assim, a hierarquia dos mundos foi variável ao longo da História Humana, sendo que a formação destes Mundos são sempre um resultado de uma queda, de momentos de dúvida, e como tal a predominância de um ou de outro num dado momento traduz os problemas que gritam com maior premência nessa altura. Ortega não apresenta, pelo menos neste texto e na sequência desta qualquer ideia de Progresso no sentido em que muitos autores o entendem, propondo por exemplo uma sequência de estágios históricos de aperfeiçoamento e desmerecimento dos anteriores (por exemplo Teológico, Metafísico, Científico) essa postura chamou a minha atenção e teve direito ao meu interesse. Por fim Ortega deixa a curiosa nota de que os intelectuais julgam ter descrito essa pluralidade de direções, bem como a escolha das mesmas, de forma eficaz, sendo que não o fizeram de facto e esse trabalho continua incompleto e carece de revisão.

CONCLUSÃO

Chegados ao fim desta travessia que nos conta a história dos nossos naufrágios e da nossa tendência natural para a cartografia podemos compreender melhor a citação de Bernardo Soares com que comecei, “A fé é o instinto da ação”. Com o auxílio deste texto e de Ortega é possível retirar uma porção maior da realidade que estas palavras mágicas pretendem proferir e esconder no seu grau extremo de concisão. Sem a crença o existir é inviável e como tal o agir. Foi possível igualmente delinear fronteiras, num exercício de acuidade, entre coisas às quais damos o nome de ideias e que são claramente distintas. Essencial também foi reter a existência como uma tarefa de resistência que o Homem foi legando ao Homem face à ferocidade do Enigma.

BIBLIOGRAFIA

GASSET, José Ortega y. Ideas y Creencias. Madrid: Ediciones de la Revista de Occidente, 1970

SOARES, Bernardo. Livro do Desassossego. Lisboa: Planeta DeAgostini, 2006 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios Antologia. Lisboa: Relógio D´Água, 2016