Ninguém se entende: os dirigentes do futebol e as associações cívicas, as editoras de livros, e os professores de filosofia. Tudo intermediado pela pouco esclarecedora comunicação social. Texto de Ricardo Fortunato.
Esta é uma pequena história de desencontros, de exageros e de más interpretações entre entidades que falaram para o “público em geral“ — através do actualmente bastante tendencioso e de duvidosa reputação meio da comunicação social — em vez de directamente umas com as outras. Nos conteúdos de um manual da disciplina de filosofia para o 10º ano, a Porto Editora tinha colocado como ilustração de um problema moral, que tinha a ver com o carácter objectivo/subjectivo dos valores, o caso de um jogador de futebol, Moussá Marega, que em Fevereiro de 2020 tinha sido alvo de cânticos racistas num jogo do campeonato nacional no estádio do Vitória de Guimarães. O clube, ao invés de (supõe-se) falar em privado com a editora, sensibilizando-a, e aos autores do livro, para que considerassem não mencionar que esses eventos tinham ocorrido no seu estádio, de modo a não estigmatizar nem instituição nem a cidade — já que aliás para o caso do problema moral era absolutamente inócuo esse facto — não o fez assim: recorreu antes à comunicação social e às redes sociais para fazer protesto e barulho. A Porto Editora, por sua vez, responde do mesmo modo, com um comunicado à imprensa, divulgando que iria emendar os referidos conteúdos; supusemos nós, inicialmente, que iria subtrair a referência ao clube, mantendo a descrição do problema moral intacta, de acordo com o que foi veiculado genericamente pelas manchetes da comunicação social, mas, afinal, a única alteração com que a editora se comprometeu foi alterar a palavra “adeptos” para “espectadores”, conforme foi estabelecido em sede judicial de última instância quanto ao caso (protegendo-se, assim, de possíveis providências cautelares e processos judiciais). A Associação de Professores de Filosofia, por sua vez, emite um comunicado — mais uma vez supondo-se que não falaram com as instituições diretamente, mas sim através da comunicação social — muito indignada com as formas de “censura ou de auto-censura”, quando não só uma eventual emenda cordial de subtração da referência à cidade e ao clube Vitória de Guimarães não melindraria absolutamente nada da natureza do problema ali descrito — e sendo assim em nada estorvaria a prática da filosofia — mas também a pequena emenda que acabou por ser assumida pela editora muito dificilmente poderá ser descrita nos termos explosivos acima propostos. Não sabemos se esta associação desconhece a emenda, não manifestou interesse por conhecer, ou simplesmente tenha pretendido ter uma posição manifestamente exagerada perante o caso, tendo-se baseado numa leitura errónea, apressada e forçada dos comunicados, das manchetes da comunicação social e dos corpos das respectivas notícias. Pode bem ser este todo um caso em que um aspecto de cordialidade e bom senso que poderia ser perfeitamente negociado entre as partes é trazido para o achincalhamento da praça pública, onde ninguém se entende e tudo é feito com espetáculo e clamor mas pouca substância.

Já os comunicados dos envolvidos nesta situação, por si só, contêm precisamente logo à partida alguma linguagem que é manifestamente exagerada e questionável. O Vitória Sport Clube, por exemplo, não se limita a “pedir“ à editora que retire a referência, mas mas sim “exige“, enquanto que a associação de adeptos do mesmo clube, Vitória Sempre, escreve, de forma notoriamente mais amadora, que não admitem ser tratados como “tubos de ensaio”, entre outras formulações pouco robustas e exaltadas. Por sua vez, o comunicado da Associação de Professores de Filosofia quase que denuncia um putativo desconhecimento ao detalhe da decisão da editora, pois fala num quadro de censura quando a única alteração promovida foi de pormenor, para se adequar ao que judicialmente foi estabelecido. A Porto Editora, evidentemente a menos antagónica destas partes, especifica na sua comunicação a correcção que vai ter lugar, pede desculpa às instituições de Guimarães pelo erro de se terem referido a “adeptos” e não, conforme definido em tribunal, a “espectadores”, erro que admitem ter ocorrido, mas não manifestam propriamente uma abertura para aceder a eventuais pedidos de cortesia da parte das instituições em causa com vista a não estigmatizar determinadas pessoas, neste caso tanto adeptos de uma cidade, residentes na cidade, como adeptos de um clube — mas também não teriam de o fazer, pois declaram abertamente que crêem que o conteúdo do manual não estigmatiza os ditos.


Mas todo este conteúdo, por si só já contendo suficiente material para o desentendimento, é baralhado e amplificado pela última parte desta questão: o mensageiro, a comunicação social, que actua fomentando desencontros, desentendimentos, leituras e interpretações erróneas, falta de confirmação e intermediação correcta entre as partes envolvidas. Este é um comportamento que não foge às tradições profissionais que se têm, estamos em crer, agravado com o tempo. Espíritos bem intencionados podem justificá-las com a carga horária, a precariedade, todas as chatices da vida a que estarão sujeitos os jornalistas. Mas não toma muito tempo de um profissional de notícias procurar confirmações específicas das entidades em causa quanto a pontos específicos, e é obrigação do profissional de jornalismo ter inteligência para identificar quais são esses pontos envolvidos na matéria da notícia. A maior parte das manchetes veiculadas, que indicavam que a Porto Editora tinha cedido às exigências do clube, teriam tanto valor de verdade como se afirmassem exactamente o contrário, ou seja, que a Porto Editora não cedeu ao clube, e esteve muito longe de sequer considerar a remoção total do conteúdo, adaptando apenas aquela pequena distinção entre adepto/espectador. Não cremos, no entanto, que o problema de precisão jornalística se fique pela questão das manchetes, seguramente um grande problema por si só: na verdade, a formulação de algumas das peças não indiciava esclarecimento sobre o ponto fulcral da questão, que é ter sido apenas proposta a alteração dessa expressão em específico, focando-se antes na asserção muito discutível de que a editora tinha cedido totalmente às exigências do clube e que, como também comprovadamente fez, tinha pedido desculpa.

É pena que a comunicação social tenha maioritariamente veiculado que a editora tinha cedido às exigências do clube, o que manifestamente não é verdade, pois o clube exigia a total remoção do conteúdo e não é nada parecido sequer com isso que vai acontecer. Não sabemos, como dissemos, quem é que leu mal o quê, mas todas estas comunicações parecem uma grande confusão que, a nosso ver, só é ainda mais baralhada e intensificada pelo papel dos média. Deixemos aqui por fim aquelas que parecem ser as conclusões claras desta conversa toda: primeiro, o móbil inicial dos comunicados do clube de futebol e da associação de adeptos parece ser mais o de ganhar pontos políticos perante o público em geral e menos resolver inteligentemente uma situação sobre a qual têm todo o direito de estar melindrados; a Porto Editora não cedeu à magnitude da exigência inicial e ateve-se à emenda conforme estava obrigada pela vinculação da decisão judicial em última instância sobre o caso, sob pena de ser processada posteriormente; a Associação de Professores de filosofia usou de manifesto exagero e porventura também de um desejo de marcar pontos políticos quando classificou uma emenda conforme o estabelecido numa decisão judicial como um quadro de “censura”; as manchetes veiculadas pela comunicação social situam-se algures entre o falso e o não-falsificável, pois transmitem a ideia de que a editora cedeu à queixa pública do clube de futebol, quando tal é maioritariamente falso e somente num ponto a queixa foi efectiva, sendo no entanto devido à adequação da formulação com a decisão judicial e não por causa da queixa em si. Ninguém, nesta história toda, parece ter feito o mínimo de esforço para o diálogo directo uns com os outros, para procurarem entendimentos, para a resolução em privado das questões, porventura o modo mais sagaz e inteligente de o fazer, tendo optado antes por veicular em praça pública uma série de argumentos incompletos, turvos e até caóticos, em termos da sua relação uns com os outros. Ainda muito menos o papel mediador da comunicação social foi algo de esclarecedor: como vem sendo hábito, ficam-se pelos mínimos necessários, que são muitas vezes abaixo do suficiente, e, se nem sequer isso sabem fazer bem, muito menos seriam capazes de promover um verdadeiro papel de mediador entre estas partes, coisa que poderiam perfeitamente fazer já que estavam em contacto com todas. Mas quando se está em actividade com o espírito conhecido no mundo anglófono por jobsworth (que significa it’s more than my job’s worth) ou seja, quando se considera que não vale a pena fazer determinadas coisas que resolveriam problemas de terceiros mesmo quando os problemas desses terceiros estão relacionados com o próprio trabalho do sujeito, está-se evidentemente a navegar numa cultura que só tende para o desentendimento, para o desencontro, e para o antagonismo circular e inócuo.