O que podemos dizer dos judeus portugueses, que no início do século XVI já se viam como espetros do passado? Onde estão eles? Onde estão as pessoas que habitavam as judiarias das cidades de Portugal? Onde estão os sobreviventes do genocídio? Estão entre nós. Somos nós. Sou eu também, de alguma forma longínqua.

Texto de Mariana Bicudo Cunha. Revisão de João N.S. Almeida. Imagem: fotografia da autora.

No dia 19 de abril de 1506, um homem foi arrastado por duas mulheres para fora da Igreja de São Domingos em Lisboa. No largo foi esquartejado e queimado. O homem era um cristão-novo, que teve a audácia de questionar um falso milagre, orquestrado pelos frades da mesma Igreja. Seria um padre a inspirar, de seguida, a população da cidade a matar e a violar. Do mesmo púlpito onde se pregava “não matarás” foram semeados o ódio e a violência. 

No ano de 1506 os judeus já não existiam em Portugal. Agora havia cristãos-novos. Qual a diferença? Não sei se é possível afirmar que existia uma diferença. Para os cristãos de Lisboa que participaram no pogrom de 1506, aqueles cristãos-novos não passavam de judeus convertidos, portanto, judeus. Afinal, para que servia a diferenciação entre cristãos? Os sentimentos negativos contra os judeus estavam enraizados na cultura e na religião. Quando olhamos para a História, nomeadamente analisando as atitudes antissemitas ou antijudaicas, torna-se evidente que a religião informa a cultura. Os reis católicos da Península Ibérica apenas se inspiraram nas práticas discriminatórias do Império Islâmico. Diversas restrições e obrigações, nomeadamente o porte de um sinal cosido à roupa, foram, na verdade, trazidas para a Europa pelos Árabes. Sabemos hoje que este estilo de segregação iria perdurar e inspirar regimes até ao século XX. 

O judaísmo, sem o qual o cristianismo e o islamismo não existiriam, tornou-se um alvo de ambos, porque estas religiões posteriores desenvolveram-se como proselitistas.  Se existe o objetivo de conquistar o maior número de fiéis, a figura do infiel, vítima de todo o tipo de epítetos incendiários e infundados, é extremamente útil. Quem procura controlar as massas compreende o poder de uma narrativa, e compreende que para uma história se disseminar facilmente deve ser redutiva. Tipicamente os outros são maléficos e nós somos virtuosos. A crença, a ideia que a minoria judaica — que nunca procurou impor a sua cultura indígena, mas simplesmente preservá-la — tem algo de inerentemente perigoso é fundamental para o sucesso dos impérios da fé. Só podemos justificar a violência contra alguém se acreditarmos que esse alguém a merece, porque é uma criatura nojenta, porque comete crimes hediondos ou porque nos rouba e aldraba. Passado algum tempo, já ninguém pergunta porque se diz que eles assim o são, a natureza nefasta daquela gente torna-se uma certeza, uma normalidade. E se já se iniciou o ataque contra esse grupo, agora é necessário manter viva a ideia falaciosa que o justificou, para que os linchadores e carrascos do poder não fiquem vistos como loucos. Aqueles que se passam por benfeitores não querem correr o risco de se revelarem como monstros. 

Como podemos perceber quem somos hoje se não percebemos quem fomos ontem? É para isso que serve a reflexão sobre o passado. Não pretendo voltar atrás no tempo com intenções de reescrever o que não pode ser alterado. O meu objetivo tem sido compreender, estudar e respeitar o passado: uma prática que talvez devesse ser mais fomentada. É assim que me deparo com a minha insignificância nas mãos do destino, e no fio dos séculos que passaram. Ninguém me veio anunciar que dos vários antepassados que me antecedem um deles era um tabelião da comuna de judeus de Beja, um tal Jacob Bicudo. Fui eu, por alguma razão misteriosa que o descobri, um dia, nas minhas viagens pela memória. A verdade é que há demasiados portugueses que não sabem que hoje respiram porque, há relativamente pouco tempo, judeus foram forçados a mudar a sua identidade para terem direito a existir. E agora? O que fazer com esta informação? Nada posso mudar, apenas contar. Não esquecer que se perderam vidas, nomes, tradições. Não esquecer quem são os judeus e a sua História através dos milénios. Não esquecer que ninguém me pôde dizer que a Inquisição perseguiu os nossos antecedentes e por isso é que muitos deles vieram para Portugal fugindo de Espanha, para mais tarde sofrerem o mesmo assédio em território lusitano. Não esquecer um padrão que se repete há demasiado tempo.

O meu objetivo quando comecei a estudar a minha história familiar não era estudar o papel da Coroa ou da Igreja na perseguição contra os judeus, mas eventualmente tornou-se impossível negar essa necessidade. A mais triste conclusão que posso tirar das minhas descobertas é que, simplesmente, se cumpriu aquele que era talvez o grande objetivo do Tribunal do Santo Ofício: apagar os judeus. Se hoje, a maioria dos portugueses permanece ignorante sobre este importante elemento da nossa História é porque, por um lado, a ancestral presença judaica na região foi virtualmente silenciada e, por outro lado, não existem esforços para educar o público geral sobre o desenrolar desse acontecimento. 

O que podemos dizer desses judeus portugueses, que no início do século XVI já se queriam espetros do passado? Onde estão eles? Onde estão as pessoas que habitavam as judiarias das cidades de Portugal? Onde estão os sobreviventes do genocídio? Estão entre nós. Somos nós. Sou eu também, de alguma forma longínqua.