Qualquer esteta que se preze e que saiba diferenciar entre, por um lado, consequências materiais de uma determinada deformação da moralidade e, por outro, consequências meramente linguísticas da mesma, só pode estar grato pela composição de gratuitidade verbal aqui presente e só poderá apreciar com grande delícia o registo puramente formal e com pouco conteúdo do rol de insultos que aqui encontramos.
Texto de João N.S. Almeida. Revisão de Tomás Vicente Ferreira. Publicado originalmente em https://osfazedoresdeletras.com/2021/02/08/pra-cima-de-puta-e-a-poetica-do-insulto-joao-n-s-almeida/.
Pra cima de puta e a poética do insulto
I — o que é
Publicado no ano de 2020 — um período nada fácil para a maior parte das pessoas nos grandes centros urbanos dos países desenvolvidos — Pra Cima de Puta surpreendeu, em primeiro lugar, mesmo antes de se conhecer o seu conteúdo, pelo título chocante e pela capa ligeiramente vanguardista. Escrito por uma das pessoas mais conhecidas em Portugal, Cristina Ferreira, apresentadora de talk-shows e concursos, directora de uma revista e executiva de televisão, chamou desde logo a atenção do público, sendo evidentemente um sucesso antecipado. Pouco a pouco, veio-se a conhecer de que é que tratava o livro: seria tanto uma exposição dos insultos a que Cristina era sujeita nas redes sociais da Internet, como também uma reflexão da autora sobre esse presente estado de coisas, um estado em que a cultura do insulto on-line viceja e não se vêem grandes limites para o seu alcance. É incerto, porém, se tal situação representa de facto um problema a resolver ou se se trata simplesmente da forma natural das coisas, e se as consequências de qualquer tentativa de correcção de tal problema não seriam piores do que esse deboche do insulto que as plataformas de comunicação hoje permitem. O cepticismo que aqui se enuncia é um pensamento que a autora não invoca, de todo, manifestando antes o optimismo veladamente feroz dos resolutos, uma postura que temos de compreender: trata-se de uma pessoa imensamente famosa no país, e tem menos liberdade para se vender ao luxo do descomprometimento, menos liberdade, pelo menos, do que os restantes anónimos que quase todos, em geral, somos. Sendo assim, compreende-se que tenha de encontrar nessa situação um problema e que, por conseguinte, seja levada a especulações sobre a sua solução.
Cristina inclina-se, assim, não só ao longo de todo o livro, como também na sua conclusão, e na opinião dos autores que convoca a fazerem contribuições — alguns psiquiatras, filósofos e escritores — para uma solução que configure responsabilização legal dos ofensores, solução que já é prevista na lei, dado que qualquer pessoa pode apresentar uma queixa nas autoridades judiciais por injúria. A sugestão que está sempre subjacente ao discurso de todo o livro é a de que isso não chega, e que são precisas medidas preventivas, não se sabendo bem como é que poderão ser configuradas — a imaginação de cada um dos leitores conseguirá, certamente, desenhar várias sugestões possivelmente distópicas e azelhas, cada uma delas com tanta validade como as que a autora e os seus psicólogos e filósofos convidados adiantam. Mas não é disto que o livro, na verdade, trata. Ou melhor, esse é um dos lados do livro. Existem, de facto, aqui, dois livros: um é o do free jazz dos insultos, o outro é da prosa aborrecida, ego-enfática e moralista de Cristina, e estes registos parecem viver em mundos absolutamente separados. Na verdade, qualquer esteta que se preze, qualquer esteta que saiba diferenciar entre consequências materiais de uma determinada deformação da moralidade e consequências meramente linguísticas da mesma, só pode estar grato pela composição de gratuitidade verbal aqui presente e só poderá apreciar com grande delícia o registo puramente formal e com pouco conteúdo do insulto que aqui encontramos.
II — o que foi
Mas o que importa analisar, mais do que a previsível ladainha de Cristina, é a música do insulto, as possibilidades verbais que esse modo mental nos oferece. Não é que o primeiro modo que autora usa, o da prosa tanto confessional como argumentativa, não tenha também recursos retóricos importantes e saborosos; tem. São, porém, na pena da escritora, muito mais fracos, muito mais tímidos, e parecem esconder banalidade por debaixo dessa aparência de ser sério. Curiosamente, é apenas no título que Cristina se desforra, e se junta ao modo retórico e exuberante dos insultos: “pra cima de puta” (a juntar também à fotografia que faz a capa, igualmente espampanante) constituem praticamente a única comparticipação que Cristina tem nesse modo principal do livro, o da frase gratuita, e que, de forma assumida e franca, constitui na verdade na verdade o seu âmago, mais do que a prosa da autora. Pode dizer-se, numa perspetiva radical, uma perspectiva que privilegie a retórica do insulto, que o título é única frase de jeito que Cristina escreveu no livro.
Passemos, então, a uma análise mais atenta e confessadamente mais laudatória do vector primeiro, e principal, do livro: o chorrilho fabuloso, demoníaco, divertidíssimo, musical e feliz do modo retórico do insulto, que permite variações coloridas nem sempre disponíveis no discurso corrente. Neste sentido, é indiferente se lemos o livro com atenção, sequencialmente, ou se antes o lemos de forma transversal e diagonal, como se fosse um livro de anedotas, de piropos, de puzzles, de posições sexuais, etc. (e deixemos para outro ensaio a semelhança entre todos estes campos e o campo do insulto). Entre algumas das formas que podemos encontrar nesse registo: a do axioma moral domina, como quando alguém exorta a autora a não se comportar de determinada maneira (e, no fundo, trata-se de um registo mais assumidamente moral do que os axiomas mais ligeiros, desconfiados, sinistros, que é frequente encontrarmos nas declarações das celebridades); a forma anafórica da repetição de um determinado topos (cabra, porca, vaca que berra, etc), intercalado com algumas considerações vagas sobre o carácter moral do objecto do insulto; e, por último, talvez o mais importante dos lugares verbais para que a retórica do insulto nos transporta, uma certa maneira de falar em que se torna evidente que o autor do insulto já não está a falar só do seu objecto — a pessoa em concreto a quem aparentemente se dirige — mas sim de uma figura universal que vai, pouco a pouco, à medida que o insulto vai crescendo como sintoma, tomando forma, e que de forma linda se desprende da pessoa real, neste caso, tanto da Cristina real como da Cristina pública, duas figuras que existem de forma mais confusa na mente da autora do que, provavelmente, na mente dos sujeitos que a insultam. Perante esta poética tão rica, qualquer tentativa de aproximação ao tema sério e consequente do bullying parece um tópico comparativamente menor, reduzido, muito débil. Se, inicialmente, de acordo com as impressões transmitidas em entrevista, Cristina pretendia fazer chacota do curral de insultos de que era alvo, ter-se-á perdido, algures, no caminho de considerações matriarcais (do tipo Oprah, sociologia de bolso, que encontramos nas revistas femininas como a própria revista Cristina etc.) partindo então para um raciocínio tanto pobre como secundário acerca de consequências muito efémeras de um combate perene, uma guerra, de uma gravidade muito inferior tanto aos gladiadores como até ao desporto profissional. Portanto, é uma espécie de teoria dos mariquinhas.
As reflexões de Cristina sobre o contraste entre o insulto on-line e um potencial insulto presencial são pobres e desinteressantes; a autora prefere destacar a improbabilidade do insulto presencial ter de facto lugar como uma justificação para a ficção e fantasia do insulto on-line. No entanto, um insulto é sempre uma espécie de fantasia encapsulada, ou, caso contrário, não seria um insulto mas sim uma afirmação de facto. O meio on-line proporciona assim mais condições para essa fantasia florescer; Cristina parece ignorar isso, e interpretar a cacofonia dos meios virtuais como uma espécie de ameaça real ao bem-estar e à vida das pessoas. Tais são especulações que alimentam a indústria da psicologia e a indústria da vitimização em geral mas, na verdade, pode antes tratar-se de uma incapacidade de saber ler texto escrito como algo de distinto da palavra falada. E ainda mais: não saber distinguir palavra, enquanto palavra, de palavra associada muito mais proximamente ao acto, que é o que acontece nas interações presenciais de uma forma mais evidente, explícita e intensa.
Assim, o constante tom de queixume em relação à violência gratuita encontrada on-line é constrangedor e aborrecido. Sucedem-se considerações morais que, por serem mais sólidas, mais documentadas e menos engraçadas do que os comentários que lhe são dirigidos (que possuem essa tal gratuitidade encantadora e livre) perdem assim totalmente o interesse e, principalmente, não se situam no mesmo campo: é um pouco como um jogador de futebol a falar como um padre. O colorido carnavalesco e feliz dos insultos que no livro se desenham encontra como contraponto a secura aborrecida do tom moralista de Cristina. Constitui uma diferença de modo absolutamente fundamental face aos pequenos casulos multicoloridos de injúrias que os autores lançam, pois eles não são alimentados com a carga da razoabilidade nem com os fios de raciocínios que apesar de pobres, são estruturados, da parte de Cristina. É curioso como uma análise comparativa da sua prosa e dos insultos que lhe são dirigidos encontra, na primeira leitura, muito pouco o que analisar: o texto simples, limpidamente escrito, sem grandes explosões literárias de interesse; os insultos, por seu lado, são dotados de constante relevo, de guinadas de pensamento inesperadas, de associações curiosíssimas que misturam angústia com êxtase, onde o sujeito que insulta se deixa levar a recantos de si próprio que, como já terá ficado evidente tanto para alguém que os lê como para alguém que lê esta recensão, são mais confessionais da parte desse sujeito do que são real ameaça do que quer que seja para a pessoa ofendida. Convém aqui, nesta descrição que é assumidamente laudatória, lembrar como o registo do insulto livre, e até anónimo, é fantástico e corajoso: afinal, não foram os germens de tantas revoluções plantados nos subterrâneos, nas catacumbas, às escondidas? A alguém hoje ocorre chamar o cristão romano, os executores da revolução francesa ou os founding fathers americanos de covardes? Todas essas pessoas fizeram o que lhes era possível conforme as condições que tinham. Não se percebe, também, se Cristina medita seriamente sobre os efeitos do moralismo que tenta ensaiar. Afinal, está ela à espera que os autores dos insultos, bardos livres, se encolham de vergonha e pensem nas consequências, para a sociedade, do seu comportamento, ou coisa parecida?
Num ponto do livro, não me recordo qual, a autora descreve, de certo modo, como toda a empresa deste volume começou: encontrava-se na sua festa de anos, rodeada de numerosos amigos, e resolveu ler um muito colorido insulto que lhe foi dirigido nas redes sociais. É estranho e triste: se, ao princípio, Cristina confessa que tinha ficado a rir com esse e muitos dos insultos que lhe eram dirigidos, acaba mais tarde por entrar numa espécie de linha de montagem industrial de vitimismo, que a leva a achar que é “vítima“ de ofensas verbais (e as palavras, convenhamos, continuam de facto a magoar muito menos do que paus e pedras), e vítima, está claro, por ser famosa, bem sucedida, e mulher. Qualquer relance de aquilo por que outras estrelas internacionais, sejam homens ou mulheres, passam basta para pôr termo essa teoria — e bastará pensar em dois dos portugueses mais conhecidos do mundo, profissionais do futebol, para termos disso noção. Assim, mais à frente, não podia faltar a abordagem desse tema do ódio de género de modo mais explícito, seja da parte do homem ou da mulher, sabendo a autora distinguir bem a tipologia de cada um. No primeiro caso, arruma o assunto com uma arrogância inimitável: os homens usam insultos de cariz sexual com as mulheres porque “não evoluíram”; e supõe-se aqui, curiosamente, que é menos pela questão do insulto e mais pela questão de sentir impulsos sexuais em relação às mulheres que “não evoluíram”. Mais à frente (p. 75), vota a estranhar que a tensão sexual entre homem e mulher exista de facto (em pleno séc. XXI?), quando afirma não compreender especulações sobre eventuais romances seus com colegas de trabalho. E, pouco depois, descreve de forma absurda e sonhadora aquilo que imagina ser a realidade masculina: o homem, se trabalhar bem, “vais chegar onde quer“ — como se não houvesse nem nuances, nem compadrio, nem corrupção, nem amizades e inimizades, nem injustiças, na vida laboral de um homem. A mulher, por seu lado, claro está, é a vítima: vive num perpétuo estado retrógrado, forçada a isso, e, apesar das conquistas “dos últimos anos”, é sujeita, aparentemente, a uma saraivada de tensões sexuais que a tornam impotente. Cristina julga assim, um defeito comum, que a mesma violência que descreve não existe no mundo masculino, nem concebe o suficiente que exista, mas de outras formas, porventura menos sexuais e mais brutas. Esta tendência, que não é de todo inédita em certo tipo de psicologia popular, de atribuir a culpa dessas tensões sexuais a revoluções ainda não acabadas, encontra terreno compatível num hábito inteiramente familiar a esses quadros opinativos: a autora gosta, como é hábito em certo tipo de palrar feminino mal-educado, de justificar os seus defeitos descrevendo-os como na verdade sendo virtudes: “gosto de ser teimosa” (p. 70), “gosto de não me lembrar do que não me agrada” (p. 71), etc.
Um problema adicional que o modo mental da autora revela é não se saber encontrar nem dentro da pessoa pública nem da privada. Parece pretender que ambas se fundam, quando constantemente descreve como ao mesmo tempo não deseja essa fusão. Repare-se: “eu, por ser figura pública, não sou a capa de um livro: eu existo” (p. 89). Mais à frente, uma reacção curiosa e ingénua (p.38): Cristina mostra-se admirada que pessoas a venerem, do mesmo modo que se mostra admirada com pessoas que a odeiam. Mostra-se admirada, mais do que com os sentimentos em causa, com o seu lugar enquanto imagem distante, que não corresponde, para as pessoas, à pessoa real que ela é e que afirma, várias vezes no livro, ser de facto. Mas tal leitura parece representar, na verdade, o facto de Cristina desconhecer ou fingir que desconhece o modo como se existe no mundo da representação — seja na televisão ou na pintura renascentista. Mais tarde (p. 65), de certo modo volta atrás com a ideia que tinha: estabelece claramente uma distinção entre a Cristina pública e a Cristina privada, mas essa privacidade de que fala parece-se mais com as interações que tem com pessoas do seu círculo familiar próximo, e não propriamente com uma privacidade singular da sua pessoa mental. Neste capítulo, as confusões sucedem-se: refere-se também à “Cristina que quer que a fiquem a conhecer melhor“ (p. 49), confundindo completamente a pessoa pública com a sua pessoa privada e mostrando uma ignorância enorme em relação aos mecanismo de representação que provavelmente, ou quase de certeza, impedem que essas duas figuras se fundam. Não é possível ser amigo de Portugal inteiro, nem é possível existir como representação e querer que essa representação corresponda ao nosso eu do quotidiano e da lida diária. As duas figuras são praticamente absolutamente incompatíveis.
III — o que será
Cristina, no entanto, é bem intencionada quando diz, a dado ponto do livro, que nunca viu exibicionismo barato nas chamadas imprensa cor-de-rosa, revistas que acompanhava quando não era ainda famosa. Sente-se que não é, de facto, venenosa, ao contrário do que muitos dos insultos fazem crer. Mas, voltando a um dos pontos iniciais desta recensão, uma pessoa tão pública e famosa não pode dar-se ao luxo do descomprometimento, não pode achar que o vespeiro de ódio que encontra na Internet dirigido à sua pessoa não representa também algo de público, e algo cuja responsabilidade é também sua. Daí procurar, embora através de formas argumentativas complicadas e pouco claras, uma redenção, não só sua mas dessa entidade colectiva que é a Cristina privada, a pública, e o público da Cristina. A estes, igualmente, dirige o mote redentor: as pessoas não sensatas, as que insultam, “talvez ainda tenham salvação” (p. 75). Por outro lado, e tal pelo menos três vezes ao longo do livro, Cristina perde-se a dizer coisas como “daqui a 100 anos”, quando alguém ler este livro, compreenderá…
Como conclusão, como já adiantámos, é evidentemente estranha a solução que apresenta para a saraivada de insultos de que é alvo: uma lei que regule a livre expressão nas redes sociais da Internet: “não posso ter seja quem for a escrever isto na minha página (…): és uma grande vaca. Não posso” (p. 89). Não pode porquê? Porque é mentira? Porque é verdade? Isto lembra-nos que Portugal, como tantos outros estados europeus, criminaliza a injúria – ao contrário do que sucede nos Estados Unidos, onde a protecção dada pela constituição à liberdade de expressão é muito mais forte. Em Portugal, há acórdãos de tribunal em que uma pessoa é condenada por chamar “gorda popota” a outra. Alem dessa lei que impede a injúria gratuita — sendo muito discutível o que é que essa lei protege exactamente: a “dignidade”? mas como? — uma injúria é retórica, enquanto que uma calúnia ou difamação não o são. Cristina tem, aliás, frequente dificuldade fazer distinções de espécie entre estas categorias, misturando algo que é gratuito, a ofensa verbal, com algo que não o é, como a difamação premeditada e com consequências perfeitamente mensuráveis. Além disto, existem outras leis, no quadro nacional e europeu, ainda mais severas, que estabelecem categorias da população mais protegidas do que outras, e que descrevem a existência de algo chamado “discurso de ódio”, etc. A questão tenderá, então, para ser a seguinte: é proibido sentir e exprimir “ódio”? Será é que é disso – o que não me parece que seja – que aqui se trata? Enfim, como já explicámos logo no início, o final do livro guarda-nos o pior: depois do colorido estonteante dos insultos, da prosa moralista e aborrecida de Cristina, apresentam-nos os contributos semi-ensaísticos dos autores convidados sobre o tópico da violência verbal nas redes socials. São do género pop-psychology, de uma pobreza extrema, e debitam banalidades, não merecendo grande destaque nesta recensão; sugiro ao leitor que se escuse de os ler e aprecie o livro por aquilo que é no seu âmago: uma colecção fantástica, muito bem-vinda, de um modo retórico que mereceria muito mais destaque na literatura do que realmente tem, e o queixume inconsequente de uma mulher que, apesar de ter ideias pouco claras, é bem-intencionada e terá em si um gérmen, ainda, com toda a probabilidade, da pessoa que inicialmente, quando leu em voz alta um dos mais coloridos insultos na sua festa de aniversário, simplesmente se riu e se deliciou com o encanto que esse registo pode proporcionar.













